Não era possível continuar com a concepção a-histórica do dogma nem, sobretudo, com a leitura literalista da Bíblia. E muito menos com o autoritarismo do "porque assim está escrito" ou "assim está definido" ou a simples remissão ao "a igreja tem doutores" podem satisfazer as necessidades da nova situação cultural. A crise do cristianismo no mundo moderno se deve fundamentalmente ao desajuste produzido por essa derrocada, e o mesmo Vaticano II reconhece que os cristãos temos uma "parte não pequena" de culpa em nada menos que o nascimento do ateísmo, precisamente por não se ter adequado a forma da fé à nova situação. É precisamente esta a tese de Peter L. Berger, o qual considera a secularização como um "efeito irônico" do cristianismo, pois este, em sua dinâmica profunda, propiciaria os fatores que levaram à dissolução de muitas de suas formas eclesiásticas.
A nova autonomia do mundo constitui, em seu nível, um dado irresistível: nem a alma mais piedosa e pacata pode hoje aceitar que os astros são movidos por anjos ou que as enfermidades sejam caudadas por demônios [já não há pobres e ricos porque Deus assim o dispôs, mas porque nós distribuímos desigualmente as riquezas de todos; e o governante não mais o é "pela graça de Deus" (de sorte que só a Ele tem de prestar contas), e sim pela livre decisão dos cidadãos20]. Isso mina pela raiz toda concepção intervencionista da atividade divina. Oriundos de tal concepção, velhos hábitos herdados de quando Deus "chovia e trovoava", ordenava o dilúvio ou mandava pestes, podem ainda levar, em certas ocasiões ou ambientes, a que se façam preces e danças por chuva ou à intenção de aplacar com procissões e penitências a ira divina. [Falamos de Deus como um ser que interfere na causalidade empírica, cura uma enfermidade ou faz alguém ser aprovado em um exame, por melhor que seja nossa intenção subjetiva, nós o estamos reduzindo à categoria de ser mundano. Toda a linguagem acerca dos milagres e, como veremos, grande parte de nossas orações precisa, neste ponto, de uma revisão drástica76]. Porém, quem talvez os sustente em nome de uma "prudência pastoral" mal entendida não percebe que tentar justificá-los em princípio, e unir a essas atitudes a verdade da fé, significa - na cultura atual - estar semeando ateísmo.
"Não se pode usar a luz elétrica e o aparelho de rádio ou empregar na enfermidade os modernos meios clínicos e medicinais e, ao mesmo tempo, crer no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento". (Bultmann)
Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 18, 20, 26, 27, 46, 76 e 206)
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