28 de fevereiro de 2015

AUTÔMATO GLOBAL

A crise [2008] foi fermentada nos caldeirões da nova economia, uma economia definida por um aumento substancial da produtividade gerado pela inovação tecnológica, pela formação de redes e pelos níveis educacionais mais altos da mão-de-obra. (...) De fato, se nos concentrarmos nos Estados Unidos, onde a crise teve início, veremos que, entre 1998 e 2008, o crescimento cumulativo da produtividade chegou a quase 30%. Todavia, por causa de políticas gerenciais míopes e gananciosas, os salários reais só subiram 2% durante a década e, na verdade, a remuneração semanal dos trabalhadores formado no ensino superior caiu 6% entre 2003 e 2008. Ainda assim, os preços dos imóveis disparam na década de 2000 e as instituições provedoras de empréstimos alimentaram esse frenesi fornecendo hipotecas, respaldadas em última instância por instituições federais, àqueles mesmos trabalhadores cujos salários estavam estagnados ou em retração. A idéia era a de que os aumentos de produtividade acabariam por chegar aos salários à medida que os benefícios do crescimento fossem sendo lentamente decantados até a base dos trabalhadores. Isso nunca aconteceu porque as empresas financeiras e imobiliárias colheram os benefícios da economia produtiva, induzindo uma bolha insustentável.
 
A cota de lucro do setor de serviços financeiros passou de 10% na década de 1980 para 40% em 2007, e o valor de suas ações, de 6% para 23%, ao passo que o setor corresponde a apenas 5% do emprego no setor privado. Em suma, os benefícios bastante reais da nova economia foram apropriados pelo mercado de valores mobiliários e usados para gerar uma massa muito maior de capital virtual que multiplicou seu valor por meio de empréstimos a consumidores/tomadores de empréstimos ávidos. Além disso, a expansão da economia global, com a ascensão da China, Índia, Brasil e Rússia, além de outras economias em vias de industrialização, para a vanguarda do crescimento capitalista aumentou o risco de colapso financeiro com o empréstimo do capital acumulado nesses países para os Estados Unidos e outros mercados a fim de sustentar a solvência e a capacidade de importação dessas economias e, ao mesmo tempo, tirar proveito das taxas favoráveis de empréstimo. O gasto militar maciço do governo dos EUA para financiar suas aventuras no Iraque também foi financiado por meio de dívida, tanto que países asiáticos agora possuem uma grande porcentagem dos Títulos do Tesouro Americano, entrelaçando de maneira decisiva a política fiscal dos EUA e da Ásia/Pacífico. Embora a inflação tenha sido mantida relativamente sob controle em todos os países da OCDE por causa do significativo aumento da produtividade, houve, como propus em minha análise, uma ampliação do hiato entre a escala de provimento de empréstimos e a capacidade tanto dos consumidores quanto das instituições de saldá-los.
 
A taxa de endividamento em relação à renda disponível das famílias nos Estados Unidos subiu de 3% em 1998 para 130% em 2008; Por conseguinte, o percentual de mora nas hipotecas de baixo risco subiu de 2,5% em 1998 para 118% em 2008. Todavia, ninguém podia fazer muita coisa a respeito porque o mercado financeiro global havia fugido do controle de qualquer investidor, governo ou agência reguladora e havia se tornado o que, neste livro, chamei de um "autômato global" que impõe sua lógica à economia e à sociedade em geral, inclusive aos seus próprios criadores. Assim, uma crise financeira de proporções sem precedentes acontece em todo o mundo neste exato momento em que escrevo estas palavras, pondo fim, de forma dramática, ao mito do mercado auto-regulado, questionando a relevância de algumas teorias econômicas tradicionais e fazendo com que governos e empresas tentem freneticamente domar o autômato selvagem que deu marcha a ré e devorou diariamente dezenas de milhares de empregos (no sentido de vidas familiares). Há uma busca urgente de remédios estabilizadores, mas temo que, ao procurar soluções nas fórmulas dos cursos básicos de economia, ficaremos perdidos no mundo escuro resultante da incapacidade de regular um novo tipo de economia regido por novas condições tecnológicas.

Manuel Castells (A Era da Informação: A Sociedade em Rede - Prefácio; págs: IV, V e VI)

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