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9 de setembro de 2022

A MAIOR QUALIDADE DA LINGUAGEM CONSISTE NA CLAREZA

A maior qualidade da linguagem consiste na clareza, sem vulgaridade. (...) Nobre e elevada é a que emprega termos raros. Denomino termos raros os metafóricos, os alongados, e todos os que fogem aos de uso corrente. (...) Expressões, por não pertencer à linguagem usual, conferem nobreza ao estilo. (...) Mais cuidado deve se tomar com o uso de metáforas, uma vez que estas não se aprendem; ao contrário, indicam dom natural; servir de belas metáforas é saber distinguir as semelhanças. (...) A particularidade do enigma é falar coisas certas reunindo termos absurdos, o que não se dá com a combinação de vocábulos correntes e sim com o emprego de metáforas, como em "vi um homem colando bronze no outro, com fogo" e outras construções semelhantes.

Aristóteles (Poética; págs: 65, 66 e 67)

7 de setembro de 2022

ANCORAGENS

Se se transcrevesse a conversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transições. E se este princípio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar-vos que havia secretamente esclarecido em seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais o tinham desviado gradualmente do tema da conversa.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; págs: 39 e 40)

COMUNICAÇÃO DE EMOÇÕES

As numerosas operações do espírito humano dependem da conexão ou da associação de idéias. (...) As emoções despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentes e sem nenhuma conexão. Ao introduzir numa composição personagens e ações estranhas umas às outras, um autor imprevidente destrói esta comunicação de emoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões no grau desejado e no momento apropriado.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 47)

6 de setembro de 2022

VONTADE DE ILUSÃO

Vê-se que nesse livro o pessimismo, digamos mais claramente: o niilismo, é tomado como a “verdade”. Mas a verdade não é tomada como critério mais alto de valor, e menos ainda como potência mais alta. A vontade de aparência, de ilusão, de valor, de vir-a-ser e mudar (de engano objetivado), é tomada aqui como mais profunda, mais originária, mais “metafísica” do que a vontade de verdade, de efetividade, de aparência: mesmo esta última é meramente uma forma da vontade de ilusão. Do mesmo modo, o prazer é tomado como mais originário do que a dor: a dor somente como condicionada, como um fenômeno que decorre da vontade de prazer (da vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, de criar: e no criar está incluído o destruir). É concebido um estado supremo de afirmação da existência, do qual nem mesmo a suprema dor pode ser excluída: o estado trágico-dionisíaco.

Friedrich Nietzsche (A Arte em “O Nascimento da Tragédia”; pág: 50)

20 de outubro de 2021

FALSA REPRESENTAÇÃO

Quando o rico toma do pobre um bem (por exemplo, o príncipe toma do plebeu a amada), nasce no pobre um erro; ele pensa que aquele tem de ser totalmente celerado para tomar dele o pouco que ele tem. Mas aquele não sente tão profundamente o valor de um único bem, porque está habituado a ter muitos: assim, não pode se pôr na alma do pobre e está longe de fazer tanta injustiça quanto este acredita. Ambos têm, um do outro, uma falsa representação. A injustiça do poderoso, a que mais revolta na história, está longe de ser tão grande como parece. Já o sentimento herdado de ser um ser superior com direitos superiores torna devidamente frio e deixa a consciência tranquila: nós mesmos, quando a diferença entre nós e um outro ser é muito grande, não sentimos mais nada de injustiça e matamos uma mosca, por exemplo, sem nenhum remorso na consciência. (...) Aquele que é cruel não é cruel na medida em que o acredita o maltratado; a representação da dor não é o mesmo que o padecimento dela. Assim também se passa com o juiz injusto, com o jornalista que com pequenas deslealdades induz em erro a opinião pública. (...) E no entanto se pressupõe involuntariamente que o que age e o que sofre pensam e sentem igual, e, em conformidade com esse pressuposto, se mede a culpa de um segundo a dor do outro.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 77 e 78)

23 de junho de 2021

A FINALIDADE DA VIDA É UMA AÇÃO

São duas as causas naturais das ações: idéias e caráter. E dessas ações se origina a boa ou má fortuna das pessoas. A fábula é imitação da ação. Chamo fábula a reunião das ações; por caráter entendo aquilo que nos leva a dizer que as personagens possuem tais ou tais qualidades; por idéias, refiro-me a tudo o que os personagens dizem para manifestar seu pensamento. (...) A tragédia não é imitação de pessoas e sim de ações, da vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação, e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Os homens possuem diferentes qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou infelizes de acordo com as ações que praticam. (...) Caráter é aquilo que revela determinada deliberação; ou, em situações dúbias, a escolha que se faz ou que se evita. Por esse motivo, falta caráter às falas da personagem quando esta não revela a finalidade que se quer obter ou recusar.

Aristóteles (Poética; págs: 43, 44 e 45)

9 de junho de 2021

A BELEZA RESIDE NA MAGNITUDE E NA ORDEM

A beleza reside na magnitude e na ordem, e por esse motivo um organismo exageradamente pequeno jamais poderia ser chamado de belo (pois a visão se confunde quando o tempo de exposição a ela é quase imperceptível). Pela mesma razão, tampouco o exageradamente grande pode ser considerado belo (pois à vista dos espectadores escaparia a unidade e o todo; suponha-se, por exemplo, um animal de milhares de estádios). Assim como os seres viventes e as coisas precisam ter um tamanho adequado, para que permitam à visão abarcá-los por inteiro, assim também as fábulas precisam ter uma extensão que a memória possa apreender por inteiro.

Aristóteles (Poética; pág: 46)

19 de janeiro de 2021

INTENÇÃO

Como o homem é um ser racional e está continuamente à procura da felicidade, que espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ou afeição, raramente age, pensa ou fala sem propósito ou intenção. Sempre tem algum objeto em vista: embora às vezes sejam inadequados os meios que escolhe para alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdiça seus pensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 41)

7 de novembro de 2020

A EXPERIÊNCIA E A RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO

Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. (...) A espécie mais habitual de relação entre os diferentes eventos que fazem parte de uma composição narrativa é a de causa e efeito. O conhecimento de causas não é apenas o mais satisfatório, já que esta relação ou conexão é mais forte do que todas as outras, mas também mais instrutivo, pois é unicamente por este conhecimento que somos capazes de controlar eventos e governar o futuro. (...) Não é apenas numa determinada parcela da vida que as ações de um homem dependem uma das outras, mas durante toda a sua existência, ou seja, do berço ao túmulo; é impossível quebrar um único elo, embora diminuto, desta cadeia regular sem afetar toda a série de eventos.

Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. (...) Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato. (...) É preciso que um homem seja muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes estados dos corpos. (...) A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são descobertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em relação àqueles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foram completamente desconhecidos, porquanto devemos ter consciência de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. (...) Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. (...) Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência. (...) O esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação

Os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado. (...) E é somente depois de uma longa série de experimentos uniformes, sobre qualquer gênero dado, que nos tornamos confiantes e seguros em relação a um evento particular. (...) Quando aparece um novo objeto dotado de qualidades sensíveis semelhantes, esperamos poderes e forças semelhantes e esperamos também um efeito análogo. De um corpo igual ao pão em cor e consistência, esperamos alimentação e subsistência análogas. (...) Todas as inferências provenientes da experiência supõem, como seu fundamento, que o futuro se assemelhará ao passado, que poderes semelhantes estarão conjugados com qualidades sensíveis semelhantes. (...) Certamente, (...) até os bebês e as bestas irracionais  - se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimento das qualidades dos objetos naturais, observando os efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não pôr mais sua mão perto de outra vela, pois ela esperará um efeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas qualidades e aparências sensíveis.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; págs: 42, 43, 49, 50, 51, 52, 53, 56, 57 e 58)

6 de novembro de 2020

O ESPÍRITO DA FILOSOFIA

Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espírito da filosofia, se cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualmente através de toda a sociedade e confere a todas as artes e profissões semelhante correção. O político adquirará maior previsão e sutileza na divisão e no equilíbrio do poder, o advogado, mais método e princípios mais sutis em seus raciocínios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela em seus planos e em suas manobras.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 29)

17 de outubro de 2020

O NÃO-GREGO NO CRISTIANISMO

Os gregos não viam os deuses homéricos acima de si, como senhores, e não se viam abaixo deles, como servos, ao modo dos judeus. Viam como que apenas a imagem em espelho dos exemplares de sua própria casta que melhor vingaram, portanto um ideal, não um contrário de sua própria essência. Há o sentimento de parentesco recíproco, subsiste um interesse de lado a lado, uma espécie de simaquia. O homem pensa nobremente de si quando dá a si mesmo tais deuses e se coloca em uma relação como é a da nobreza inferior para com a superior; enquanto os povos itálicos têm uma boa religião de camponês, com constante inquietação contra potências más e caprichosas e espíritos torturantes. Onde os deuses olímpicos se retiravam, ali a vida grega era também mais sombria e inquieta. - O cristianismo, por sua vez, esmagou e alquebrou completamente o homem, e o mergulhou como que em um profundo lamaçal: então, no sentimento da total abjeção, fazia brilhar de repente o esplendor de uma piedade divina, de tal modo que o surpreendido, aturdido pela graça, lançava um grito de embevecimento e por um instante acreditava carregar o céu inteiro em si. Sobre esse doentio excesso do sentimento, sobre a profunda corrupção da cabeça e coração necessária para isso, atuam todas as invenções psicológicas do cristianismo: ele quer aniquilar, alquebrar, aturdir, inebriar, ele só não quer uma coisa: a medida, e por isso é, no sentido mais profundo, bárbaro, asiático, sem nobreza, não-grego.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; pág: 82)

16 de outubro de 2020

A ORIGEM DO CULTO RELIGIOSO

Falta, em geral, todo conceito de causalidade natural. Quando se rema, não é o remar que move o navio, mas remar é somente um cerimonial mágico pelo qual se força um demônio a mover o navio. Todas as doenças, a própria morte, são resultado de intervenções mágicas; no adoecer e morrer as coisas nunca se passam naturalmente; falta toda representação do “curso natural”. (...) Uma pedra que subitamente rola é o corpo em que um espírito está agindo; se jaz charneca solitária um bloco, se parece impossível pensar em força humana que o tenha trazido, a pedra deve ter movido a si mesma, isto é: deve albergar um espírito. (...) A natureza inteira, na representação de homens religiosos, é uma soma de ações de seres dotados de consciência e vontade, um complexo descomunal de arbitrariedade. (...) A meditação do homem que acredita na magia e no milagre visa impor à natureza uma lei -: e, dito concisamente, o culto religioso é o resultado dessa meditação. (...) Por súplica e oração, por submissão, pelo compromisso de prestar tributos e oferendas regulares, por glorificações lisonjeiras, é possível, pois, exercer também sobre as potências da natureza uma coação, atraindo para si sua afeição: amor liga e é ligado. (...) É uma espécie de coação mais poderosa, por magia e feitiçaria. (...) O sentido do culto religioso é determinar e confiar a natureza em proveito do homem, portanto, imprimir-lhe uma legalidade que de antemão ela não tem. (...) Em suma, o culto religioso repousa nas representações da feitiçaria entre homem e homem; e o feiticeiro é mais antigo do que o padre.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 79, 80 e 81)

JUSTIÇA E VINGANÇA

A justiça (equidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos igual. (...) Onde não há nenhuma supremacia claramente reconhecível e um combate se tornaria um inconsequente dano mútuo, surge o pensamento de se entender e negociar sobre as pretensões de ambos os lados; o caráter da troca é o caráter inicial da justiça. (...) Justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos igual de potência; assim a vingança pertence originariamente ao domínio da justiça, ela é intercâmbio.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; pág: 78)

8 de outubro de 2020

SOMOS NÓS OS COLORISTAS

Nós, desde milênios, temos olhado para o mundo com pretensões morais, estéticas, religiosas, com cega inclinação, paixão ou medo, e porque nos temos regalado nos maus hábitos do pensamento ilógico, que esse mundo pouco a pouco veio a ser tão maravilhosamente colorido, apavorante, profundo de significação, cheio de alma; ele adquiriu cores - mas somos nós os coloristas: o intelecto humano fez aparecer o fenômeno e transpôs para as coisas suas concepções fundamentais errôneas. Aquilo que agora denominamos mundo é o resultado de uma multidão de erros e fantasias, que surgiram pouco a pouco no desenvolvimento total do ser orgânico, cresceram entrelaçados e agora nos são legados como tesouro acumulado do passado. (...) O fato é que, desse mundo da representação, a ciência rigorosa só é capaz de livrar-nos em pequena medida - o que, aliás, nem é de desejar -, já que não é capaz de romper, no essencial, a força de hábitos antiquíssimos de sensação: mas pode aclarar a história da gênese desse mundo como representação, bem aos poucos e passo a passo - e elevar-nos, pelo menos por instantes, sobre o evento inteiro. Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma homérica gargalhada: ela parecia tanto, e mesmo tudo, e, propriamente, é vazia, ou seja, vazia de significação.

O primeiro grau do [pensamento] lógico é o juízo: cuja essência consiste, segundo a afirmação dos melhores lógicos, na crença. Na base de toda crença está a sensação do agradável ou doloroso em referência ao sujeito da sensação. (...) O que está mais distante daquele grau primordial do [pensamento] lógico é o pensamento da causalidade: até hoje pensamos ainda, no fundo, que todas as sensações e ações são atos da vontade livre; se o indivíduo que sente considera a si mesmo, toma cada sensação, cada alteração, por algo isolado, isto é, incondicionado, desconexo: emerge em nós, sem ligação com o anterior ou o posterior. Temos fome, mas originariamente não pensamos que o organismo quer ser conservado, e esse sentimento parece fazer-se sentir sem fundamento e fim, isola-se e se toma por arbitrário. Portanto: a crença na liberdade da vontade é um erro originário comum a todo ser orgânico, tão antigo que existe desde que existem nele as emoções lógicas; a crença em substâncias incondicionadas e em coisas iguais é, do mesmo modo, um erro originário, igualmente antigo, de todo ser orgânico. (...) Um dos graus, certamente muito alto, da cultura, é alcançado quando o homem ultrapassa conceitos e medos supersticiosos e religiosos e, por exemplo, não acredita mais nos caros anjinhos ou no pecado hereditário, e até mesmo da salvação das almas desaprendeu a falar: nesse grau de libertação, ele ainda precisa, com suprema tensão de sua lucidez, superar a metafísica. (...) Os mais ilustrados só vão até o ponto de libertar-se da metafísica e lançar-lhe, para trás, um olhar de superioridade.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 73, 74 e 75)

6 de outubro de 2020

PERCEPÇÕES E IMPRESSÕES

Embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. (...) A idéia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. (...) Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões (...) pelo termo impressão, entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. (...) ou percepções mais vivas. (...) Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas percepções originais.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; págs: 35, 36 e 37)

23 de setembro de 2020

SOCIALISMO E DESPOTISMO

O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como só a teve alguma vez o despotismo, e até mesmo supera todo o passado por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual lhe aparece como um injustificado luxo da natureza e deve ser transformado e melhorado por ele em um órgão da comunidade adequado a seus fins. Em virtude de seu parentesco, ele aparece sempre na proximidade de todos os excessivos desdobramentos de potência, como o antigo socialista típico, Platão, na corte do tirano siciliano: ele deseja (...) o Estado ditatorial cesáreo deste século, porque, como foi dito, quer ser seu herdeiro. Mas mesmo essa herança não bastaria para seus fins, ele precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado incondicionado, como nunca existiu algo igual; e como nem sequer pode contar mais com a antiga piedade religiosa para com o Estado, mas antes, sem querer, tem de trabalhar constantemente por sua eliminação - a saber, porque trabalha pela eliminação de todos os Estados vigentes -, só pode ter esperança de existência, aqui e ali, por tempos curtos, através do extremo terrorismo. Por isso prepara-se em surdina para dominar pelo pavor e inculca nas massas semicultas a palavra “justiça” como um prego na cabeça, para despojá-las totalmente de seu entendimento (depois que esse entendimento já sofreu muito através da semicultura) e criar nelas, para o mau jogo que devem jogar, uma boa consciência. - O socialismo pode servir para ensinar, bem brutal e impositivamente, o perigo de todos os acúmulos de poder estatal e, nessa medida, infundir desconfiança diante do próprio Estado. Quando sua voz rouca se junta ao grito de guerra: o máximo possível de Estado, este, num primeiro momento, se torna mais ruidoso que nunca: mas logo irrompe também o oposto, com força ainda maior: o mínimo possível de Estado.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; pág: 95)

4 de setembro de 2020

ESPÍRITO LIVRE

 

E quem adivinha algo das consequências que se alojam em toda suspeita profunda, algo dos calafrios e angústias do isolamento, aos quais toda incondicional diferença de olhar condena os que são acometidos dela, entenderá também quantas vezes eu, para descansar de mim, como que para um temporário auto-esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte - sob alguma veneração ou inimizade ou cientificidade ou leviandade ou estupidez: e também porque, onde não encontrei aquilo de que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo, criá-lo ficticiamente para mim (...e que outra coisa fizeram jamais os poetas? e para que existiria toda a arte no mundo?). (...) Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de ensaio, o caminho ainda é longo até aquela descomunal segurança e saúde transbordante, que não pode prescindir nem mesmo da doença, como um meio e anzol do conhecimento, até aquela madura liberdade do espírito que é também autodomínio e disciplina do coração e permite os caminhos para muitos e opostos modos de pensar - até aquela interior envergadura e mimo do excesso de riqueza, que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se perca em seu próprio caminho e se enamore de si e em algum canto fique sentado inebriado, até aquele excedente de forças plásticas, regeneradoras, conformadoras e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre! Nesse meio-tempo pode haver longos anos de convalescença, anos cheios de mudanças multicores, dolorosamente feiticeiras, dominadas e conduzidas pela rédea por uma tenaz vontade de saúde, que muitas vezes já ousa vestir-se e travestir-se de saúde. Há aqui um estado intermediário, de que um homem de tal destino se recorda mais tarde não sem emoção: uma pálida, refinada felicidade de sol e luz lhe é própria, um sentimento de liberdade de pássaro, panorama de pássaro, desenvoltura de pássaro, um terceiro termo, em que curiosidade e delicado desprezo se ligaram. Um ”espírito livre” - essa fria palavra faz bem naquele estado, quase aquece. Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência esquivando-se, desviando-se, esvoaçando para longe, outra vez além, outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade abaixo de si - é-se agora o reverso daqueles que se afligem com coisas que não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito doravante somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o afligem…

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 63 e 66)

O QUE É A VERDADE?

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; pág: 57)

EXISTIR SOCIALMENTE

Porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] desapareça de seu mundo. (...) Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; págs: 54 e 55)

3 de setembro de 2020

A ARTE DO DISFARCE

Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano - mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter. O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; págs: 53 e 54) 


Uma parte considerável da metafísica, que não constitui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento humano, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, constroem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 30)