30 de setembro de 2020

MODULAÇÃO GLOBAL


A modulação deleuzeana, base da sociedade de controle, que disputa os espaços nos cérebros das pessoas, usando para tal técnicas de enquadramento emocional (framing) e de imposição de temas na agenda de debates da vida cotidiana da sociedade (Agenda Setting) é tanto um recurso de poder político, social e ideológico (...) portanto, tem por poder modular, cristalizar, uma determinada subjetividade desejada na memória, no cérebro das pessoas. (...) quanto um modelo de negócios altamente lucrativo que sustenta o enorme conglomerado de mídia mundial. (...) “Globo e você, tudo a ver”. Há aqui um duplo sentido: pode significar conexão total com o telespectador, mas também que tudo o que há para se ver, para se assistir, está na Globo (pelo menos o que há de relevante). Esta construção da realidade social operada pelos meios, por intermédio de uma seleção e uma hierarquização arbitrária de eventos, produz efeitos: promove discussões sociais encapsuladas pela barreira do desconhecimento dos temas jogados no lixo das reuniões de pauta dos jornais, ou dos que nem chegaram a ela (BARROS, 1996, p.28).

Joyce Souza, Rodolfo Avelino e Sérgio Amadeu da Silveira (org.) (A Sociedade de Controle - Manipulação e Modulação nas Redes Digitais; págs: 15 e 17)


Para enfrentar o ardil ideológico de que se acha envolvida a sua mensagem na mídia, seja nos noticiários, nos comentários aos acontecimentos ou na linha de certos programas, para não falar na propaganda comercial, nossa mente ou nossa curiosidade teria de funcionar epistemologicamente todo o tempo. E isso não é fácil. Mas, se não é fácil estar permanentemente em estado de alerta, é possível saber que, não sendo um demônio que nos espreita para nos esmagar, o televisor diante do qual nos achamos não é tampouco um instrumento que nos salva. Talvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação categórica a que Wright Mills se refere: "É verdade, ouvi no noticiário das vinte horas."

Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia; pág: 137)

28 de setembro de 2020

"MAS O QUE FOI MESMO QUE ELE TEVE?"

Ao ouvirem a notícia de morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de cada um dos que estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências ou promoções tanto dos próprios juízes como dos seus conhecidos.

“Agora, certamente receberei o posto de Stábel ou de Vínikov - pensou Fiódor Vassílievitch. - Isto já me foi prometido há muito tempo, e esta promoção significa um aumento de oitocentos rublos, além da chancelaria.”
“Será preciso agora pleitear que meu cunhado seja transferido de Kalunga - pensou Piotr Ivânovitch -, minha mulher ficará muito contente. E não se poderá mais dizer que eu nunca fiz nada pelos parentes dela.”
- Bem que eu pensava que ele não se levantaria mais - disse Piotr Ivânovitch. - É pena.
- Mas o que foi mesmo que ele teve?

Além das considerações suscitadas em cada um por esta morte, sobre transferências e possíveis alterações no serviço, o próprio fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera um outro e não ele. (...) Como se a morte fosse uma aventura inerente a Ivan Ilitch apenas, e de modo nenhum a ele também. 

Lev Tolstói (A Morte de Ivan Ilitch; págs: 8, 9 e 15)

25 de setembro de 2020

DEMOCRATAS VS. REPUBLICANOS

 
Estudamos o cérebro de quinze Democratas fiéis e quinze Republicanos convictos. (...) Estudamos as atividades de seus cérebros conforme lhes era apresentada uma série de slides. (...) Nosso objetivo foi criar um conflito direto entre os aspectos impostos pela razão e evidências (dados mostrando que o candidato tinha feito algo inconsistente, sórdido, desonesto, nojento ou simplesmente ruim) e os aspectos dependentes da emoção (fortes sentimentos para com os partidos e os candidatos). O que esperávamos compreender era como, em tempo real, o cérebro negocia conflitos entre dados e desejo. (...) Ao conduzirmos nossas hipóteses esperávamos que, quando os dados colidissem com o desejo, o cérebro político de alguma maneira “racionalizasse” até chegar às conclusões desejadas. (...) Para as pessoas politicamente neutras, a incoerência também é clara, mas não perturbadora como para os eleitores convictos de um ou outro candidato. (...) Democratas e Republicanos não mostraram diferenças em suas respostas às contradições.

Os resultados mostraram que quando os eleitores convictos encaram informações perturbadoras, não é apenas provável que “racionalizem” conclusões emocionalmente tendenciosas. (...) Os circuitos neurais encarregados da regulação dos estados emocionais parecem recrutar crenças que eliminaram o sofrimento e os conflitos experimentados pelos eleitores quando confrontados com realidades desagradáveis. (...) Contudo, o cérebro político também fez algo que não prevíamos. Logo que os eleitores Republicanos e Democratas encontraram uma forma de racionalizar falsas conclusões, não apenas os circuitos neurais envolvidos nas emoções negativas foram desligados, mas os circuitos envolvidos nas emoções positivas foram acionados. O cérebro dos eleitores pareceu não se satisfazer apenas em sentir-se melhor. Trabalhou mais para se sentir bem, ativando circuitos de recompensa, dando aos eleitores uma injeção de estímulo por seu raciocínio tendencioso.

Quais são as implicações deste estudo? Uma delas é pragmática. Se você estiver fazendo uma campanha, não deve se preocupar em ofender os 30 por cento da população cujo cérebro não consegue processar as informações do seu modo, salvo se suas vidas dependerem disso (por exemplo, após um ataque ao continente dos Estados Unidos). Se você é Republicano, seu objetivo deveria ser mudar para a direita 10 a 20 por cento da população com mentes influenciáveis, e reforçar seus 30 por cento estáveis para as pesquisas de opinião. Os estrategistas Republicanos, na verdade, não têm tido problemas em rotular os californianos do Norte ou do Nordeste como “liberais frescos”. Sabem que no seu próprio partido não há espaço para esse “tipo”, e atacá-los poderá reforçar o seu próprio eleitorado. As implicações para os Democratas devem ser igualmente claras: parem de se preocupar em ofender aqueles que consideram Pat Robertson e Jerry Falwell líderes morais, porque suas mentes não vão pender para a esquerda. (...) Os eleitores “de carteirinha” (...) Eles se anulam uns aos outros, deixando que os eleitores de centro equilibrem as eleições, baseados em considerações mais racionais.

Drew Westen (O Cérebro Político; págs: 26, 27, 28 e 29)

24 de setembro de 2020

US9928462B2

Evgeny Zubkov 

 

Vamos observar a patente da Samsung denominada Apparatus and method for determining user’s mental state, em português, “Aparelho e método para determinar o estado mental do usuário”. (...) com o número US9928462B2. (...) Seu resumo é esclarecedor: Um aparelho para determinar o estado mental de um usuário em um terminal é fornecido. O aparelho inclui um coletor de dados configurado para coletar dados do sensor; um processador de dados configurado para extrair dados de recursos do sensor; e um determinador de estado mental configurado para fornecer os dados do recurso a um modelo de inferência para determinar o estado mental do usuário (US9928462B2). (...) o estado mental pode incluir uma ou mais de uma emoção, um sentimento e um estresse, cada um dos quais pode ser classificado em vários níveis inferiores. Por exemplo, emoção pode ser classificada em felicidade, prazer, tristeza, medo, etc.; sentimento pode ser classificado em bom, normal, deprimente, etc.; e o estresse pode ser classificado em alto, médio e baixo. (...) Como é possível identificar tais sensações e sentimentos? (...) quando a velocidade de digitação usando um teclado é de 23 caracteres por minuto, a frequência de uso da tecla de retrocesso é três vezes ao escrever uma mensagem, a frequência de uso de um sinal especial é cinco vezes, o número de tremores de um dispositivo é 10, uma iluminância média é de 150 Lux, e um valor numérico de uma localização específica (por exemplo, estrada) é 3, um estado de emoção classificado aplicando os dados do recurso ao modelo de inferência é “susto”, com um nível de confiança de 74% (US9928462B2). (...) As plataformas online possuem outras patentes esclarecedoras e que corroboram com a definição do processo de modulação. (...) São milhares delas, aqui apresento mais cinco, cuja denominação é suficiente para termos uma noção de sua finalidade:

US-2010088607-A1
- Sistema e método para manter o usuário sensível ao contexto (Yahoo);
US-2012272338-A1 - Gerenciamento unificado de dados de rastreamento (Apple);
US-2012226748-A1 - Identifique Especialistas e Influenciadores em uma Rede Social (Facebook);
US2018019226-3A1 - Prever o estado futuro de um usuário de dispositivo móvel (Facebook);
US20080033826-A1 - Fornecimento de anúncios baseados no humor e na personalidade (Pudding Ltd).

Joyce Souza, Rodolfo Avelino e Sérgio Amadeu da Silveira (org.) (A Sociedade de Controle - Manipulação e Modulação nas Redes Digitais; págs: 39, 40, 41 e 42)

CRIAR MUNDOS CUSTA CARO

Criar mundos custa caro. O investimento em marketing é tão importante quanto o desenvolvimento e a fabricação dos próprios produtos e consome parte considerável da verba das empresas. A pesquisa CMO Spend Survey 2017-2018 da consultoria Gartner (...) mostrou que entre os anos 2014 e 2017, os investimentos no setor estiveram em torno de 11,3% a 12,1%, em média, para cerca de 350 grandes empresas respondentes. (...) Dependendo do setor, como o do cinema norte-americano, o investimento em divulgação pode ser equivalente a 50% do quanto se gastou para produzir o filme.

Joyce Souza, Rodolfo Avelino e Sérgio Amadeu da Silveira (org.) (A Sociedade de Controle - Manipulação e Modulação nas Redes Digitais; pág: 20)

ATENDIMENTO HUMANIZADO

As pessoas são essencialmente sociais e, cada vez mais, demandam interação social com as empresas das quais compram, são sócias, ou com as quais trabalham, e assim por diante. Por exemplo, o atendimento ao cliente disponível em dias úteis, das 9h às 18h, está com os dias contados. (...) Os consumidores querem, cada vez mais, um contato humano com a empresa, nos termos dele, e no território deles. (...) Querem ouvir o que um ser humano tem a dizer, e não ler um press release. Alguém que diga como as coisas são, sem intimidá-los com mensagens corporativas óbvias. Eles querem conselhos e informações dadas honestamente. (...) Construir relacionamentos virtuais sem parecer falso.

Christer Holloman (MBA das Mídias Sociais; págs: 34 e 35)

COMPARTILHAR, COLABORAR E CRIAR

As tecnologias de Web 2.0 permitiram a realização de três primitivos e fundamentais desejos humanos: compartilhar, colaborar e criar. Dezenas de milhares de anos atrás, nossos antepassados neandertais primeiro se reuniam para compartilhar os despojos da caça, afiar ferramentas e pintar bisões nas paredes das cavernas. Hoje, pouco mudou, a não ser que as novas tecnologias vêm facilitando a realização desses três desejos primordiais.

Christer Holloman (MBA das Mídias Sociais; pág: 33)

23 de setembro de 2020

SOCIALISMO E DESPOTISMO

O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como só a teve alguma vez o despotismo, e até mesmo supera todo o passado por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual lhe aparece como um injustificado luxo da natureza e deve ser transformado e melhorado por ele em um órgão da comunidade adequado a seus fins. Em virtude de seu parentesco, ele aparece sempre na proximidade de todos os excessivos desdobramentos de potência, como o antigo socialista típico, Platão, na corte do tirano siciliano: ele deseja (...) o Estado ditatorial cesáreo deste século, porque, como foi dito, quer ser seu herdeiro. Mas mesmo essa herança não bastaria para seus fins, ele precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado incondicionado, como nunca existiu algo igual; e como nem sequer pode contar mais com a antiga piedade religiosa para com o Estado, mas antes, sem querer, tem de trabalhar constantemente por sua eliminação - a saber, porque trabalha pela eliminação de todos os Estados vigentes -, só pode ter esperança de existência, aqui e ali, por tempos curtos, através do extremo terrorismo. Por isso prepara-se em surdina para dominar pelo pavor e inculca nas massas semicultas a palavra “justiça” como um prego na cabeça, para despojá-las totalmente de seu entendimento (depois que esse entendimento já sofreu muito através da semicultura) e criar nelas, para o mau jogo que devem jogar, uma boa consciência. - O socialismo pode servir para ensinar, bem brutal e impositivamente, o perigo de todos os acúmulos de poder estatal e, nessa medida, infundir desconfiança diante do próprio Estado. Quando sua voz rouca se junta ao grito de guerra: o máximo possível de Estado, este, num primeiro momento, se torna mais ruidoso que nunca: mas logo irrompe também o oposto, com força ainda maior: o mínimo possível de Estado.

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; pág: 95)

21 de setembro de 2020

EQUIPES E CONFLITOS

Montar uma equipe autônoma é mais fácil na fase inicial de desenvolvimento de uma empresa, antes que as estruturas organizacionais se cristalizem e que a disputa por poder e recursos esteja oficializada. (...) Quando se reúne gente de especialidades e formações tão diversas, é quase certo que surjam opiniões e prioridades distintas - e, às vezes, conflitantes. Em geral, engenheiros gostam de trabalhar em projetos desafiadores do ponto de vista tecnológico, sem se importar se as soluções encontradas terão impacto relevante no crescimento. Gerentes de produto normalmente são obcecados pelo desenvolvimento e lançamento de produtos e talvez percam a paciência se o pessoal de marketing e vendas pedir alguma mudança de última hora sem um bom fundamento comercial. Designers de experiência do usuário costumam resistir ao acréscimo de recursos em caráter experimental, porque não querem causar transtornos a usuários já satisfeitos. Os especialistas em marketing podem ficar presos a métricas superficiais, como o número de visitantes do site ou de leads, e se esquecer da necessidade de melhorar indicadores de desempenho em outras partes do funil, como a retenção de usuários.

Sean Ellis & Morgan Brown (Hacking Growth; págs: 56, 58 e 59)

18 de setembro de 2020

SOBRE EMPREENDER

Pense bem: se você acha que consegue montar um negócio da China e não consegue convencer seus dois melhores amigos e [ou] colegas de trabalho [pelo menos um, em último caso] da sua proposição, por que você me convenceria ou, de outra forma, a qualquer outro analista, consultor, investidor, cliente ou consumidor? (...) Querer empreender não significa poder empreender. É preciso preparo, dedicação, foco. E autocrítica. (...) Um problema muito sério de todos os times é que não há um time ideal, onde todo mundo tem os mesmos níveis de competência e está disposto a enfrentar tudo, o tempo todo. Uma pesquisa recente [e global] mostra que os líderes gastam 17% de seu tempo gerenciando pessoas que têm [ou estão com] performance abaixo da média. (...) Nigel Basset-Jones defende com muita razão a ideia de que diversidade é uma fonte de criatividade e inovação, MAS que as diferenças culturais, de bases, processos e métodos, de visão de mundo, se não forem apropriadamente administradas, vão resultar em conflitos, suspeitas e desentendimentos que podem pôr o negócio a perder. (...) O grande aprendizado de um negócio, especialmente no longo prazo, é equilibrar todas essas forças, o tempo todo, ao redor de objetivos compartilhados por quase todos, quase o tempo todo. (...) Se nosso negócio funcionar como STARTUP, CONJUNÇÃO DE TRABALHO E PESSOAS, TIMES COESOS RESOLVENDO PROBLEMAS. Descobrimos que estes times têm que ter pessoas exercendo papéis de ESCLARECER o que tem que ser feito, IDEALIZAR as soluções, DESENVOLVER o que é preciso para fazê-las funcionar e IMPLEMENTAR o resultado no mercado. (...) E no LONGO PRAZO, porque no curto, muito pouco - ou nada - se faz.

DeCusatis diz que é necessário prestar muita atenção quando se quer criar e inovar, ao cuidar dos times, pessoas e seus papéis no processo. (...) Primeiro, é preciso ESCLARECER o que tem que ser feito: qual é o problema; por que ele é um problema, em algum ou todos os contextos; quais são as consequências de não resolvê-lo; o que se ganha por resolvê-lo… e por aí vai. Segundo, é preciso IDEALIZAR as possíveis soluções: aqui é onde nós quase sempre conseguimos apontar para os criativos, para os inventores, para as pessoas que têm as ideias para fazer coisas novas, porque pensam fora de suas caixas [ou nem caixa têm]. Mas não necessariamente: é possível estruturar um processo de desenvolvimento de ideias e sua prototipação, de maneira formal e instrumentada e, de mais de uma forma, direcionar e organizar o caos criativo. O C.E.S.A.R faz exatamente isso no PIC, Processo de inovação do C.E.S.A.R, que foi a principal razão do último Prêmio Nacional FINEP de Inovação ganho pela casa. Terceiro, DeCusatis aponta para a necessidade de DESENVOLVER a solução, na prática. Não estamos falando apenas do desenvolvimento de um produto qualquer, como no caso de desenvolver, no sentido de escrever, software. Mas de todo o processo envolvido em criar as condições para que o produto exista. (...) Finalmente, é preciso IMPLEMENTAR a sua solução: (...) isso exige um conjunto muito especial de competências. Imagine que seu produto precise, por exemplo, de uma rede de distribuição, atendimento e manutenção. Isso, hoje, é mais fácil do que há cinquenta anos, quando o conceito de terceirização ainda nem tinha aparecido; mesmo assim, você terá que criar e implementar todo o processo de suas redes, desde [talvez] a imagem das lojas e os manuais de atendimento até o treinamento do pessoal e auditoria de qualidade. Porque, ao fim e ao cabo, o produto é seu e a responsabilidade, você bem sabe, é sua.

Silvio Meira (Novos Negócios Inovadores de Crescimento Empreendedor no Brasil; págs: 91, 92, 94, 95, 101 e 103)

13 de setembro de 2020

POR LIVRE E ESPONTÂNEA OPRESSÃO

Josan Gonzalez 

Na Idade Média havia a inquisição. Foi um fracasso. Seu intuito era erradicar a heresia e acabou por perpetuá-la. Para cada herege queimado na fogueira, milhares de outros surgiram. Por que isso? Porque a inquisição matava seus inimigos às claras, e os matava sem que houvessem se arrependido; na verdade, matava-os porque não se arrependiam. As pessoas morriam porque não renunciavam a suas verdadeiras crenças. Naturalmente, toda a glória ficava com a vítima e toda a vergonha com o inquisidor que a mandara para a fogueira. Mais tarde, no século xx, vieram os totalitários, como eram chamados. Os nazistas alemães e os comunistas russos. A perseguição que os russos faziam às heresias era ainda mais cruel que a da Inquisição. Eles imaginavam que tinham aprendido com os erros do passado; pelo menos sabiam que não podiam produzir mártires. Antes de expor as vítimas a julgamentos públicos, tratavam de destruir deliberadamente sua dignidade. Arrasavam-nas por meio de tortura e solidão, até transformá-las em criaturas lamentáveis, amedrontadas e desprezíveis, dispostas a confessar tudo o que lhes pusessem na boca, cobrindo-se a si próprios de injúrias, fazendo acusações e protegendo-se umas atrás das outras, suplicando clemência. E, não obstante isso, passados alguns anos acontecia a mesma coisa. Os mortos tornavam-se mártires e sua degradação era esquecida. Me diga, uma vez mais, por que isso acontecia? Em primeiro lugar, porque suas confissões tinham sido evidentemente extorquidas e eram falsas. Não cometemos esse tipo de erro. Todas as confissões proferidas aqui são verdadeiras. Fazemos com que sejam verdadeiras. E, sobretudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós. (...) Somos diferentes dos perseguidores do passado? Não nos contentamos com a obediência negativa nem com a submissão mais abjeta. Quando finalmente se render a nós, terá de ser por livre e espontânea vontade. Não destruímos o herege porque ele resiste a nós; enquanto ele se mostrar resistente, jamais o destruiremos. Nós o convertemos, capturamos o âmago de sua mente, remodelamos o herege.

George Orwell (1984; págs: 297, 298 e 299)

12 de setembro de 2020

PODER NÃO É UM MEIO, MAS UM FIM

Ela já sabia o que O’Brien ia dizer. Que o Partido não desejava o poder em benefício próprio, mas para o bem da maioria. Que precisava ter poder porque as massas eram compostas de pessoas frágeis e covardes que não aguentam a liberdade, não conseguem encarar a verdade e precisam ser governadas e iludidas sistematicamente por outras pessoas mais fortes do que elas. Que a humanidade deve optar entre liberdade, felicidade e que, para a esmagadora maioria da população, felicidade era o melhor. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma congregação dedicada que fazia o mal para que prevalecesse o bem, que sacrificava a própria felicidade em benefício da felicidade dos demais. (...) Tudo se justificava em função do propósito maior. Que se pode fazer, pensou Winston, contra um maluco que é mais inteligente do que você e presta atenção nos seus argumentos, mas que no fim não faz mais que persistir em sua loucura? (...) O Partido deseja o poder exclusivamente em benefício próprio. Não estamos interessados no bem dos outros; só nos interessa o poder em si. (...) Sabemos que ninguém toma o poder com o objetivo de abandoná-lo. Poder não é um meio, mas um fim. Não se estabelece uma ditadura para proteger uma revolução. Faz-se a revolução para instalar a ditadura. (...) Os socialistas da velha escola, treinados para lutar contra uma coisa chamada “privilégio de classe”, partiam do princípio de que o que não é hereditário não pode ser permanente. Não percebiam que a permanência de uma oligarquia não precisa ser física, nem paravam para pensar que as aristocracias hereditárias sempre foram de curta duração, ao passo que já aconteceu de organizações de adoção, como a igreja católica, durarem centenas e mesmo milhares de anos. A essência da regra oligárquica não é a hereditariedade de pai para filho, mas a persistência de determinada visão de mundo e de um certo estilo de vida impostos pelos mortos sobre os vivos. Um grupo dominante continua sendo um grupo dominante enquanto puder nomear seus sucessores. O partido não está preocupado com a perpetuação do seu sangue, mas com a perpetuação de si mesmo. Não importa quem exerce o poder, contanto que a estrutura hierárquica permaneça imutável.

George Orwell (1984; págs: 247, 306, 307 e 308)

9 de setembro de 2020

"FÚRIA CONTRA A LUZ QUE JÁ NÃO FULGURA"

Não adentre a boa noite apenas com ternura,
A velhice queima e clama ao cair do dia,
Fúria, fúria contra a luz que já não fulgura.
Embora os sábios, no fim da vida, saibam que é a treva que perdura,
Pois suas palavras não mais capturam a centelha tardia.
Não adentre a boa noite apenas com ternura,
Fúria, fúria contra a luz que já não fulgura…

Dylan Thomas

4 de setembro de 2020

ESPÍRITO LIVRE

 

E quem adivinha algo das consequências que se alojam em toda suspeita profunda, algo dos calafrios e angústias do isolamento, aos quais toda incondicional diferença de olhar condena os que são acometidos dela, entenderá também quantas vezes eu, para descansar de mim, como que para um temporário auto-esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte - sob alguma veneração ou inimizade ou cientificidade ou leviandade ou estupidez: e também porque, onde não encontrei aquilo de que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo, criá-lo ficticiamente para mim (...e que outra coisa fizeram jamais os poetas? e para que existiria toda a arte no mundo?). (...) Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de ensaio, o caminho ainda é longo até aquela descomunal segurança e saúde transbordante, que não pode prescindir nem mesmo da doença, como um meio e anzol do conhecimento, até aquela madura liberdade do espírito que é também autodomínio e disciplina do coração e permite os caminhos para muitos e opostos modos de pensar - até aquela interior envergadura e mimo do excesso de riqueza, que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se perca em seu próprio caminho e se enamore de si e em algum canto fique sentado inebriado, até aquele excedente de forças plásticas, regeneradoras, conformadoras e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre! Nesse meio-tempo pode haver longos anos de convalescença, anos cheios de mudanças multicores, dolorosamente feiticeiras, dominadas e conduzidas pela rédea por uma tenaz vontade de saúde, que muitas vezes já ousa vestir-se e travestir-se de saúde. Há aqui um estado intermediário, de que um homem de tal destino se recorda mais tarde não sem emoção: uma pálida, refinada felicidade de sol e luz lhe é própria, um sentimento de liberdade de pássaro, panorama de pássaro, desenvoltura de pássaro, um terceiro termo, em que curiosidade e delicado desprezo se ligaram. Um ”espírito livre” - essa fria palavra faz bem naquele estado, quase aquece. Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência esquivando-se, desviando-se, esvoaçando para longe, outra vez além, outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade abaixo de si - é-se agora o reverso daqueles que se afligem com coisas que não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito doravante somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o afligem…

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 63 e 66)

O QUE É A VERDADE?

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; pág: 57)

EXISTIR SOCIALMENTE

Porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] desapareça de seu mundo. (...) Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; págs: 54 e 55)

3 de setembro de 2020

A UTOPIA COLETIVISTA

Havia um bom tempo sabia-se que a única base segura para a oligarquia é o coletivismo. Riqueza e privilégio são defendidos com grande eficácia quando possuídos conjuntamente. A assim chamada “abolição da propriedade privada”, ocorrida nos anos intermediários do século, na verdade significara concentração da propriedade num número muito menor de mãos: mas com a diferença de que os novos proprietários eram um grupo, e não uma massa de indivíduos. Nenhum membro do Partido possui nada individualmente, com exceção de bens pessoais insignificantes. Coletivamente, o Partido possui tudo o que há na Oceânia, pois controla todas as coisas e dispõe dos produtos como bem entende. Nos anos que se seguiram à revolução, teve oportunidade de ocupar essa posição de comando praticamente sem oposição, pois o processo como um todo era representado como um ato de coletivização. Sempre se acreditara que se a expropriação da classe capitalista ocorresse, o socialismo adviria daí: e inquestionavelmente os capitalistas haviam sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transporte - tudo lhes fora confiscado: e visto que essas coisas haviam deixado de ser propriedade privada, concluía-se que com certeza agora eram propriedade pública.

George Orwell (1984; pág: 243)

A ARTE DO DISFARCE

Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano - mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter. O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; págs: 53 e 54) 


Uma parte considerável da metafísica, que não constitui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento humano, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, constroem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 30)

2 de setembro de 2020

BEM VIVER

Meus amigos saboreiam com prazer e sem manipulação alimentos e bebidas, porque esperam o desejo para comer e beber. O sono lhes é mais agradável que aos ociosos; interrompem-no sem pesar e não lhe sacrificam seus negócios. Jovens, sentem-se felizes dos elogios dos anciãos. Velhos, recebem felizes os respeitos da juventude. Recordam com prazer as ações do passado e realizam prazerosos o que lhes resta fazer. Por virtude minha, são amados dos deuses, caros aos amigos, honrados da pátria. Ao soar a hora fatal, não dormem no esquecimento sem honra, mas sua memória resplandece, celebrada pela eternidade.

Sócrates (Xenofonte - Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates; pág: 128)

SER ARTISTA

A arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. (...) O estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento. (...) Individuação como o primeiro fundamento do mal, a arte como a alegre esperança de que o exílio da individuação pode ser rompido, como o pressentimento de uma unidade restaurada.

Friedrich Nietzsche (O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música; págs: 31 e 32)

Precisamos da mentira para triunfar sobre essa realidade, essa “verdade”, isto é, para viver… Se a mentira é necessária para viver, até isso faz parte desse caráter terrível e problemático da existência. A metafísica, a moral, a religião, a ciência - são tomadas em consideração nesse livro apenas como diferentes formas da mentira: com seu auxílio acredita-se na vida. “A vida deve infundir confiança”: o problema, assim colocado, é descomunal. Para resolvê-lo, o homem tem de ser mentiroso, já por natureza, precisa, mais do que qualquer outra coisa, ser artista. E ele o é: metafísica, religião, moral, ciência - tudo isso são rebentos de sua vontade de arte, de mentira, de fuga da “verdade”. (...) A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida. A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence. A arte como a redenção do que conhece - daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico. A arte como a redenção do que age - daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói. A arte como a redenção do que sofre - como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.

Friedrich Nietzsche (A Arte em “O Nascimento da Tragédia”; págs: 49 e 50)  

Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimento se possui, além de gosto delicado e de rápida compreensão, um conhecimento exato da estrutura interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das diversas espécies de sentimentos que distinguem o vício e a virtude.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 29) 

1 de setembro de 2020

O BATER DE ASAS DA NOSTALGIA

 

Queremos ouvir e ao mesmo tempo aspiramos a ir além do ouvir. Aquela aspiração pelo infinito, o bater de asas da nostalgia, por ocasião do supremo prazer diante da efetividade claramente percebida, recordam que em ambos os estados devemos reconhecer um fenômeno dionisíaco, que nos revela sempre de novo o construir e demolir lúdicos do mundo individual como a efusão de um prazer primordial, de maneira semelhante a como Heráclito o Obscuro compara a força formadora do mundo a uma criança que ludicamente põe pedras para cá e para lá, e faz montes de areia e os desmantela.

Friedrich Nietzsche (O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música; pág: 44)