24 de fevereiro de 2015

GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

 
Um dos principais obstáculos para o contínuo acúmulo de capital e a consolidação do poder de classe capitalista na década de 1960 foi o trabalho. Havia escassez de mão de obra, tanto na Europa quanto nos EUA. O trabalho era bem organizado, razoavelmente bem pago e tinha influência política. No entanto, o capital precisava de acesso a fontes de trabalho mais baratas e mais dóceis. Houve uma série de maneiras para fazer isso. Uma delas foi estimular a imigração. O Ato de Imigração e Nacionalidade de 1965, que aboliu as cotas de origem nacional, permitiu o acesso ao capital dos EUA à população excedente global (antes apenas europeus e caucasianos eram privilegiados). No fim dos anos 1960, o governo francês começou a subvencionar a importação de mão de obra da África do Norte, os alemães transportaram os turcos, os suecos trouxeram os iugoslavos, e os britânicos valeram-se dos habitantes de seu antigo império. Outra forma foi buscar tecnologias que economizassem trabalho, como a robotização na indústria automobilística, o que criou desemprego. Um pouco disso aconteceu, mas houve muita resistência por parte do trabalho, que insistia em acordos de produtividade. A consolidação do poder de monopólio das empresas também enfraqueceu a implementação de novas tecnologias, porque custos laborais mais elevados eram transferidos para o consumidor por meio de preços mais altos (resultando em inflação estável).
 
As três grandes empresas automobilísticas em Detroit geralmente faziam isso. Seu monopólio acabou finalmente quebrado quando os japoneses e alemães invadiram o mercado de automóveis dos EUA na década de 1980. O retorno às condições de uma maior concorrência, que se tornou  um objetivo político fundamental nos anos 1970, então forçou o uso de tecnologias que economizassem trabalho. (...) Alan Budd, conselheiro-chefe econômico de Thatcher, mais tarde admitiu que "as políticas dos anos 1980 de ataque à inflação com o arrocho da economia e gastos públicos foram um disfarce para esmagar os trabalhadores", e assim criar um "exército industrial de reserva", que minaria o poder do trabalho e permitiria aos capitalistas obter lucros fáceis para sempre. Nos EUA, o desemprego subiu, em nome do controle da inflação, para mais de 10% em 1982. Resultado: os salários estagnaram. Isso foi acompanhado nos EUA por uma política de criminalização e encarceramento dos pobres, que colocou mais de 2 milhões atrás das grades até 2000.

O capital também teve a opção de ir para onde o trabalho excedente estava. As mulheres rurais do Sul global foram incorporadas à força de trabalho em todos os lugares, de Barbados a Bangladesh, de Ciudad Juárez a Dongguan. O resultado foi uma crescente feminização do proletariado, a destruição dos sistemas camponeses "tradicionais" de produção autossuficientes e a feminização da pobreza no mundo. O tráfico internacional de mulheres para a escravidão doméstica e prostituição surgiu, na medida em que mais de 2 bilhões de pessoas, cada vez mais amontoadas em cortiços, favelas e guetos de cidades insalubres, tentavam sobreviver com menos de dois dólares por dia. Inundadas com capital excedente, as empresas norte-americanas começaram a expatriar a produção em meados da década de 1960, mas esse movimento apenas se acelerou uma década depois. Posteriormente, peças feitas quase em qualquer lugar do mundo - de preferência onde o trabalho e as matérias-primas fossem mais baratas - poderiam ser levadas para os EUA e montadas para a venda final no mercado. O "carro mundial" e a "televisão global" tornaram-se um item padrão na década de 1980. O capital já tinha acesso ao trabalho de baixo custo no mundo inteiro. Para completar, o colapso do comunismo, drástico no ex-bloco soviético e gradual na China, acrescentou cerca de 2 bilhões de pessoas para a força de trabalho assalariado global. (...).

Uma nova arquitetura financeira global foi criada para facilitar a circulação do fluxo internacional de capital-dinheiro líquido para onde fosse usado de modo mais rentável. A desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e tornou-se irrefreável na década de 1990. A disponibilidade do trabalho não é mais um problema para o capital, e não tem sido pelos últimos 25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários, e os trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante. A persistente repressão salarial, portanto, coloca o problema da falta de demanda para a expansão da produção das corporações capitalistas. Um obstáculo para a acumulação de capital - a questão do trabalho - é superada em detrimento da criação de outro - a falta de mercado. (...) A lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia gastar foi preenchida pelo crescimento da indústria de cartões de crédito e aumento do endividamento. Nos EUA, em 1980 a dívida agregada familiar média era em torno de 40 mil dólares (em dólares constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas. As dívidas familiares dispararam, o que demandou o apoio e a promoção de instituições financeiras às dívidas de trabalhadores, cujos rendimentos não estavam aumentando. Isso começou com a população constantemente empregada, mas no fim da década de 1990 tinha de ir mais longe, pois esse mercado havia se esgotado. O mercado teve de ser estendido para aqueles com rendimentos mais baixos. Instituições financeiras como Fannie Mae e Freddie Mac foram pressionadas politicamente para afrouxar os requerimentos de crédito para todos. As instituições financeiras, inundadas com crédito, começaram a financiar a dívida de pessoas que não tinham renda constante. Se isso não tivesse acontecido, então quem teria comprado todas as novas casas e condomínios que os promotores de imóveis com financiamento estavam construindo? O problema da demanda foi temporariamente superado, no que diz respeito à habitação, pelo financiamento da dívida dos empreendedores, assim como dos compradores. As instituições financeiras controlavam coletivamente tanto a oferta quanto a demanda por habitação! (...).
 
A mesma história ocorreu com todas as formas de crédito ao consumo para todos os produtos, desde automóveis e cortadores de grama até fácil acesso a cartões de presente de Natal na Toys 'R' Us e Wal-Mart. Todo esse endividamento era obviamente arriscado, mas isso era para ser controlado por maravilhosas inovações financeiras de securitização que, supostamente, partilharam o risco, criando a ilusão de que este tinha desaparecido. O capital financeiro fictício assumiu o controle e ninguém queria pará-lo porque todo mundo que importava parecia estar fazendo muito dinheiro. (...) Mas havia outra maneira de resolver o problema da demanda: a exportação do capital e o cultivo de novos mercados ao redor do mundo. (...) As dificuldades logo surgiram com a crise da dívida dos países em desenvolvimento da década de 1980. (...) Para que tudo isso fosse realmente eficaz, era preciso construir um sistema globalmente interligado de mercados financeiros. Dentro dos Estados Unidos, as restrições geográficas sobre o setor bancário foram retiradas passo a passo a partir do fim dos anos 1970. Até então, todos os bancos, exceto os de investimento - que foram separados judicialmente de instituições de conta corrente -, tinham sido confinados a operar dentro de um Estado, enquanto as empresas de poupança e empréstimos financiavam hipotecas, que eram separadas dos bancos de conta corrente. Mas a integração dos mercados financeiros global e nacional também foi vista como vital e isso levou, em 1986, à articulação de ações globais e mercados de negociação financeira. O "Big Bang", como foi chamado na época, conectava Londres e Nova York e imediatamente a seguir todos os mais importantes mercados financeiros mundiais (e, em última instância, locais) em um único sistema de negociação. (...) Isso não significa que não havia barreiras aos fluxos de capitais internacionais, mas barreiras técnicas e logísticas ao fluxo de capital global certamente foram muito diminuídas. O capital-dinheiro líquido podia vaguear mais facilmente pelo mundo à procura de locais onde a taxa de retorno fosse maior. A suspensão da distinção entre bancos de investimento e conta corrente nos Estados Unidos em 1999, que já estava em vigor desde a Lei Glass-Steagall de 1933, integrou ainda mais o sistema bancário em uma rede gigante do poder financeiro.
 
David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 20, 21, 22, 24 e 25)

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