28 de agosto de 2020

SOCIEDADE FUTURA

Josan Gonzalez

No início do século xx, a visão de uma sociedade futura inacreditavelmente rica, ociosa, organizada e eficiente - um mundo antisséptico, cintilante, de vidro e aço e concreto branquíssimo - fazia parte da consciência de praticamente toda pessoa culta. A ciência e a tecnologia desenvolviam-se a uma velocidade estonteante, e parecia natural acreditar que continuariam se desenvolvendo. Isso não aconteceu, em parte devido ao empobrecimento provocado por uma série longa de guerras e revoluções, em parte porque o avanço científico e tecnológico dependia do hábito empírico do pensamento, que não pôde sobreviver numa sociedade regimentada de maneira estrita. O mundo hoje, como um todo, é mais primitivo do que há cinquenta anos. Algumas áreas atrasadas progrediram e vários dispositivos foram desenvolvidos, sempre de alguma maneira relacionados à guerra e à espionagem policial, mas a experimentação e a invenção praticamente deixaram de existir, e os estragos causados pela guerra atômica da década de 1950 jamais foram inteiramente reparados. Contudo os perigos inerentes à máquina continuam existindo.

George Orwell (1984; págs: 224 e 225)

PROLETAS

 

Se é que havia esperança, a esperança só podia estar nos proletas, porque só ali, naquelas massas desatendidas, naquele enxame de gente, oitenta e cinco por cento da população da Oceânia, havia possibilidade de que se gerasse a força capaz de destruir o Partido. Impossível derrubar o Partido de dentro para fora. Seus inimigos, se é que o Partido possuía algum, não tinham como agrupar-se ou mesmo como identificar-se uns aos outros. Mesmo que a legendária Confraria existisse, algo possível - mas não provável -, era inconcebível que seus membros algum dia pudessem reunir-se em grupos maiores que duas ou três pessoas. O estado de rebelião significava um certo olhar, uma certa inflexão de voz; no máximo uma ou outra palavra cochichada. Os proletas, porém, se de algum modo acontecesse o milagre de que se conscientizassem da força que possuíam, não teriam necessidade de conspirar. Bastava que se sublevassem e se sacudissem, como um cavalo se sacode para expulsar as moscas. Se quisessem, podiam acabar com o Partido na manhã seguinte. Mais cedo ou mais tarde eles teriam a ideia de acabar com o Partido, não teriam?

George Orwell (1984; págs: 88 e 89)

CULTURAS E NEGÓCIOS

As redes mudaram o mundo, é certo; mas ainda não ao ponto onde só e somente as redes são o mundo. Se este fosse o caso, não seriam apenas algumas poucas cidades que estariam capturando quase todo o valor gerado no mundo abstrato. (...) Economia e sociedade em rede podem ser definidas ao redor de conhecimento, organizadas em termos de informações e tratadas, do ponto de vista de sua dinâmica, como conjuntos de fluxos. (...) Um ESPAÇO é um PROCESSO que tem, associados, TERRITÓRIO, ORGANIZAÇÕES, CONHECIMENTO E TECNOLOGIA e um REPERTÓRIO de ações sobre tais estruturas concretas e abstratas.

Marc Agné ensina que um LUGAR é um sistema RELACIONAL, HISTÓRICO e onde há uma preocupação essencial com a IDENTIDADE de cada um e do próprio lugar. Os lugares, segundo Agné, estão centrados nos indivíduos que deles fazem parte, na cumplicidade - inclusive de linguagem e repertório, a cultura (...) E cultura, definida de forma simples, é [qualquer] transmissão [situada] de informações entre seres humanos. É isso que as redes todas, especialmente as instâncias virtuais de redes sociais, possibilitam em larga escala, em quase todas as geografias e línguas. (...) contexto e referências locais e em um certo modo, a maneira, o know-how de VIVER naquele lugar. São tais coisas que tornam o Rio de Janeiro diferente de São Paulo [mesmo quando se trata de negócios, exclusivamente] e de Recife. (...) Provavelmente copiá-lo para o seu lugar não faz sentido; ao invés, desenhe seu lugar e os fluxos que, nele, a partir dele e para ele, vão torná-lo diferenciado e único no espaço. (...) Criar uma Salesforce ou Twitter não independe de lugar; nenhum dos dois sairia lá de Taperoá, pois as condições e repertório não existem, por lá, para tal.

Se seus planos são de muito curto prazo, saiba que o horizonte de maturidade de UM LUGAR como o Porto Digital é de 25 anos ou mais. (...) E há algo especial para você prestar atenção: quando juntar o time pra criar o lugar, invista muito tempo em ouvir o que as pessoas querem fazer, como e quando elas querem fazer, com quem e pra que elas querem fazer. E vá adaptando o que você quer fazer ao que todo mundo quer, ou então vai ser muito difícil fazer seja lá o que for e talvez, em último caso, não dê pra fazer nada. (...) Só será se for possível gerar e capturar, do lugar onde se está, o mesmo valor que seria gerado e capturado caso se migrasse para o outro lugar.

Silvio Meira (Novos Negócios Inovadores de Crescimento Empreendedor no Brasil; págs: 36, 40, 41, 43, 44, 45, 47, 48, 50 e 51)

27 de agosto de 2020

SE VENDER SOZINHO

O Hotmail foi um dos primeiros a explorar o potencial viral de produtos digitais - o poder de “se venderem sozinhos” - ao adicionar a chamada “P.S.: get your free email at hotmail” no pé de toda mensagem enviada pelo serviço, com o link de uma página na qual o destinatário podia abrir sua conta. Na mesma época, o PayPal mostrou como era possível crescer de maneira extraordinária criando sinergias entre um produto e uma plataforma digital popular, o eBay. Ao ver que no eBay havia vendedores anunciando o PayPal como um jeito simples de pagar, o time da empresa criou o AutoLink, mecanismo que automaticamente inseria o logo do PayPal e um link para o vendedor se cadastrar e usar o serviço em tudo o que estivesse vendendo. O AutoLink triplicou o número de leilões que usavam o PayPal no eBay e deflagrou o crescimento viral do serviço na plataforma. Já o Linkedin, que penou para ganhar tração no primeiro ano, viu o crescimento disparar no final de 2003, quando o time de engenharia criou uma solução engenhosa para que o usuário puxasse seus contatos no Outlook para adicioná-los a sua rede profissional. O resultado foi um aumento explosivo dos efeitos de rede. Em cada caso desses, o crescimento não exigiu nem publicidade tradicional nem grandes verbas, e sim uma boa dose de astúcia tecnológica.

Sean Ellis & Morgan Brown (Hacking Growth; pág: 7)

26 de agosto de 2020

ALTOS, MÉDIOS E BAIXOS

Os objetivos desses três grupos são inconciliáveis. O objetivo dos Altos é continuar onde estão. O objetivo dos Médios é trocar de lugar com os Altos. O objetivo dos Baixos, isso quando têm um objetivo - pois uma das características marcantes dos Baixos é o fato de estarem tão oprimidos pela trabalheira que só a intervalos mantêm alguma consciência de toda e qualquer coisa externa a seu cotidiano -, é abolir todas as diferenças e criar uma sociedade na qual todos os homens sejam iguais. Assim, ao longo da história, um conflito cujas características básicas permanecem inalteradas se repete uma ou outra vez. Durante longos períodos os Altos parecem ocupar o poder de forma absolutamente inabalável, porém mais cedo ou mais tarde sempre chega o dia em que eles perdem ou a confiança em si mesmos ou a capacidade de governar com eficiência - ou as duas coisas. São derrubados pelos Médios, que angariam o apoio dos Baixos fingindo lutar por liberdade e justiça. Nem bem atingem seu objetivo, os Médios empurram os Baixos de volta para sua posição subalterna, a fim de se tornarem eles próprios os Altos. Nesse momento um novo grupo de Médios se desprende de um dos dois outros grupos, ou de ambos, e o conflito recomeça. Dos três grupos, apenas os Baixos jamais conseguem, nem temporariamente, sucesso na conquista de seus objetivos. Seria exagero dizer que ao longo da história nunca houve progresso material. Mesmo hoje, num período de declínio, o ser humano médio está fisicamente em melhor condição do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso na área da riqueza, nenhum refinamento da educação, nenhuma reforma ou revolução jamais serviram para que a igualdade entre os homens avançasse um milímetro que fosse. Do ponto de vista dos Baixos, nenhuma mudança histórica chegou a significar muito mais que uma alteração no nome de seus senhores.

George Orwell (1984; págs: 238 e 239)

25 de agosto de 2020

MILITÂNCIA

A guerra, como veremos, não apenas efetua a necessária destruição como a efetua de uma forma psicologicamente aceitável. Em princípio, seria muito simples usar a força de trabalho excedente mundial para construir templos e pirâmides, cavar buracos e tornar a enchê-los, ou mesmo para produzir vastas quantidades de mercadorias e depois queimá-las. Só que isso ofereceria apenas a base econômica para uma sociedade hierárquica: ficaria faltando a base emocional. O que importa aqui não é a disposição das massas, cuja atitude não tem importância desde que elas se mantenham estáveis, trabalhando, mas a disposição do próprio Partido. Espera-se que mesmo o militante mais humilde mostre-se competente, laborioso e até inteligente dentro de certos limites, porém é necessário também que ele seja um fanático crédulo e ignorante e que nele predominem sentimentos como o medo, o ódio, a adulação e um triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que ele tenha a mentalidade adequada a um estado de guerra. Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra. (...) A guerra, contudo, já não é o confronto desesperado, aniquilador, que era nas primeiras décadas do século XX. É uma luta de objetivos limitados entre combatentes que não têm como destruir-se uns aos outros, carecem de causas concretas para lutar e não estão divididos por nenhuma diferença ideológica genuína. (...) A cisão da inteligência que o Partido exige de seus membros, e que se obtém mais facilmente numa atmosfera de guerra, é agora quase universal, mas quanto mais alto se chega na hierarquia, mais ela se acentua. Com efeito, é no Núcleo do Partido que a histeria guerreira e o ódio ao inimigo são mais fortes. Em sua qualidade de administrador, muitas vezes é necessário que um membro do Núcleo do Partido saiba que este ou aquele item do noticiário de guerra é fictício, e acontece com frequência estar ciente de que a guerra inteira é espúria e que ela ou não está acontecendo, ou está acontecendo por razões bem diferentes das declaradas: mas esse conhecimento é facilmente neutralizado pela técnica do duplipensamento. (...) A visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção entre as pessoas incapazes de entendê-la. Essas pessoas podiam ser levadas a acreditar nas violações mais flagrantes da realidade porque nunca entendiam por inteiro a enormidade do que se solicitava delas, e não estavam suficientemente interessadas nos acontecimentos públicos para perceber o que se passava. Graças ao fato de não entenderem, conservavam a saúde mental. (...) Ao mesmo tempo, nenhum membro do Núcleo do Partido vacila por um instante sequer em sua fé mística de que a guerra é real e de que ela está fadada a terminar com a vitória de Oceânia, que passará a senhora incontestável do mundo.

George Orwell (1984; págs: 187, 221, 228 e 229)


SOCIEDADE HIERÁRQUICA

Pawel Kuczynski

Ficou claro que o aumento global da riqueza talvez significasse a destruição - na verdade em certo sentido foi a destruição - da sociedade hierárquica. Num mundo no qual todos trabalhassem pouco, tivessem o alimento necessário, vivessem numa casa com banheiro e refrigerador e possuíssem carro ou até avião, a forma mais óbvia e talvez mais importante de desigualdade já teria desaparecido. Desde o momento em que se tornasse geral, a riqueza perderia seu caráter distintivo. Claro, era possível imaginar uma sociedade na qual a riqueza, no sentido de bens e luxos pessoais, fosse distribuída equitativamente, enquanto o poder permanecia nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Na prática, porém, uma sociedade desse tipo não poderia permanecer estável por muito tempo. Porque se lazer e segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande massa de seres humanos que costuma ser embrutecida pela pobreza se alfabetizaria e aprenderia a pensar por si; e depois que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde essa massa se daria conta de que a minoria privilegiada não tinha função nenhuma e acabaria com ela. A longo termo, uma sociedade hierárquica só era possível num mundo de pobreza e ignorância.

George Orwell (1984; págs: 225 e 226)

 

A burrice é muito útil, do ponto de vista político e social. Aldous Huxley afirma que a estabilidade social do Admirável Mundo Novo se devia aos mecanismos psicopedagógicos cujo objetivo era emburrecer as pessoas. A educação se presta aos mais variados fins. Pessoas inteligentes, que vivem pensando e tendo idéias diferentes, são perigosas. Ao contrário, a ordem político-social é mais bem servida por pessoas que pensam os mesmos pensamentos, isto é, pessoas emburrecidas. Porque ser burro é precisamente isso, pensar os mesmos pensamentos - ainda que sejam pensamentos grandiosos. Prova disso são as sociedades das abelhas e das formigas, notáveis por sua estabilidade e capacidade de sobrevivência.

Rubem Alves (Por Uma Educação Romântica; pág: 88) 

 

Nós acreditamos na felicidade e na estabilidade. Uma sociedade composta de Alfas não poderia deixar de ser instável e infeliz. Imagine uma usina cujo pessoal fosse constituído por Alfas, isto é, por indivíduos distintos, sem relações de parentesco, com boa hereditariedade e condicionados de modo a tornarem-se capazes (dentro de certos limites) de fazerem livremente uma escolha e de assumirem responsabilidade. (...) É um absurdo. Um homem decantado como Alfa, condicionado como Alfa, ficaria louco se tivesse de fazer o trabalho de um Ípsilon Semialeijão; ficaria louco ou se poria a destruir tudo. Os Alfas podem ser completamente socializados, mas com a condição de que se lhes dê um trabalho de Alfa. Somente a um Ípsilon se pode pedir que faça sacrifícios de Ípsilon, pela simples razão de que, para ele, não são sacrifícios. São a linha de menor resistência.

Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo; págs: 266 e 267)

OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA

Entre os últimos sobreviventes estavam três homens chamados Jones, Aaronson e Rutherford. Provavelmente esses três homens haviam sido presos em 1965. Como acontecia tantas vezes, levaram um sumiço de um ano mais ou menos, de modo que ninguém sabia se estavam vivos ou mortos; reaparecem de repente, para reconhecer a própria culpa da maneira usual. Confessaram colaboração com o inimigo (na época o inimigo também era a Eurásia), apropriação indébita de verbas públicas, assassinato de vários membros leais ao Partido, intrigas visando prejudicar a liderança do Grande Irmão - intrigas essas iniciadas bem antes da Revolução - e atos de sabotagem responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas. Depois de confessar essas coisas, os três haviam sido perdoados, reconduzidos às fileiras do Partido e agraciados com postos que na verdade era sinecuras, mas que transmitiam a sensação de ser importantes. O glamour da luta clandestina e da guerra civil ainda envolvia suavemente suas figuras.

George Orwell (1984; pág: 95)

24 de agosto de 2020

O ERRO DA CAUTELA EM DEMASIA

Em geral, existe tendência a julgar forte o inimigo. Se soubermos nos colocar no lugar desse inimigo, veremos o quanto ele deve se sentir perdido ao ter que enfrentar todo mundo ou fugir. A tendência é acautelar-se em demasia, julgando o adversário muito poderoso. Supervalorizar o inimigo resulta em ação cautelosa e passiva demais. Então, pense no inimigo como alguém que, com certeza, sairá derrotado diante de você, que é um bom conhecedor da arte militar.

Musashi (O Livro dos Cinco Anéis; pág: 110)

RITMO E SINCRONIZAÇÃO

Nos mandamentos da arte militar é preciso encontrar ritmo e sincronização ao atirar com o arco ou com a espingarda e até ao montar um cavalo. Não se deve desrespeitar o ritmo. Na arte militar, existem diversos ritmos que merecem atenção. Em primeiro lugar, é de fundamental importância conhecer o ritmo concordante e discernir o ritmo discordante - destinado este último a desregular o ritmo respiratório do inimigo. Importante distinguir, entre ritmos, os grandes e os pequenos ou os rápidos e os lentos, os ritmos corretos, o ritmo do intervalo e o ritmo contrário, que serve para quebrar o ritmo do adversário. (...) É indispensável aproveitar a quebra de ritmo do adversário para avançar sobre ele sem dar-lhe tempo de respirar. (...) A fim de evitar sua recomposição. Perseguir com moral forte, golpeá-lo com força, impedindo-o de voltar à luta. Se ele não for dado com determinação, o duelo tende para o impasse. (...) Conhecê-los [ritmos] é essencial na arte militar. Sem esse conhecimento, a arte militar não poderá ser corretamente absorvida. (...) Aprender as noções gerais de ritmo e saber discernir o estilo do inimigo no uso da espada longa. Na luta contra o adversário, é necessário estar perfeitamente ciente das trajetórias da espada longa, percebendo com clareza as intenções do inimigo e utilizando os diferentes ritmos para alcançar o triunfo em qualquer situação. (...) Sem poder adivinhar a intenção do inimigo, é impossível vencê-lo. (...) Atacar com uma cutilada rápida e direta, sem vacilação do corpo nem do espírito, enquanto o inimigo ainda estiver indeciso. (...) O ritmo que impede o adversário de tomar uma resolução - seja de desembainhar, seja de aparar ou de golpear com sua espada longa - eis o “golpe de um tempo”.

Musashi (O Livro dos Cinco Anéis; págs: 67, 68, 82, 84, 105 e 109)

INICIATIVA

Existem três maneiras de tomar a dianteira em relação ao adversário. A primeira é aquela em que você toma a iniciativa de atacar o inimigo; chama-se Ken no sen, iniciativa de ataque. A segunda é a que se toma no momento em que o adversário ataca; denomina-se Tai no sen, iniciativa de expectativa. A terceira se dá quando você e o inimigo atacam simultaneamente; é chamada Tai-tai no sen, iniciativa mútua. (...) Dependendo da maneira como se toma a iniciativa, ela virtualmente pode assegurar a vitória. Essa é a razão pela qual a iniciativa é a prioridade número 1 na arte militar. Do começo ao fim da luta, é preciso ter a intenção inquebrantável de destruir o antagonista, vencê-lo esmagadoramente. Tudo isso faz parte da iniciativa de ataque.

Na iniciativa de expectativa, Tai no sen, quando o adversário arremete, manter-se indiferente, fingir fraqueza. No momento em que ele se aproxima, recuar de modo firme e mostrar que vai saltar para trás. Assim que perceber que o inimigo relaxa, atacá-lo depressa e com força para conseguir o triunfo. Essa é uma forma de se antecipar ao inimigo. Se ele voltar ao assalto, contra-atacar com mais vigor, aproveitando uma pequena mudança no ritmo dele para vencê-lo. (...) Quando o inimigo se aproximar, procure irritá-lo com gestos e observe; quando ele deixar entrever pela expressão do rosto que o momento é oportuno, impinja-lhe uma fragorosa derrota. (...) Na hipótese de o adversário tomar a iniciativa do combate, procure neutralizar os movimentos úteis a ele e permita-lhe os inúteis. Esse é um dos pontos essenciais da arte militar. Mas, se apenas procurar impedir a ação do antagonista, isso quer dizer que você está agindo somente na defensiva. Agir de acordo com os mandamentos significa cortar no nascedouro as intenções do adversário, submetendo-o à sua vontade.

Musashi (O Livro dos Cinco Anéis; págs: 102, 103, 104 e 105)

21 de agosto de 2020

AS REGRAS DO JOGO

O Estado na frente [e não à frente] de tudo atrapalha muito mais do que ajuda; vai contra os processos de criação de oportunidades em maior qualidade e quantidade, inclusive as educacionais. O Estado que legisla demais, sobre absolutamente tudo, inevitavelmente cria um sistema inconsistente de normas e regras que nos deixa, a todos, pessoas e empresas, de alguma forma ilegais. E isso, como não poderia deixar de ser, forma a base do processo de criar dificuldades para vender facilidades. (...) Um excelente exemplo nacional [no pior sentido] é o BNDES, captando recursos a custos maiores do que investe e apostando em negócios de pouco ou nenhum risco, para os quais recursos já existentes na iniciativa privada dariam conta. (...) Claro que o comportamento dos executivos não vai mudar se não mudarem as regras do jogo. Mas os executivos não têm qualquer interesse em mudar as tais regras. E por que mudariam?

O Brasil de 2010 tem a mesma produtividade de serviços de 1960. Isso enquanto todo o mundo se torna uma economia de serviços e quando ainda há quem ache, aqui, que nossa parálise não tem nada a ver com o regime trabalhista mais conflituoso do planeta. (...) Christensen diz que os projetos Robin Hood de muitos governos, ao taxar os ricos e distribuir o resultado pela classe média e mais pobres, são voos de galinha. (...) Redistribuição de renda e incentivos à produção local, ao criar a ilusão de melhora da economia pelo aumento do consumo imediato, escondem os problemas de fundo, que são a ineficiência e a ineficácia do sistema de regeneração econômica. (...) A impressão de que o Brasil é assim mesmo… depois da redemocratização e de uma nova Constituição, mudanças de grande ordem de magnitude em qualquer cenário, se explica porque a mudança de regras de 1998 ocorreu em um contexto que não mudou, o das instituições mais profundas da nação, suas tradições, costumes, práticas seculares. (...) No Brasil, em particular, a situação é complicada: sem mudanças nas regras do jogo, que dependem da evolução das instituições informais, performances inovadoras, aqui, como se vê lá fora, são muito difíceis. Por que? Porque os sistemas de governança estão bem mais determinados [pela cultura e normas] a defender trabalhadores e consumidores do que a promover inovadores e empreendedores. (...) E o Brasil é o país mais litigioso do mundo (...), com mais de trinta vezes mais ações trabalhistas do que os EUA [que têm uma economia dez vezes maior; comparando por PIB, são trezentas vezes mais ações aqui do que lá]. E a tradição da nossa justiça do trabalho é de compensação social, o que leva as empresas a perderem quase sempre, seja qual for a causa. 

Silvio Meira (Novos Negócios Inovadores de Crescimento Empreendedor no Brasil; págs: 27, 58, 59, 60, 61 e 62)

A OBRA-PRIMA DO DISFARCE

Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da abstração; este último é tão irracional quanto o primeiro é inartístico. Ambos desejam ter domínio sobre a vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudência, regularidade, enfrentar as principais necessidades, aquele, como “herói eufórico”, não vendo aquelas necessidades e tomando somente a vida disfarçada em aparência e em beleza como real. Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais frequência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; pág: 60)

20 de agosto de 2020

DIONISÍACO

É preciso coragem e, como sua condição, um excedente de força: pois é precisamente até onde a coragem pode ousar avançar, precisamente na medida da força, que nos aproximamos da verdade. O conhecimento, o dizer-sim à realidade, é para os fortes uma necessidade, tal como para os fracos, sob a inspiração da fraqueza, a covardia e a fuga da realidade - o “ideal” … Eles não têm a liberdade de conhecer: os décadents precisam da mentira - ela é uma de suas condições de conservação. - Quem não só compreende a palavra “dionisíaco”, mas se compreende na palavra “dionisíaco”, não precisa de nenhuma refutação de Platão ou do cristianismo ou de Schopenhauer - sente o cheiro da decomposição. “O dizer-sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a vontade de vida, alegrando-se no sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria inexauribilidade - foi isso que denominei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psicologia do poeta trágico.” (...) A afirmação do perecimento e do aniquilamento, o que é decisivo em uma filosofia dionisíaca, o dizer-sim à contradição e à guerra, o vir-a-ser, com radical recusa até mesmo do conceito de “ser” - nisso tenho de reconhecer, sob todas as circunstâncias, o mais aparentado a mim que até agora foi pensado. (...) A arte mais alta no dizer-sim à vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade tiver atrás de si a consciência da mais dura, mas da mais necessária das guerras, sem sofrer com isso...

Friedrich Nietzsche (Sobre “O Nascimento da Tragédia”; págs: 46, 47 e 48)

19 de agosto de 2020

CORPO VS. VERDADE

E o conseguirá mais claramente quem examinar as coisas apenas com o pensamento, sem pretender aumentar sua meditação com a vista, nem sustentar seu raciocínio por nenhum outro sentido corporal; aquele que se servir do pensamento sem nenhuma mistura procurará encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxílio dos olhos ou dos ouvidos e, por assim dizê-lo, completamente isolado do corpo, que apenas transtorna a alma e impede que encontre a verdade. Se alguém pode conhecer a essência das coisas, não é precisamente este de que acabo de falar? (...) O corpo nos oferece mil obstáculos pela necessidade que temos de sustentá-lo, e as enfermidades perturbam nossas investigações. (...) Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com sua corrupção natural, e conservando-nos puros de todas as suas imundícies até que o deus venha nos libertar.

Platão (Fédon; págs: 127 e 128)

18 de agosto de 2020

VATICINADORES

Como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato muitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu percebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato de fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente não o eram.

Platão (Apologia de Sócrates; pág: 72)

8 de agosto de 2020

MISÓLOGOS

O maior de todos os males é detestar a razão, e a misologia possui a mesma origem da misantropia. De onde vem, com efeito, a misantropia? Do fato de alguém haver confiado em um homem sem nenhuma análise prévia e após havê-lo considerado sempre honesto, sincero e fiel, descobre que é mentiroso e mau; depois de numerosas experiências semelhantes, ao se ver enganado pelos que acreditava serem seus melhores amigos e os mais íntimos, cansado, enfim, de haver sido lesado durante tanto tempo, odeia da mesma maneira a todos os homens e está convencido de que não existe ninguém que seja sincero. Não notaste como a misantropia se forma desta forma, pouco a pouco?

Platão (Fédon; pág: 156)

A HONRA DE SÓCRATES

Aqui caberia aquele dito de Homero: “Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas. Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me”. E não é por orgulho que não me comporto assim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da morte, mas pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir desta maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens. (...) Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mim, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro modo.

Platão (Apologia de Sócrates; págs: 87 e 93)