30 de julho de 2021

NÃO IMPORTA QUANTO TREINAMENTO VOCÊ TEVE

Charles Lindbergh

Não importa quanto treinamento você teve”, Lindbergh diria mais tarde, “seu primeiro solo é muito diferente de todos os outros vôos. Você está completamente independente, inacessível, sem nenhuma possibilidade de ajuda, totalmente responsável por si próprio, e terrivelmente sozinho no espaço.”

A. Scott Berg (Lindbergh – Uma Biografia; pág: 95)

A DEUSA E O SANTO GRAAL

Maria Madalena (1525), Escola de Leonardo da Vinci (Bernardino Luini) - National Gallery, Washington

Chamamos esse símbolo de cálice. (...) Lembra um copo, ou receptáculo, e, o mais importante, lembra o formato de um útero feminino. Esse símbolo transmite a ideia de feminilidade, maturidade da mulher e fertilidade. (...) A lenda nos diz que o Santo Graal é um cálice - uma taça. Mas a descrição do Graal como cálice na verdade é uma alegoria para proteger a sua verdadeira natureza. Ou seja, a lenda usa o cálice como metáfora para uma coisa muito mais importante. (...) Uma mulher. (...) O Graal é literalmente o símbolo antigo da feminilidade, e o Santo Graal representa o sagrado feminino e a deusa, o que, naturalmente, se perdeu nos dias de hoje, praticamente eliminado pela igreja. O poder da mulher e sua capacidade de gerar vida já foi muito sagrado, mas ameaçava a ascensão da Igreja Católica predominantemente masculina, de forma que o sagrado feminino foi demonizado e considerado impuro. Foi o homem, não Deus, que criou o conceito de “pecado original”, mediante o qual Eva provou da maçã e causou a queda da raça humana. A mulher, que antes era considerada sagrada, porque dava a vida, agora era o inimigo. (...) Esse conceito de mulher como aquela que dá a vida foi a base da religião antiga. O nascimento de uma criança era um evento místico e poderoso. Lamentavelmente, a filosofia cristã decidiu fraudar o poder criador da mulher, ignorando a verdade biológica e tornando o homem Criador. O Gênesis nos diz que Eva nasceu da costela de Adão. A mulher se tornou uma ramificação do homem. E, ainda por cima, pecaminosa. O Gênesis foi o início do fim da deusa.

Dan Brown (O Código Da Vinci; pág: 195)

23 de julho de 2021

TUDO É DIFÍCIL NO COMEÇO


Mas lembro ao iniciante que tudo é difícil no começo: seja esticar a corda de um arco, seja brandir uma naginata. Contudo, depois de estarmos familiarizados, o arco se torna poderoso, e a própria espada longa, após o devido treinamento, se torna de fácil manejo, desde que se leve em conta a força dos mandamentos. Nos mandamentos da espada longa, o manejo rápido não é essencial. (...) A verdadeira orientação dos mandamentos da espada longa consiste em usá-la quando se dispõe de espaço amplo, deixando a espada curta para os espaços exíguos.

Musashi (O Livro dos Cinco Anéis; págs: 62 e 63)

22 de julho de 2021

COBIÇA E MEDO

Summers [Larry] concebe a economia americana como uma série de circuitos de feedbacks. Um feedback simples é aquele entre oferta e demanda. Imagine que você montou uma barraca para vender limonada. Se você abaixa o preço do produto, as vendas sobem; se aumenta, elas caem. Se está lucrando muito porque está fazendo 38 graus Celsius e você é o único a vender limonada no quarteirão, o menino mala sem alça que mora do outro lado da rua abrirá sua própria barraca para vender limonada, e você precisará diminuir seu preço. A relação entre oferta e procura é um exemplo de feedback negativo: à medida que os preços sobem, as vendas caem. Apesar do nome, essas respostas são boas para a economia de mercado. Imagine se o contrário acontecesse e as vendas subissem junto com os preços. (...) Essa situação seria um exemplo de feedback positivo. E, embora pareça uma coisa boa à primeira vista, você logo se dará conta de que todos no país terão ido à falência por causa da limonada. Não sobraria ninguém para fabricar os videogames que você pretendia comprar com seus lucros.

Normalmente, na visão de Summers, os feedbacks negativos predominam na economia americana, funcionando como uma espécie de termostato que a impede de entrar em recessão ou de superaquecer. Summers acredita que um dos mais importantes feedbacks ocorre entre o que ele chama de medo e cobiça. Alguns investidores mostram pouco apetite para risco, e outros mostram muito, mas suas preferências se compensam, criando um equilíbrio: se o preço de determinada ação cai porque a situação financeira de uma empresa se deteriorou, o investidor temeroso vende suas ações para um comprador ganancioso, que espera transformar a compra em futura vantagem. No entanto, cobiça e medo são variáveis voláteis, e o equilíbrio pode ser perdido. Quando há excesso de cobiça no sistema, ocorre uma bolha. Quando há excesso de medo, existe pânico.

Nate Silver (O Sinal e o Ruído; págs: 45 e 46)

21 de julho de 2021

ENTRE PONTAPÉS E ALGUNS TROCADOS


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Uma trilha dedicada à geração coca-cola com cachorro-quente, cannabis e skate no pé!


WINES AND BALLADS


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MOTORCYCLE ROUTE CLUB


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Nesse ponto da estrada, a trilha é sonora. Ligue sua motocicleta, beba um drink e sinta bater o ar que só existe no caminho.


RISCO E INCERTEZA

Risco, conforme explicitado pelo economista Frank H. Knight em 1921, é algo em que você pode colocar um preço. Digamos que você vá ganhar uma rodada de pôquer a menos que seu adversário tenha um inside straight: as chances são exatamente de uma em onze. Isso representa um risco. Não é agradável perdermos uma rodada no pôquer, mas pelo menos sabemos quais são as chances e podemos nos preparar para essa eventualidade. A longo prazo, ganharíamos dinheiro com o fato de nossos adversários tentarem jogadas desesperadas mesmo quando as probabilidades são insuficientes. Incerteza, por outro lado, é o risco difícil de aferir. Podemos ter uma consciência difusa dos demônios que nos espreitam lá fora. Podemos até estar bastante preocupados com eles. Mas, na realidade, não temos ideia de quantos são e de quando podem atacar. Sua estimativa rabiscada às pressas pode estar errada por um fator de cem ou de mil; não há meio seguro para saber. Isso é incerteza. O risco lubrifica as engrenagens da economia de livre mercado, a incerteza é o cascalho que faz a engrenagem emperrar.

Nate Silver (O Sinal e o Ruído; pág: 36)

19 de julho de 2021

VIRTÙ E FORTUNA

A palavra virtù, definida em breve síntese, consiste na faculdade de compreender exatamente toda e qualquer situação de fato, e nela fazer intervir, para modificá-la. (...) É a capacidade intelectual de penetrar as situações em sua realidade fundamental, quanto a vontade de transformá-las segundo as próprias finalidades. (...) A palavra fortuna, geralmente traduzida por sorte, acaso ou força invencível a que se atribuem o rumo e os diversos acontecimentos da vida. (...) Fortuna e virtù são, para Maquiavel, sínteses do poder.

Nota da editora

Nicolau Maquiavel (O Príncipe; págs: 23 e 24)

16 de julho de 2021

EMPREGO 2050

Evgeny Zubkov

Mudanças de ocupação eram possíveis porque a mudança do campo para a fábrica e da fábrica para o supermercado só exigiam um retreinamento limitado. Em 2050, porém, um caixa ou um operário da indústria têxtil que perder seu emprego para um robô dificilmente estará apto a começar a trabalhar como oncologista, como operador de drone ou como parte de uma equipe humanos-IA num banco. Não terão as habilidades necessárias. (...) Muita gente poderia compartilhar do destino não dos condutores de carroça do século xix - que passaram a ser taxistas -, mas dos cavalos do século xix, que foram progressivamente expulsos do mercado de trabalho. Além disso, nenhum dos empregos humanos que sobrarem estará livre da ameaça da automação, porque o aprendizado de máquina e a robótica continuarão a se aprimorar. (...) O que você fará quando ninguém precisar de sua mão de obra barata e desqualificada, e você não tiver recursos para criar um bom sistema de educação e retreiná-la? (...) Já hoje poucos empregados esperam permanecer no mesmo emprego por toda a vida. Em 2050 não apenas a ideia de “um emprego para a vida inteira” mas até mesmo a ideia de “uma profissão para a vida inteira” parecerão antidiluvianas.

Yuval Noah Harari (21 Lições para o Século 21; págs: 53, 56 e 65)

OS LOOPS DOS HÁBITOS


Hábitos em sua definição técnica: as escolhas que todos fazemos deliberadamente em algum momento, e nas quais paramos de pensar depois mas continuamos fazendo, normalmente todo dia. (...) Mecanismos subconscientes que impactam as inúmeras escolhas que parecem ser fruto de um pensamento racional, mas na verdade são influenciadas por impulsos que a maioria de nós mal reconhece ou compreende. (...) Sem os loops dos hábitos, nossos cérebros entrariam em pane, sobrecarregados com as minúcias da vida cotidiana. (...) Esse processo dentro dos nossos cérebros é um loop de três estágios. Primeiro há uma deixa, um estímulo que manda seu cérebro entrar em modo automático, e indica qual hábito ele deve usar. Depois há a rotina, que pode ser física, mental ou emocional. Finalmente, há uma recompensa, que ajuda seu cérebro a saber se vale a pena memorizar este loop específico para o futuro. (...) As deixas podem ser quase qualquer coisa, desde um estímulo visual, como um doce ou um comercial de tevê, até certo lugar, uma hora do dia, uma emoção, uma sequência de pensamentos, ou a companhia de pessoas específicas. As rotinas podem ser incrivelmente complexas ou fantasticamente simples (alguns hábitos, como aqueles relacionados a emoções, são medidos em milissegundos). As recompensas podem variar desde comida ou drogas que causam sensações físicas, até compensações emocionais, tais como os sentimentos de orgulho que acompanham os elogios ou as autocongratulações. (...) É assim que novos hábitos são criados: juntando uma deixa, uma rotina e uma recompensa, e então cultivando um anseio que movimente o loop.

Charles Duhigg (O Poder do Hábito; págs: 15, 24, 36, 38, 42, 43 e 66)

15 de julho de 2021

SOMOS TODOS CAPAZES DE SERMOS NAZISTAS

Stanley Milgram

Talvez a demonstração mais famosa da reação humana a sistemas tenha sido o experimento de Milgram sobre obediência a figuras de autoridade, realizado no início da década de 1960 na Universidade Yale. O experimento era simples e, aos olhos modernos, um tanto cruel. Também era devastador e poderoso, e é ensinado no primeiro ano de todas as faculdades de psicologia. O Dr. Stanley Milgram, professor de Yale, tinha uma pergunta que era um bocado pertinente naquela época. Três meses antes de os testes começarem, Adolf Eichmann, o arquiteto do Holocausto, foi a julgamento. Uma das questões mais perenes a respeito do Holocausto é como tantos milhões de pessoas poderiam ser cúmplices solícitos de tal horror. Será que os alemães eram fundamentalmente repreensíveis do ponto de vista moral? Havia algo intrinsecamente mau na constituição cultural deles? Ou será que eles estavam de fato apenas cumprindo ordens? É muito fácil olhar para crimes contra a humanidade e culpar os indivíduos por suas ações. É a coisa certa a se fazer, não é? No entanto, a pergunta a que Milgram queria responder é: os americanos comuns são tão diferentes assim dos alemães? Será que eles teriam reagido de maneira diferente na mesma situação? E a resposta desconfortável é não, os americanos não teriam reagido de modo distinto. Na verdade, se levarmos em conta quantos países e quantas culturas replicaram o experimento, ninguém teria. Na situação propícia, somos todos capazes de sermos nazistas.

A experiência funcionava da seguinte maneira: alguém usando um jaleco branco (que dava um verniz de autoridade científica) dizia ao sujeito, uma pessoa comum, para administrar choques elétricos cada vez mais fortes a um terceiro indivíduo, um ator, que estava em outra sala. O sujeito ouvia o ator, mas não conseguia vê-lo. Conforme os choques aumentavam, o ator começava a gritar e implorar. Em dado momento, o ator (que em algumas versões do experimento dizia ao sujeito que tinha um problema cardíaco) começava a bater na parede, berrando para que o experimento fosse interrompido. Por fim, ele ficava em silêncio. Algumas pessoas paravam em 135 volts, enquanto o ator gritava, e perguntavam sobre o propósito do experimento. Quase todas continuavam depois que lhes asseguravam que elas não seriam responsabilizadas. Alguns sujeitos começavam a rir nervosamente ao ouvirem os uivos de agonia vindos da sala ao lado. Quando o sujeito queria parar, o "cientista" simplesmente dizia: "Por favor, continue." E, se o sujeito não quisesse continuar, o cientista falava: "O experimento requer que você continue." Se ainda assim não houvesse nenhum movimento, o cientista acrescentava: "É fundamental que você continue." Quase todos os sujeitos pareciam estar sob alto nível de estresse e suavam muito. Apresentavam pulso e temperatura elevados conforme o instinto de "luta ou fuga" assumia o comando. Então, se ainda assim não apertassem o botão, o cientista tentava uma última vez. "Você não tem outra escolha. Precisa continuar."

Quase todos iam em frente, dando o último choque em alguém que estivera gritando e então se calara. No artigo "The Perils of Obedience" [Os perigos da obediência], de 1974, Milgram resumiu as implicações do estudo da seguinte forma:

Pessoas comuns, simplesmente fazendo seu trabalho, e sem qualquer hostilidade pessoal específica, podem se tornar agentes de um terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo quando os efeitos destrutivos de seu trabalho se tornam evidentes e pedem que elas executem ações incompatíveis com padrões morais fundamentais, relativamente poucas pessoas têm os recursos necessários para resistir à autoridade.

Quando esse experimento é debatido em sala de aula, em geral destaca-se para os alunos que o culpado é o sistema dentro do qual as pessoas comuns agiram, e não os próprios indivíduos. Mas internalizar essa lição é uma tarefa difícil, porque, se aceitarmos que é verdadeira, o que ela diz sobre você?

Jeff Sutherland & J.J. Sutherland (Scrum: a arte de fazer o dobro do trabalho na metade do tempo; págs: 68, 69 e 70)

14 de julho de 2021

SCRUM

Chamei de “Scrum” essa estrutura de trabalho em equipe. O termo vem do rúgbi, e se refere à maneira como um time se une para avançar com a bola pelo campo. (...) O Scrum pergunta por que tanto tempo e esforço são gastos na realização de uma tarefa, e por que somos tão ruins em prever o tempo e o esforço que as atividades vão exigir. (...) O Scrum acolhe a incerteza e a criatividade. Cria um alicerce para o aprendizado, permitindo que as equipes avaliem o que já criaram e de que forma o criaram. (...) Na essência, o Scrum se baseia em uma ideia simples: quando começamos um projeto, por que não verificar a intervalos regulares se ele está indo no caminho certo e se aquilo é realmente o que as pessoas querem? E por que não se perguntar se é possível aprimorar a forma como você está trabalhando para obter resultados melhores e mais rápidos, e o que poderia estar impedindo você de fazer isso? O nome disso é ciclo de “inspeção e adaptação”.

Jeff Sutherland & J.J. Sutherland (Scrum: a arte de fazer o dobro do trabalho na metade do tempo; págs: 16 e 17)

O PODER


O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal. constituída historicamente. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado. O aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa. Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política. O corpo só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistema político de dominação característico do poder disciplinar.

Roberto Machado

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 10, 12, 13, 14, 16, 17)


De fato, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por função única reproduzir as relações de produção. As redes da dominação e os circuitos da exploração se recobrem, se apóiam e interferem uns nos outros, mas não coincidem. (...) O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força. Questão: se o poder se exerce, o que é este exercício? em que consiste, qual é sua mecânica? (...) O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 160, 175, 183)


Embora não haja dúvida de que o poder é uma motivação humana muito básica, também é inegável que se trata de uma força "relacional", no sentido de que implica inevitavelmente uma relação entre dois ou mais protagonistas. Portanto, não basta medir o poder usando indicadores indiretos, como quem tem o maior exército, as maiores fortunas, a maior população ou o maior número de eleitores ou fiéis. Ninguém circula por aí com uma quantidade fixa e quantificável de poder, porque na realidade o poder de qualquer pessoa ou instituição varia conforme a situação. Para que o poder seja exercido, é necessária uma interação ou um intercâmbio entre duas ou mais partes: senhor e escravo, governante e cidadão, chefe e empregado, pai e filho, professor e aluno, ou uma complexa combinação de indivíduos, partidos, exércitos, empresas, instituições, até mesmo nações. Conforme as partes implicadas passam de uma situação a outra, a capacidade que cada um tem de dirigir ou evitar as ações dos outros - em outras palavras, o seu poder - também varia.

Moisés Naím (O Fim do Poder; pág: 42)

MAIS, MOBILIDADE E MENTALIDADE

Três categorias de transformações revolucionárias, que a meu ver definem nossa época: a revolução do Mais, que se caracteriza pelo aumento e abundância em tudo: no número de países, no tamanho das populações, em padrões de vida, índices de alfabetização, melhoria na saúde e na quantidade de produtos, partidos políticos e religiões; a segunda categoria é a revolução da Mobilidade: temos mais de tudo e, além disso, esse "mais" (gente, produtos, tecnologia, dinheiro) se movimenta com uma intensidade inédita e com um custo menor, chegando a todos os cantos do planeta, inclusive alguns que havia pouco eram inacessíveis; e a revolução da Mentalidade, que reflete as grandes mudanças nos modos de pensar, nas expectativas e nas aspirações, que vêm acompanhando essas transformações.

Moisés Naím (O Fim do Poder; pág: 35)

13 de julho de 2021

REGRESSÃO, FACEBOOK E A CAMBRIDGE ANALYTICA


O jornal Guardian descobriu que, com o financiamento da SCL, uma empresa criada por Alex coletou dados do Facebook e respostas de questionários de 200.000 cidadãos americanos. E isso representa apenas o número de pessoas que eles entrevistaram diretamente. Como a forma com que a plataforma do Facebook operava na época permitia o acesso às “curtidas” dos amigos das pessoas que se voluntariaram para o estudo e que consentiram o acesso aos dados de seus amigos, a SCL tinha no total dados de mais de 30 milhões de pessoas. Esse era um conjunto de dados imenso que fazia, potencialmente, um retrato da personalidade política de muitos americanos. O CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix, (...) explicou como, em vez de selecionar pessoas com base em raça, gênero ou formação socioeconômica, sua companhia conseguia “prever a personalidade de cada um dos adultos nos Estados Unidos da América.” A eleitores bastante conscienciosos e neuróticos poderia ser direcionada a mensagem de que “a segunda emenda era uma apólice de seguros”. Eleitores tradicionais e cordatos seriam informados de como “o direito de portar armas era importante e deveria ser transmitido de pai para filho”. Ele afirmou que conseguia usar “centenas e milhares de pontos de dados individuais em nossas audiências selecionadas para compreender exatamente quais mensagens teriam afinidade com quais audiências” e sugeriu que os métodos que ele havia descrito estavam sendo utilizados na campanha de Trump.

A origem da Cambridge Analytica apresenta todos os ingredientes de uma história de conspiração moderna. Ela envolve Ted Cruz, Donald Trump, 'segurança de dados, psicologia da personalidade, o Facebook, trabalhadores mal pagos do Turco Mecânico, Big Data, acadêmicos da Universidade de Cambridge, o populista de direita 'Steve Bannon, que faz parte da diretoria, o financiador de direita Robert Mercer, que é um dos seus maiores investidores, o ex-conselheiro de segurança nacional Michael Flynn, que já atuou como consultor, e (em uma versão menos confiável desta história) trolls financiados pela Rússia. (...). 

Quando me concentrei nos detalhes dos modelos usados para prever padrões de voto, percebi que um ingrediente importante estava faltando: o algoritmo. Eu queria conferir se as afirmações de Nix sobreviveriam ao escrutínio. Não tenho acesso aos dados coletados por Alex Kogan, (...) mas Michal Kosinski e seus colegas criaram um pacote tutorial que permite a estudantes de psicologia praticar a criação de modelos de regressão em um banco de dados anônimo de 20.000 usuários do Facebook. Eu baixei o pacote e o instalei no meu computador. Apenas 4.744 dos 19.742 usuários do Facebook residentes nos Estados Unidos no banco de dados expressou a preferência por democratas ou republicanos. Destes, 31% eram republicanos. Na ocasião da coleta de dados, entre 2007 e 2012, os democratas se destacavam no Facebook. Usei os dados para ajustar um modelo de regressão com as 50 dimensões do Facebook como input. O resultado do modelo de regressão é a probabilidade de que uma pessoa seja republicana.

Após ajustar o modelo aos dados, o próximo passo é testar sua performance. Uma boa maneira de testar a acurácia de um modelo de regressão é selecionar duas pessoas aleatoriamente, um democrata e um republicano, e pedir ao modelo que preveja qual dos dois é o republicano a partir do seu perfil do Facebook. Esta é uma medida intuitiva de acurácia. Imagine que você encontrasse essas duas pessoas e pudesse fazer-lhes algumas perguntas sobre seus gostos e hobbies, e, a partir das respostas, você tivesse que determinar qual pessoa apoiava qual partido político. Com que frequência você acha que acertaria?

A acurácia de um modelo de regressão baseado nos dados do Facebook é muito boa. Em oito de nove tentativas o modelo de regressão identificou corretamente as visões políticas do usuário do Facebook. O principal grupo de curtidas que identifica um democrata inclui o casal Barak e Michelle Obama, a Rádio Pública Nacional, TED Talks, Harry Potter, a página da internet I Fucking Love Science e shows de variedades atuais liberais como The Colbert Report e The Daily Show. Os republicanos curtem George W. Bush, a bíblia, música country e acampar. Não é nenhuma surpresa que os democratas curtam os Obama e The Colbert Report ou que muitos republicanos curtam George W. Bush e a bíblia. Então, eu tentei ver se conseguia quebrar o modelo de regressão retirando algumas das “curtidas” óbvias do modelo e executar uma nova regressão. Para meu espanto, o modelo continuou funcionando com 85% de acurácia, com apenas uma ligeira redução em performance. Agora ele utilizava combinações de curtidas para determinar as filiações políticas. Por exemplo, alguém que curta Lady Gaga, Starbucks e música country se encaixa mais provavelmente como republicano, mas um fã de Lady Gaga que também gosta de Alicia Keys e Harry Potter se encaixa mais provavelmente como um democracia. É aí que a compreensão multidimensional, obtida com a utilização de muitas “curtidas”, produz resultados inesperados e úteis.

Este tipo de informação poderia ser bastante útil para um partido político. Em vez de os democratas direcionarem sua campanha apenas para a média liberal tradicional, eles poderiam se dedicar a obter os votos dos fãs de Harry Potter. Os republicanos poderiam alvejar pessoas que bebem café na Starbucks e pessoas que acampam. Os fãs de Lady Gaga deveriam ser tratados com cautela por ambas as partes. Apesar de ser difícil fazer uma comparação direta, a acurácia de um modelo de regressão baseado no Facebook parece vencer os métodos tradicionais. (...)  Mas, antes de nos empolgar, vamos olhar com mais atenção para as limitações. Em primeiro lugar, há uma limitação fundamental nos modelos de regressão. Lembre-se de que o resultado de algoritmos não é binário. (...) Não podemos esperar que um modelo revele suas visões políticas com 100% de certeza. (...) O melhor que os analistas conseguem fazer é usar um modelo de regressão que atribui uma probabilidade sobre você ter uma visão em particular.

Enquanto os modelos de regressão funcionam muito bem para democratas ou republicanos convictos, (...) as predições sobre estes eleitores não são particularmente úteis em uma campanha política. Os votos dos simpatizantes partidários são mais ou menos garantidos, e não é preciso tê-los como alvo. Na verdade, o modelo de regressão que ajustei com os dados do Facebook não revelam nada sobre os 76% das pessoas que não registraram sua fidelidade política. Se, por um lado, os dados nos mostram que os democratas tendem a gostar de Harry Potter, por outro lado, eles não necessariamente nos dizem que outros fãs de Harry Potter gostam dos democratas. Este é o problema clássico inerente a todas as análises estatísticas; de uma possível correlação confusa, sem causa. Uma segunda limitação diz respeito ao número de "curtidas" necessárias para se fazer uma predição. O modelo de regressão só funciona quando uma pessoa deu mais de 50 "curtidas" e, para que esta predição seja realmente confiável, algumas centenas de "curtidas" são necessárias. No conjunto de dados do Facebook, apenas 18% dos usuários "curtiram" mais de 50 páginas. Após a coleta desses dados, o Facebook conseguiu aumentar o número de páginas que seus usuários "curtem", exatamente para que possa melhorar o direcionamento da propaganda. Mas ainda há muitas pessoas, inclusive eu, que não "curtem" muito no Facebook. (...) Não importa quão boa seja uma técnica de regressão, um modelo não consegue funcionar sem dados.

David Sumpter (Dominados Pelos Números; págs: 52, 53, 54, 55 e 56)