9 de junho de 2020

CASTIDADE E ORTODOXIA POLÍTICA


Diferentemente de Winston, entendera o significado profundo do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas que o instinto sexual criasse um mundo próprio fora do controle do Partido - um instinto que, por isso, se possível, tinha de ser destruído. O mais importante era que a privação sexual levava à histeria, desejável porque podia ser transformada em fervor guerreiro e veneração ao líder. Eis como Julia descrevia a questão: “Quando você faz amor, está consumindo energia; depois se sente feliz e não dá a mínima para coisa nenhuma. E eles não toleram que você se sinta assim. Querem que você esteja estourando de energia o tempo todo. Toda essa história de marchar para cima e para baixo e ficar aclamando e agitando bandeiras não passa de sexo que azedou. Se você está feliz na própria pele, porque se excitar com esse negócio de Grande Irmão, Planos Trienais, Dois Minutos de Ódio e todo o resto da besteirada?” Havia uma conexão íntima e direta entre castidade e ortodoxia política. Porque, de que maneira manter no diapasão certo o medo, o ódio e a credulidade imbecil que o Partido necessitava encontrar em seus membros se algum instinto poderoso não fosse represado e depois usado como força motriz? A pulsão sexual era perigosa para o Partido, e o Partido a utilizava em interesse próprio.

George Orwell (1984; pág: 161)

A PERFÍDIA DO CORPO HUMANO

Winston, refletiu sobre a inutilidade biológica da dor e do medo, a perfídia do corpo humano, que invariavelmente se entregava à inércia justo no momento em que se fazia necessário um esforço especial. Poderia ter silenciado a moça de cabelo preto se tivesse agido com rapidez; mas, exatamente porque o perigo que corria era tão extremo, perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que em momentos de crise o embate da pessoa nunca era com um inimigo externo, mas sempre com seu próprio corpo. E o mesmo acontece, observou ele, em todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio prestes a ir a pique, os motivos pelos quais a pessoa luta são sempre esquecidos, porque o corpo se dilata até ocupar o universo inteiro, e mesmo quando a pessoa não está paralisada pelo medo nem grita de dor, a vida é uma luta incessante contra a fome ou o frio ou a insônia, contra um estômago embrulhado ou uma dor de dente.

George Orwell (1984; pág: 124)

CURRAL ELEITORAL

Pawel Kuczynski

É claro que o Partido se vangloriava de ter libertado os proletas da escravidão. Antes da Revolução eles eram oprimidos de maneira revoltante pelos capitalistas. Passavam fome, eram açoitados. Mas, ao mesmo tempo, fiel aos princípios do duplipensamento, o Partido ensinava que os proletas eram inferiores naturais que deviam ser mantidos dominados, como os animais, mediante a aplicação de umas poucas regras simples. Na realidade pouco se sabia sobre os proletas. Não era necessário saber grande coisa. Desde que continuassem trabalhando e procriando, suas outras atividades careciam de importância.

Nasciam, cresciam pelas sarjetas, começavam a trabalhar aos doze anos, aos trinta chegavam à meia-idade, em geral morriam aos sessenta. Trabalho físico pesado, cuidados com a casa e os filhos, disputas menores com os vizinhos, filmes, futebol, cerveja e, antes de mais nada, jogos de azar, preenchiam o horizonte de suas mentes. Não era difícil mantê-los sob controle. Alguns representantes da Polícia das Ideias circulavam entre eles, espalhando boatos falsos e identificando e eliminando os raros indivíduos considerados capazes de vir a ser perigosos; mas não era feita nenhuma tentativa no sentido de doutriná-los com a ideologia do Partido. Não era desejável que os proletas tivessem ideias políticas sólidas. Deles só se exigia um patriotismo primitivo, que podia ser invocado sempre que fosse necessário fazê-los aceitar horários de trabalho mais longos ou rações mais reduzidas.

George Orwell (1984; págs: 90 e 91)

5 de junho de 2020

MINISTÉRIO DA VERDADE


Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera - sem dúvida isso era mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte. (...) E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido - se todos os registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.” (...) Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples.

E, em lugares indeterminados, totalmente anônimas, havia as cabeças dirigentes que coordenavam todo aquele esforço e estabeleciam as diretrizes políticas que tornavam necessário que este fragmento do passado fosse preservado, aquele adulterado e aquele outro destituído de toda e qualquer existência. E, no fim das contas, o Departamento de Documentação não passava de um ramo do Ministério da Verdade cuja função primeira não era reconstruir o passado e sim abastecer os cidadãos da Oceânia com jornais, filmes, livros escolares, programas de televisão, peças dramáticas, romances - com todo tipo imaginável de informação, ensino ou entretenimento, de estátuas a slogans, de poemas líricos a tratados de biologia, de cartilhas de ortografia a dicionários de Novafala. E ao ministério cabia não apenas suprir as inúmeras necessidades do Partido como também reproduzir toda essa operação num nível inferior, em benefício do proletariado. Havia uma série de departamentos dedicados especificamente à literatura, à música, ao teatro e ao entretenimento proletário em geral. Ali eram produzidos jornais populares contendo apenas e tão somente esportes, crimes e astrologia, romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas, filmes com cenas e mais cenas de sexo, e canções sentimentais compostas de forma totalmente mecânica por uma modalidade especial de caleidoscópio conhecida como versificador. (...) Noite e dia as teletelas massacravam os ouvidos das pessoas com estatísticas que provavam que hoje a população tinha mais comida, mais roupa, melhores casas, melhores opções de lazer - que vivia mais, trabalhava menos, era mais alta, mais saudável, mais forte, mais feliz, mais inteligente, mais culta do que as pessoas de cinquenta anos antes. (...) Tudo que fosse grande e portentoso, se tivesse uma aparência razoavelmente nova, recebia de forma automática o carimbo de obra posterior à Revolução, ao passo que todas as coisas que evidentemente datavam de épocas anteriores eram atribuídas a um período indistinto denominado Idade Média. Os séculos de capitalismo, dizia-se, não haviam produzido nada de valor.
 
(...) O membro do Partido, tal como o proletário, tolera as condições vigentes em parte porque não dispõe de termos de comparação. Deve ser afastado do passado, assim como deve ser afastado de países estrangeiros, porque é necessário que acredite que está em melhor situação do que seus antepassados e de que o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente. Mas, de longe, a razão mais importante para que se reajuste o passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não se trata apenas de atualizar constantemente discursos, estatísticas e registros de todo tipo para provar que as previsões do Partido se confirmam em todos os casos. Trata-se também de não admitir em hipótese nenhuma a ocorrência de alterações na doutrina ou alinhamento político. Porque mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (conforme o caso) for o inimigo de hoje, então é necessário que esse país sempre tenha sido o inimigo. E se os fatos atestarem algo diferente, então é preciso alterar os fatos. Dessa forma, a história é constantemente reescrita. Essa falsificação diária do passado, levada a efeito pelo Ministério da Verdade, é tão necessária para a estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor. A mutabilidade do passado é o ponto central da doutrina do Socing. Afirma-se que os fatos passados não têm existência objetiva e que sobrevivem apenas em registros escritos e nas memórias humanas. O passado é tudo aquilo a respeito do que há coincidência entre registros e memórias. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o partido decide que ele seja.

George Orwell (1984; págs: 47, 57, 58, 94, 120, 250 e 251)

3 de junho de 2020

A VANTAGEM DA VELHICE

Se perguntar pra todo mundo, a maioria vai dizer que preferia ser jovem de novo. Os jovens são fortes, têm saúde pra dar e vender. Quando chega na minha idade, a pessoa tá sempre com algum problema. Os meus pés me matam e a minha bexiga está que é uma desgraça. Tenho de levantar seis, sete vezes à noite. Por outro lado, ficar velho tem muita vantagem. A gente não se preocupa tanto. Não quer mais saber de mulher, e isso é um troço fantástico.

George Orwell (1984; págs: 113 e 114)