Vivemos aqui e agora, tudo o que aconteceu antes e em outros lugares é passado, em grande parte esquecido e acessível apenas enquanto pequeno resíduo, em estilhaços desordenados da memória que lampejam num acaso rapsódico e voltam a se extinguir. É assim que estamos habituados a pensar sobre nós mesmos. E é esse o modo de pensar natural quando são os outros sobre os quais dirigimos nosso olhar. Eles realmente estão aqui e agora, não estão em nenhum outro lugar, em nenhum outro tempo. E como poderíamos imaginar a sua relação com o passado se não na forma de episódios interiores da recordação, cuja realidade exclusiva está no presente do seu acontecer imediato? Porém sob o ponto de vista da própria interioridade tudo muda. Ali não estamos limitados ao presente, mas nos espraiamos até as profundezas do passado. Isso ocorre por causa dos nossos sentimentos, principalmente os profundos, aqueles que determinam quem nós somos e como é sermos nós. Pois esses sentimentos não conhecem o tempo, não o conhecem e não o reconhecem. Naturalmente, seria errado se dissesse: ainda sou o menino nos degraus na frente da escola, o menino com o boné nas mãos, cujo olhar vai até a escola das meninas na esperança de ver Maria João. Naturalmente seria errado, já decorreram mais de trinta anos. Mas também é verdade. O coração que bate forte diante de tarefas difíceis é o mesmo coração que bate forte quando o Sr. Lanções, o professor de matemática, entrava na sala de aula; na angústia com que enfrento todas as autoridades reverberam ainda as palavras poderosas do meu pai encurvado, e quando o olhar luminoso de uma mulher encontra o meu, paro de respirar exatamente como quando, da janela de uma escola para a janela da outra, o meu olhar parecia cruzar o de Maria João. Ainda estou lá, naquele distante lugar do passado, nunca saí de lá, mas vivo espalhado no passado. Ele é presente, este passado, e não apenas sob a forma de episódios breves de lampejos da memória. Os milhares de modificações que impulsionaram o tempo, comparadas com esse presente atemporal do sentir, são fugidias, irreais como um sonho e também traiçoeiras como as imagens dos sonhos.
Elas me insinuam que eu seja um médico que as pessoas procuram com suas dores e suas preocupações e que possui uma autossegurança e um destemor fantásticos. E a confiança frágil nos olhares daqueles que buscam ajuda me obriga a acreditar nisso, enquanto estão à minha frente. Mas mal saem, sinto vontade de gritar: continuo sendo aquele menino cheio de medo sentado nos degraus da escola, é completamente irrelevante, e, no fundo, uma mentira que eu esteja aqui de jaleco branco atrás de uma imponente mesa dando conselhos. Não se deixem enganar por aquilo que, num acesso de ridícula superficialidade, chamamos de "o presente". Não estamos apenas ampliados no tempo. Também no espaço nos projetamos bem além daquilo que é visível. Quando deixamos determinado lugar, deixamos para trás um pedaço de nós - permanecemos lá, apesar de partirmos. E há coisas em nós que só podemos recuperar se voltamos para lá. Viajamos até perto de nós, para dentro de nós mesmos, quando o ruído monótono das rodas nos transporta em direção a um lugar onde passamos uma parte da nossa vida, por mais breve que tenha sido. Assim que colocamos, pela segunda vez, o pé numa estação estranha, escutando as vozes nos alto-falantes, sentindo os cheiros inconfundíveis, não apenas chegamos ao lugar distante, mas também na distância do próprio interior, num ângulo talvez bem remoto do nosso eu que, quando estamos em outro lugar, permanece oculto e completamente entregue à invisibilidade. Por que outra razão ficamos tão excitados, tão fora de nós quando o condutor anuncia o nome de um lugar, quando escutamos o chiado dos freios e somos engolidos pela súbita sombra da estação ferroviária? Por que outra razão o momento de o trem parar com um último solavanco seria um momento mágico, um momento de dramaticidade silenciosa? Isso acontece porque nós, desde os primeiros passos que damos em uma plataforma estranha e ao mesmo tempo não mais estranha, retomamos uma vida que havíamos interrompido e abandonado quando, da primeira vez, sentimos o primeiro solavanco do trem que partia. O que poderia ser mais excitante do que retomar uma vida interrompida com todas as suas promessas?
É um erro, um ato insano de violência, concentrarmo-nos no aqui e agora na convicção de estarmos captando aquilo que é essencial. O que interessa seria conseguirmos nos mover, seguros, tranquilos, com o humor adequado e a melancolia adequada, na ampla paisagem interior estendida no tempo e no espaço que somos nós. Por que temos pena de pessoas que não podem viajar? Porque elas, como não podem se expandir exteriormente, também não conseguem se ampliar interiormente, não podem se multiplicar e, assim, não têm a possibilidade de empreender amplas excursões para dentro de si mesmas e descobrir quem ou o que de outro poderiam ter sido.
Pascal Mercier (Trem Noturno para Lisboa; págs: 251, 252 e 253)
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