18 de março de 2016

JUSTIÇA BURGUESA

A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado. (...) Será que o estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá-la em sua luta real em proveito de uma arbitragem ideal? É por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação. (...) A justiça penal não foi produzida nem pela plebe, nem pelo campesinato, nem pelo proletariado, mas pura e simplesmente pela burguesia, como um instrumento tático importante no jogo de divisões que ele queria introduzir. (...) O tribunal implica também a existência de categorias comuns às partes em presença (categorias penais como o roubo, a vigarice; categorias morais como o honesto e o desonesto) e que as partes em presença aceitem submeter-se a elas. É tudo isso que a burguesia quer fazer crer sobre a justiça, a sua justiça. (...) É por isso que incomoda a idéia de um tribunal popular. Sobretudo se os intelectuais desempenham nele os papéis do procurador ou do juiz, porque é precisamente por intermédio dos intelectuais que a burguesia tem espalhado e imposto os temas ideológicos de que falo. (...) Uma justiça só é justa se for exercida por alguém exterior à questão, por um intelectual, um especialista da idealidade. Se, ainda por cima, este tribunal popular é presidido ou organizado por intelectuais que vêm escutar o que dizem os operários de um lado e o patronato do outro e afirmar "um é inocente, o outro é culpado", há uma infiltração de idealismo nisto! Ao fazer dele um modelo geral para mostrar o que é a justiça popular, temo que se escolha o pior modelo.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 39, 40, 56, 60 e 63)

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