28 de março de 2016

OS OLHOS PRECISAM SER EDUCADOS

A nossa estupidez e a nossa preguiça nos levam a acreditar que aquilo que sempre foi feito de um certo jeito deve ser o jeito certo de se fazer. Mas os gregos sabiam diferente: sabiam que o conhecimento só se inicia quando o familiar deixa de ser familiar; quando nos espantamos diante dele; quando ele se transforma num enigma. (...) A inteligência começa nas mãos. As crianças não se satisfazem com o ver: elas querem pegar, virar, manipular, desmontar, montar. Um amante se satisfaria com o ato de ver o corpo da amada? Por que, então, a inteligência iria se satisfazer com o ato de ver as coisas? A função dos olhos é mostrar, para as mãos, o caminho das coisas a serem mexidas. (...) As coisas não são assombrosas para todos. Só para aqueles que aprenderam a ver. A visão tem que ser aprendida. Os olhos precisam ser educados. (...) (Quem disser que o ensino se mede pelo número de horas-aula é um idiota). O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender à exigência da comunidade científica internacional de publish or perish. Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem-estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. (...).

Os vestibulares, todos eles, se concentram no conhecimento das eventuais ferramentas do pensamento, e de tal maneira enchem o tempo e a cabeça dos adolescentes e jovens com tal conhecimento - pois é o único conhecimento que pode ser medido de forma quantitativa - que não sobra tempo para a educação da sensibilidade. Se os jovens não gostam de ler, se não desenvolvem a sua sensibilidade para as artes, se não ficam fascinados com a variedade da cultura humana, se são insensíveis à beleza da natureza, a culpa não é deles. Desde cedo os vestibulares lhes ensinaram que a única coisa importante são as ferramentas. (...) Nossas escolas são planejadas à semelhança das linhas de montagem: as crianças são "objetos" a serem "formados" segundo normas que lhes são exteriores. Ao final, formadas, são objetos portadores de saberes, centenas, milhares, todos iguais. Pertencem ao mundo do eu-isso.

Rubem Alves (Por Uma Educação Romântica; págs: 77, 78, 91, 97, 106, 107, 184 e 193)

PENA DE MOÇA

A despeito de toda aversão natural de Avdótia Románovna a mim e apesar do meu aspecto então sempre sorumbático e repelente, ela acabou ficando com pena de mim, com pena de um homem perdido. E quando o coração de uma moça sente pena, isto, sem dúvida, é o maior perigo para ela. Aí vem forçosamente a vontade de "salvar", e fazer criar juízo, e ressuscitar, e conclamar a objetivos mais nobres, e fazer renascer para uma nova vida e uma nova atividade.

Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo; pág: 483)

PECADO

Por que ela, há tanto e tão longo tempo, conseguia permanecer nessa situação sem enlouquecer, se não tinha forças para se atirar n'água? Claro, ele compreendia que a situação de Sônia era obra do acaso na sociedade, embora, infelizmente, nem de longe fosse única e exclusiva. Mas esse mesmo acaso, esse nível avançado e toda a vida pregressa dela podiam, parece, matá-la de uma só vez ao primeiro passo por esse caminho abominável. O que então a mantinha? Não era a perversão! Toda essa ignomínia, pelo visto, só a tocava mecanicamente; em seu coração ainda não havia penetrado nenhuma gota da verdadeira perversão. (...) "Ela tem três saídas - pensava ele -: atirar-se no canal, ir para um manicômio ou... ou... finalmente entregar-se à perversão, que entorpece a razão e petrifica o coração." A última ideia era a mais abominável para ele; mas ele já era cético, era jovem, dado a abstrações e, portanto, cruel, e por isso não podia deixar de crer que a última saída, ou seja, a perversão, fosse a mais provável. "Mas será que isso é verdade - exclamou ele de si para si -, será possível que até essa criatura, que ainda conserva a pureza de espírito, acabe afundando conscientemente nesse fosso abominável, fétido? Será possível que esse afundamento já tenha começado e ela só conseguiu aguentar-se até agora porque o vício já não lhe parece tão abominável? Não, não, isso não pode ser! - exclamou ele como há pouco o fizera Sônia. - Não, o que a impediu até agora de atirar-se no canal foi a ideia do pecado, e elas, aquelas... Se ela até agora não enlouqueceu... Mas quem disse que ela já não enlouqueceu? Estará em sã consciência? Por acaso pode-se falar do jeito que ela fala? Por acaso pode-se racionar em sã consciência como raciocina ela? Por acaso é possível viver à beira da perdição, em cima mesmo de um fosso fétido que já está arrastando-a e dar de ombros, e tapar os ouvidos aos avisos do perigo? O que há com ela, estará esperando por um milagre? Na certa está. Por acaso tudo isso não são indícios de loucura?

Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo; págs: 333 e 334)

24 de março de 2016

A ORIGEM DAS RELIGIÕES


Estamos tão acostumados com uma visão sobrenaturalista da religião, que a tendência espontânea leva a considerá-la como algo literalmente "caído do céu". Tendência favorecida pela propensão do religioso a se constituir em um mundo à parte, distinto da vida cotidiana e sempre tentado a perder todo contato com ela. Não obstante, por pouco que se observe, se notará que as religiões não caem do céu, mas nascem da terra. Em sua realidade histórica são produtos estritamente culturais: como a poesia, a filosofia e a ciência. Tudo o que é autenticamente religioso é sempre uma resposta a perguntas muito concretas. Resposta específica, caracterizada por sua relação a Deus; mas resposta verdadeiramente humana, obtida no esforço de homens e mulheres por encontrar sentido para perguntas que afetam real e profundamente suas vidas e que, por isso, preocupam ou podem preocupar a todos. Para comprová-lo, basta tomar nas mãos a bíblia ou qualquer outro texto religioso: aparecem como livros com todas as marcas da nossa mais normal humanidade. Um texto religioso é uma interpretação humana da realidade: da realidade comum, a única que existe e na qual todos e todas vivemos.

O que a caracteriza não é uma origem milagrosa, estranha ou fora dos procedimentos "naturais", mas a convicção de que a dimensão empírica e imediatamente mundana não esgota o todo da realidade. Não crê possível uma compreensão adequada da mesma, se não for incluindo outra realidade distinta, a Divina, que a sustenta e transcende e à qual ela está apontando por determinadas características, como podem ser a contingência do universo ou o protesto humano contra a morte, a injustiça ou o sem-sentido. Deus se converte assim na chave para obter uma compreensão "última" da realidade. Entretanto, entendamos bem: atendendo à estrutura interna e à gênesis íntima dessa convicção, não se vê assim a realidade porque se crê em Deus; mas o contrário: porque se vê assim a realidade, nasce a fé em Deus. Assim nascem e se desenvolvem as tradições religiosas, que, em geral, se cristalizam em livros sagrados: em escrituras que se consideram "reveladas" ou "inspiradas".

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 228 e 229)

A REVELAÇÃO

A revelação não é um "ditado" literal, caído do céu como um aerólito já perfeitamente acabado, senão que se realiza em e através do lento, duro e sinuoso trabalho da subjetividade humana. Não é algo que "vem de fora", mas algo que "sai de dentro": consiste justamente em aperceber-se da Presença que nos constitui, nos habita e, desde sempre, procura se manifestar a nós.

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; pág: 129)

SAGRADO/PROFANO


"E Deus viu que tudo era bom". Mais ainda, anula, se não a distinção, com certeza o dualismo entre o sagrado e o profano, porque Deus cria a criatura por si mesma, em sua integridade sem divisões. Como eu já dissera em outra ocasião, "Deus não criou homens e mulheres 'religiosos', senão pura e simplesmente homens e mulheres 'humanos'"; de sorte que ser verdadeiramente humanos é a maneira de ser religiosos, e vice-versa. Resta afirmar que tudo é sagrado (porque sai das mãos de Deus) e nada é sagrado (porque está entregue a si mesmo). Ou, pela mesma razão, que tudo é profano e nada é profano.

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 124 e 125)

PROFECIA EXTERNA

A religião tem de aprender a dura lição de que campos enormes, que durante tempo pareciam jazer sob sua competência, passaram definitivamente para outras mãos. Esse é o significado profundo da "secularização", que lhe acabou sendo dolorosa no âmbito material das possessões eclesiásticas, mas que não o é menos no âmbito da cultura, onde a partir do Iluminismo deveu reconhecer a autonomia das ciências físicas e históricas, bem como da economia, da sociologia e da política. De fato, ainda hoje está aprendendo, não sem graves conflitos, a autonomia da ética e da moral. Além do mais, a história recente mostra que, cada vez que a religião transgride seus limites, acaba irremediavelmente prejudicada.

Retraduzir-se não é "vender-se" à moda nem "abdicar" do próprio ser; muito pelo contrário: significa exercer o primeiro direito e o fundamental dever de toda vida, que é conservar-se mediante a transformação no tempo e (no caso da humana) mediante a criação de nova história. O outro - agarrar-se às formas do passado - parece continuidade, mas significa mumificação; parece assegurar a vida, mas equivale a vender-se à morte. Já no-lo tinham avisado desde o começo: "Porque quem quiser salvar sua vida, a perderá; mas quem perder sua vida por mim, a encontrará" (Mt 16,25).

A Igreja não renuncia assim à sua própria identidade. Ela reconhece, em vez disso, que não lhe compete o monopólio de tudo, mas sim, de maneira mais simples e modesta, sua contribuição específica. Ela permanece sendo "mestra em humanidade" (Paulo VI), mas apenas em seu campo próprio, à medida que reconhece serem os demais também mestres no campo deles. Em nosso mundo irreversivelmente plural, se a Igreja quer, de verdade, evangelizar, precisa, por sua vez, deixar-se "evangelizar" por aqueles valores, que, ínsitos na criação, são hoje descobertos por outros meios. Ela é, pois, mestra enquanto também discípula. A isso aludem a categoria teológica da "profecia externa" e a convocação conciliar para que se escrutem os "sinais dos tempos".

Talvez sejam inevitáveis as tensões e mesmo os conflitos, mas a única teologia que, de verdade, pode servir hoje é a que, como dizia Karl Adam, se move por uma "obediência lutadora e protestante": ela não pode fazer tudo, mas, sem sua participação livre e responsável, é impossível manter a significatividade da fé no seio da enorme mudança cultural gerada pela modernidade.

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 58, 59, 181, 182, 217 e 246)

23 de março de 2016

A DESATUALIZAÇÃO CRISTÃ COMO SEMEADORA DO ATEÍSMO

Não era possível continuar com a concepção a-histórica do dogma nem, sobretudo, com a leitura literalista da Bíblia. E muito menos com o autoritarismo do "porque assim está escrito" ou "assim está definido" ou a simples remissão ao "a igreja tem doutores" podem satisfazer as necessidades da nova situação cultural. A crise do cristianismo no mundo moderno se deve fundamentalmente ao desajuste produzido por essa derrocada, e o mesmo Vaticano II reconhece que os cristãos temos uma "parte não pequena" de culpa em nada menos que o nascimento do ateísmo, precisamente por não se ter adequado a forma da fé à nova situação. É precisamente esta a tese de Peter L. Berger, o qual considera a secularização como um "efeito irônico" do cristianismo, pois este, em sua dinâmica profunda, propiciaria os fatores que levaram à dissolução de muitas de suas formas eclesiásticas.

A nova autonomia do mundo constitui, em seu nível, um dado irresistível: nem a alma mais piedosa e pacata pode hoje aceitar que os astros são movidos por anjos ou que as enfermidades sejam caudadas por demônios [já não há pobres e ricos porque Deus assim o dispôs, mas porque nós distribuímos desigualmente as riquezas de todos; e o governante não mais o é "pela graça de Deus" (de sorte que só a Ele tem de prestar contas), e sim pela livre decisão dos cidadãos20]. Isso mina pela raiz toda concepção intervencionista da atividade divina. Oriundos de tal concepção, velhos hábitos herdados de quando Deus "chovia e trovoava", ordenava o dilúvio ou mandava pestes, podem ainda levar, em certas ocasiões ou ambientes, a que se façam preces e danças por chuva ou à intenção de aplacar com procissões e penitências a ira divina. [Falamos de Deus como um ser que interfere na causalidade empírica, cura uma enfermidade ou faz alguém ser aprovado em um exame, por melhor que seja nossa intenção subjetiva, nós o estamos reduzindo à categoria de ser mundano. Toda a linguagem acerca dos milagres e, como veremos, grande parte de nossas orações precisa, neste ponto, de uma revisão drástica76]. Porém, quem talvez os sustente em nome de uma "prudência pastoral" mal entendida não percebe que tentar justificá-los em princípio, e unir a essas atitudes a verdade da fé, significa - na cultura atual - estar semeando ateísmo.

"Não se pode usar a luz elétrica e o aparelho de rádio ou empregar na enfermidade os modernos meios clínicos e medicinais e, ao mesmo tempo, crer no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento". (Bultmann)

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 18, 20, 26, 27, 46, 76 e 206)

DEUS É DO MUNDO

Não é verdade que "Deus esteja no céu e tu na terra". Ao contrário, Deus está sempre aqui entre nós: no homem e na mulher, na terra e na história. Deus não tem de vir ao mundo, porque já está desde sempre em sua raiz mais profunda e originária; não tem de intervir, pois é sua própria ação que está sustentando e pro-movendo tudo; não acode e intervém quando é chamado, porque é Ele quem, desde sempre, está convocando e solicitando nossa colaboração. Deus age criando e sustentando, "fazendo com que façamos" ou, melhor, possibilitando e animando para que façamos. Ele não nos tira a responsabilidade. Quem trabalha sempre é Deus, quem pode ficar na passividade ou resistir somos nós. Positivamente, parte do respeito à iniciativa absoluta do Deus criador, assim como do reconhecimento de seu amor incondicional e de sua bondade sem medida nem discriminação de nenhum tipo. A um Deus pai-mãe, que desde sempre outra coisa não busca senão nossa plenitude e salvação, é óbvio que não tem sentido procurar informar, convencer ou despertar a compaixão; ao contrário, todo o nosso esforço há de se concentrar em deixar-nos iluminar, guiar e convencer por Ele. Não seria objetivamente ofensivo querer recordar a Deus que na África alguns de seus filhos estão passando fome e suplicar-lhe, então, que tenha piedade deles? Sim, porque a situação é exatamente a contrária: é Deus quem, antes de ninguém e com maior compaixão do que ninguém, "escuta os gemidos" dos que sofrem (Ex 2,24); é Ele quem suscita em nós a consciência e o desejo de ajudá-los (cf. Ex 3,7-11); é Ele quem - isto, sim - diz a cada um de nós: "Escuta e tem piedade" de teus irmãos, que são meus filhos, e cujos gritos são meus gritos. Afinal, "informar" Deus iria contra sua onisciência; mas procurar "despertar sua compaixão" nega a primazia de sua salvação e lesiona o próprio coração de sua bondade.

Na vivência comum e concreta, no modo de pregar, rezar ou celebrar a liturgia, e mesmo no modo de fazer teologia, tudo procede como se nós, os humanos, fôssemos os ativos e os preocupados, os que têm de conquistar a salvação. Conquistá-la diante de um Deus "no céu", que teoricamente nos ama, mas que na efetividade vivencial permanece, ao contrário, passivo até que consigamos movê-lo com nossas súplicas, conquistá-lo com nossas obras e sacrifícios, obter seu perdão com nossas penitências e até mesmo acalmá-lo com a ajuda de nossos intercessores. Por isso, ele também manda e proíbe, premia e castiga, reserva para si um espaço de nossa vida - o "sagrado" - e nos deixa o resto - o "profano".

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 16, 17, 30, 35, 93, 94 e 95)

JEJUM E DISCIPLINA

O jejum pode nos ajudar a discernir os alimentos materiais e imateriais que exercem controle sobre nossos apetites. Se não temos controle sobre o que comemos, provavelmente não teremos controle também sobre outras áreas da vida. O jejum, tudo indica, exerce esse papel espiritual de diagnosticar o campo dos desejos, dos sentimentos. Assim, o jejum pode ser também um eficiente instrumento para o discípulo aprender a controlar seus apetites. Quem controla a quantidade, a frequência da alimentação e o tipo de comida, tem mais probabilidade de controlar outras áreas da vida. O jejum é, portanto, uma disciplina primária, um passo inicial afim de que o discípulo adquira habilidade suficiente para gerenciar outros desejos, desde os mais lascivos a até mesmo os mais nobres.

Quando Jesus adverte seus discípulos a praticarem a oração e o jejum, a fim de não caírem em tentação, não está indicando um passo de mágica para se vencer a tentação. Está, sim, indicando o jejum como um exercício que condiciona o discípulo a ter domínio sobre as tentações, palavras, reações inconsequentes ou desejos prejudiciais à vida. Pensando nessa direção, reservar momentos de jejum significa abster-se não somente de comida, mas também de palavras, desejos, condicionamentos de todo tipo de ativismo. É acolhimento ao deserto, ao silêncio da alma, ao despojamento máximo. O jejum é um caminho de prato vazio, é a caminhada sem alforjes e sandálias, uma quebra de rotina. Neste sentido, jejuar é disciplinar cotidianamente a vida a manter-se num estado de total dependência de Deus; por isso os pobres de espírito vivem disciplinadamente em permanente jejum de tudo.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; pág: 160)


Viver tudo "a partir de Deus". Tal atitude significa dar literalmente a volta em todos os nossos hábitos mentais e vivenciais, os quais, de modo quase irremissível, situam em nós a iniciativa, enquanto colocam Deus "lá em cima", de onde - talvez à força de invocações e sacrifícios - pode nos dar uma mão de vez em quando. É se aperceber, no final das contas, de que Deus é sempre o primeiro e que o nosso papel é secundá-lo, deixando-nos ser e salvar por Ele, pois o máximo e o melhor a que podemos aspirar, o que conseguimos nos melhores momentos, é colaborar com Ele.

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; pág: 139)

A ORAÇÃO E OS LIMPOS DE CORAÇÃO

A oração é feita a um Deus transcendente, todo-poderoso, imutável, infinito, inominável, que conhece e, por isso, não se impressiona com aqueles que oram repetindo palavras, nem com aqueles que dão esmolas para serem visto pelos homens. Não se deixa comprar pela confissão labial: "Senhor, senhor...", não se curva diante das reivindicações daqueles que, mesmo tendo profetizado, expelido demônios ou feito milagres, nunca aprenderam a orar como estilo de vida em amizade e comunhão com o Pai. A estes o nosso Pai do céu dirá: "Nunca vos conheci... Não tivemos um único momento de comunhão e relacionamento paterno-filial". O pai que está no céu não é manipulável, é totalmente Outro, independente, indescritível, suficiente em si mesmo, inconfundível com qualquer ídolo. Ele já é santo, mas é necessário que a santidade dele se manifeste em nós. O discípulo ora para que venha o reino desse Pai e que tenha pleno domínio antecipado sobre a terra, assim como já o é no mundo celestial.

Os limpos de coração não tocam trombeta quando dão suas esmolas, não oram em pé nas praças para serem vistos pelos homens, não jejuam e depois se apresentam com o rosto desfigurado para impressionar as pessoas. Os limpos de coração estão revestidos de boas motivações, sinceridade, agem de maneira transparente em todas as áreas da vida. Sinceridade e integridade são as características mais evidentes dos limpos de coração.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 96, 97, 155 e 156)

SAL DA TERRA


Da mesma maneira como o sal age temperando a comida e ninguém vê o sal, assim também é a atuação do discípulo, age de maneira discreta sem precisar aparecer. Somos levados a concluir que a vida do discípulo só faz sentido se, primeiramente, estiver presente na sociedade: "vós sois o sal da terra". Além disso, se faz necessário que essa presença seja relevante: - "Ora, se o sal vier a ser insípido...". Da mesma forma como o sal, que para nada mais presta se perder as suas propriedades, o discípulo perde a relevância do testemunho se fizer descaso da sua essência básica de vida, sua natureza, seus valores e princípios. O discípulo é sal da terra quando sua presença agregar valor ao ambiente, quando exercer a vocação de ser gente, quando agir como filho de Deus. Sal que deixa de ser sal é descartável, assim como o discípulo que esquece ou faz descaso da vocação de ser filho de Deus.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 112, 113 e 114)

22 de março de 2016

ESFERAS DE SIGNIFICAÇÃO SOCIAL


Todo ser humano muda de opinião dependendo das circunstâncias. (...) Estou me referindo a espaços - a esferas de significação social - casa, rua e outro mundo - que fazem mais do que separar contextos e configurar atitudes. É que eles contêm visões de mundo ou éticas particulares. Não se trata de cenários ou de máscaras que um sujeito usa ou desusa (...) de acordo com suas estratégias diante da "realidade", mas de esferas de sentido que constituem a própria qualidade e que permitem normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas próprias.

Roberto DaMatta (A Casa e a Rua; pág: 44)

19 de março de 2016

A CASA, A RUA E OUTRO MUNDO

É possível "ler" o Brasil de um ponto de vista da casa, da perspectiva da rua e do ângulo do outro mundo. E mais, essas possibilidades estão institucionalizadas entre nós. (...) Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta. Aqui, a emoção é englobadora, confundindo-se com o espaço social que está de acordo com ela. Nesses contextos, todos podem ter sido adversários ou até mesmo inimigos, mas o discurso indica que também são "irmãos" porque pertencem a uma mesma pátria ou instituição social. Leituras pelo ângulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação. Já as leituras pelo prisma do outro mundo são falas inteiramente relativizadoras e muito mais inclusivas, onde as misérias do mundo são criticamente apontadas. Seu tirocínio é que há um outro lugar e uma outra lógica, que nos condena a todos a uma igualdade perante forças maiores do que nós. O resultado disso é um sistema de classificação diferenciado. (...) Mas o que temos, realmente, é um sistema que apresenta três modos diferenciados e complementares de "ordenar" e também de reconstruir e construir (ou inventar) a experiência social brasileira.

Assim, sabemos que em casa podemos fazer coisas que são condenadas na rua, como exigir atenção para a nossa presença e opinião, querer um lugar determinado e permanente na hierarquia da família e requerer um espaço a que temos direito inalienável e perpétuo. Em casa somos todos, conforme tenho dito, "supercidadãos". Mas e na rua? Bem, aqui passamos sempre por indivíduos anônimos e desgarrados, somos quase sempre maltratados pelas chamadas "autoridades" e não temos nem paz, nem voz. Somos rigorosamente "subcidadãos" e não será exagerado observar que, por causa disso, nosso comportamento na rua (e nas coisas públicas que ela necessariamente encerra) é igualmente negativo. Jogamos o lixo para fora de nossa calçada, portas e janelas; não obedecemos às regras de trânsito, somos até mesmo capazes de depredar a coisa comum, utilizando aquele célebre e não analisado argumento segundo o qual tudo que fica fora de nossa casa é um "problema do governo"! Na rua a vergonha da desordem não é mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo... Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar. Não ocorreu entre nós (...) uma "revolução" que viesse harmonizar ou tornar hegemônico apenas um destes eixos em relação aos outros.

Roberto DaMatta (A Casa e a Rua; págs: 18 e 19)

CAMARADAGEM POLÍTICA

De Nunes Machado costumava dizer o Marquês de Paraná que era capaz de todas as coragens, menos da coragem de resistir aos amigos. O grande estadista do Segundo Império fez, sem o pensar talvez, a síntese de toda a nossa psicologia política: é a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracteriza a nossa conduta no poder.

Oliveira Vianna (Pequenos Estudos de Psychologia Social)

PERDER TAMBÉM É GANHAR


Aprender é isso, afinal de contas: não se perdemos a partida, mas como perdemos e como mudamos por causa disso, o proveito que levamos e que não tínhamos antes, a fim de aplicar a outras partidas. Perder, de uma maneira curiosa, é vencer.

Richard Bach (A Ponte Para o Sempre; pág: 170)

18 de março de 2016

O GRANDE MISTÉRIO

"O cristianismo perde sua essência quando fica baseado demais na fé em vez de viver como Jesus ou ver o mundo como Jesus o viu. Acho que as diferentes religiões são portas diferentes para a mesma casa. Às vezes, acho que a casa existe, e às vezes, não. É o grande mistério".

Steve Jobs

Walter Isaacson (Steve Jobs; pág: 33)

O PAPEL DO INTELECTUAL

Michel Foucault
 
O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos. Cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de análise, e é este hoje, essencialmente, o papel do historiador. Trata-se, com efeito, de ter do presente uma percepção densa, de longo alcance, que permita localizar onde estão os pontos frágeis, onde estão os pontos fortes, a que estão ligados os poderes - segundo uma organização que já tem cento e cinquenta anos - onde eles se implantaram. Em outros termos, fazer um sumário topográfico e geológico da batalha... Eis aí o papel do intelectual. Mas de maneira alguma, dizer: eis o que vocês devem fazer!

Michel Foucault (Microfísica do Poder; pág: 151)

JUSTIÇA BURGUESA

A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado. (...) Será que o estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá-la em sua luta real em proveito de uma arbitragem ideal? É por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação. (...) A justiça penal não foi produzida nem pela plebe, nem pelo campesinato, nem pelo proletariado, mas pura e simplesmente pela burguesia, como um instrumento tático importante no jogo de divisões que ele queria introduzir. (...) O tribunal implica também a existência de categorias comuns às partes em presença (categorias penais como o roubo, a vigarice; categorias morais como o honesto e o desonesto) e que as partes em presença aceitem submeter-se a elas. É tudo isso que a burguesia quer fazer crer sobre a justiça, a sua justiça. (...) É por isso que incomoda a idéia de um tribunal popular. Sobretudo se os intelectuais desempenham nele os papéis do procurador ou do juiz, porque é precisamente por intermédio dos intelectuais que a burguesia tem espalhado e imposto os temas ideológicos de que falo. (...) Uma justiça só é justa se for exercida por alguém exterior à questão, por um intelectual, um especialista da idealidade. Se, ainda por cima, este tribunal popular é presidido ou organizado por intelectuais que vêm escutar o que dizem os operários de um lado e o patronato do outro e afirmar "um é inocente, o outro é culpado", há uma infiltração de idealismo nisto! Ao fazer dele um modelo geral para mostrar o que é a justiça popular, temo que se escolha o pior modelo.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 39, 40, 56, 60 e 63)

O PODER DA VERDADE


A verdade não existe fora do poder ou sem poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. Em nossas sociedades, a "economia política" da verdade tem cinco características historicamente importantes: a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas "ideológicas"). (...) O problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder - o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder - mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 12, 13 e 14)

17 de março de 2016

TEÍSTAS ABERTOS E CALVINISTAS CONTEMPORÂNEOS

Para calvinistas contemporâneos e teístas abertos, que procuram propor e  responder a questão em termos de outro tempo, a importância do embate entre soberania de Deus e libre-arbítrio fica clara quando se consideram as terríveis consequências lógicas, morais e ideológicas de abraçar a doutrina oposta.

Os teístas abertos começaram a ganhar terreno e adeptos denunciando, basicamente, o que veem ser as abomináveis consequências morais do calvinismo. Para aceitar o calvinismo da ortodoxia, argumentam eles, é preciso endossar uma série de noções teológicas incompatíveis com o caráter generoso e relacional de Deus. Por exemplo: 1) que Deus é o único responsável pelo mal; 2) que Deus está mentindo quando dá a entender que o homem é responsável por suas ações; 3) que a oração de súplica é uma farsa perversa, visto que o futuro é imutável e Deus não poder ser persuadido a mudar de ideia; 4) que de nada adianta pregar a boa-nova, visto que os eleitos acabarão encontrando a luz de uma forma ou de outra; 5) que não existem injustiças sociais ou morais, visto que cada baixa de todas as guerras e de todas as pobrezas estavam previstas no roteiro original do próprio Deus.

Os calvinistas rebatem com o que creem ser as inadmissíveis consequências teológicas do teísmo aberto. O Deus do teísmo aberto é, reclamam eles: 1) menos que onisciente, porque não conhece o futuro; 2) menos que onipotente. porque não será capaz de impor sua vontade se estiver restringido pela liberdade humana; 3) menos que absoluto e eterno, por estar sujeito ao avanço linear do tempo no próprio universo que criou, e 4) menos que onipresente, porque o futuro não é uma realidade presente para ele.

Como demonstram essas séries muito simplificadas de objeções de ambos os lados, a preocupação fundamental dos teístas abertos é defender a bondade de Deus; a dos calvinistas, seus atributos.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 191 e 192)

A LIBERDADE QUALIFICA O RELACIONAMENTO

Deus intervém, mas não manipula; age, mas não condena ninguém ao inferno. A liberdade do homem é terrivelmente real, refletindo a liberdade do próprio Deus; é o encontro dessas liberdades que qualifica o tipo de relacionamento que Deus propõe experimentar com o homem. Deus não escolhe se definir por seu tremendo poder, mas pelo esvaziamento de poder, conforme exuberantemente manifesto na encarnação e na carne de Jesus. A missão do sistema do teísmo aberto é libertar Deus das amarras de sua soberania e a devoção cristã das contradições impensáveis do determinismo.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 190)

16 de março de 2016

CAPACIDADES ESSENCIAIS DO COMPORTAMENTO INTELIGENTE


Encontro em Douglas R. Hofstadter esta lista de capacidades essenciais do comportamento inteligente:

* Responder a situações de forma muito flexível.
* Tirar vantagem de circunstâncias fortuitas.
* Encontrar sentido em mensagens ambíguas ou contraditórias.
* Reconhecer a importância relativa de diferentes elementos de uma situação.
* Encontrar similaridades entre situações a despeito de diferenças que possam separá-las.
* Estabelecer distinções entre situações a despeito das similaridades que possam relacioná-las.
* Sintetizar conceitos novos tomando conceitos velhos e rearranjando-os de formas novas.
* Produzir ideias inéditas.

O problema dessa lista é que, tomada ao pé da letra, parece excluir uma enorme proporção do comportamento humano.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 252 e 253)

A BOA-NOVA

O cerne da "boa-nova" cristã está em que não se pode extorquir de Deus aquilo que ele se dispõe a oferecer gratuitamente. Essa portentosa revelação transforma imediatamente em obsolescência e contravenção as mais consagradas práticas de chantagem contra a divindade, coisas como ofertas, sacrifícios e religião.

Nós, da instituição, temos um plano de salvação do mundo em que é parte essencial recolher ofertas, juntar doações, pedir dinheiro; ou seja, estamos exigindo, e com a melhor das boas intenções, o que nem todos podem dar - quando a boa-nova consiste justamente em desafiar o homem a oferecer a todos o que todos podem oferecer. Não se pode esconder uma boa-nova que se aplica a qualquer um, por isso, quando não atinge indiscriminadamente a todos, a cidade não está sobre o monte, e pode ser facilmente escondida.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 52 e 321)

EM BUSCA DA VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Ainda não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
A segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade


Atinge-se a verdade - continuou Nietzsche - através da descrença e do ceticismo, e não do desejo infantil de que algo seja de certa forma! O desejo de seu paciente de estar nas mãos de Deus não é a verdade. É simplesmente um desejo infantil, e nada mais! É um desejo de não morrer. (...) Não é a verdade que é sagrada, mas a procura de nossa própria verdade! (...) Se as crenças e o comportamento humano devem ser entendidos, é preciso primeiro varrer a convenção, a mitologia e a religião. Somente então, sem "nenhuma preconcepção, qualquer que seja", pode-se ter a pretensão de examinar o sujeito humano. (...) A partir da descrença, pode-se criar um código de conduta para o homem, uma nova moralidade, um novo esclarecimento em substituição aos gerados pela superstição e pela ânsia do sobrenatural.

Irvin D. Yalom (Quando Nietzsche Chorou; págs: 90, 91, 137 e 176)

15 de março de 2016

O HORROR DE VIVER UMA VIDA INOBSERVADA

Jamais encontrara um paciente que não gostasse secretamente de um exame microscópio de sua vida. Quanto maior o poder de ampliação, mais o paciente gostava. A alegria de ser observado era tão arraigada que, na crença de Breuer, a verdadeira dor da velhice, do luto, de sobreviver aos amigos estava na ausência de escrutínio: o horror de viver uma vida inobservada.

Irvin D. Yalom (Quando Nietzsche Chorou; pág: 75)

AMON SÛL


Mas muito antes, nos dias do Reinado do Norte, construíram uma grande torre de observação no Topo do Vento, que chamavam de Amon Sûl. Ela foi queimada e destruída, e nada mais resta agora, a não ser um círculo em ruínas, como uma coroa grosseira sobre a cabeça da velha colina. Apesar disso, já foi alta e bonita. Conta-se que Elendil ficava ali olhando, à espera de Gil-galad que vinha do Oeste, nos dias da Última Aliança.

Gil-galad foi o último dos Reis-elfos da Terra-média. Gil-galad quer dizer luz das estrelas na língua deles. Junto com Elendil, o Amigo-dos-elfos, ele foi para a terra de... [Mordor]

J.R.R. Tolkien (O Senhor Dos Anéis; págs: 192 e 198)

A REVOLTA

O Grito (Edvard Munch)

No capítulo de Os Irmãos Karamázov "A revolta", Ivan narra a história real de uma criança supliciada por um general, rebela-se contra Deus, declara que rejeita seu mundo, que lhe devolve o bilhete de entrada nesse mundo, nega-se a aceitar uma harmonia universal à custa de vítimas humanas, da anulação do ser humano como agente de sua própria vontade e da responsabilidade por seus atos, ou de sua redução a simples marionetes que assistem passivamente ao desenrolar do processo histórico e estão sujeitas aos caprichos de potências estranhas à vida e aos interesses dos homens: ele não quer "estrumar com suas lágrimas a futura harmonia de não sei quem".

Paulo Bezerra

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; pág: 1011)

O VERDADEIRO CIUMENTO


Ciúme! "Otelo não é ciumento, é crédulo" - observou Púchkin, e só essa observação já é uma prova da profundidade incomum do nosso grande poeta. Otelo estava simplesmente com a alma em frangalhos e com toda sua visão de mundo turvada porque morrera o seu ideal. Mas Otelo não ficaria se escondendo, espionando, com olhares furtivos, ele é crédulo. Ao contrário, precisava ser açulado, incitado, atiçado com esforços extraordinários para que só assim se apercebesse da traição. Não é assim o verdadeiro ciumento. É até impossível imaginar toda a desonra e decadência moral a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem quaisquer remorsos. E note-se que nem todos são propriamente almas torpes e sórdidas. Ao contrário, de coração elevado, de amor puro, cheios de abnegação, podem ao mesmo tempo esconder-se debaixo de mesas, subornar diaristas torpes e acomodar-se à mais indecente sordidez da espionagem e da escuta atrás das portas. Otelo não poderia se conformar com a traição por nada neste mundo - deixar de perdoar não deixaria, mas se conformar, não - embora fosse de alma pacata e pura como a alma de uma criança. Não é o mesmo que acontece com o verdadeiro ciumento: é difícil imaginar a que esse ou aquele ciumento pode acomodar-se e conformar-se e o que pode perdoar! Os ciumentos são os primeiros a perdoar, e isso todas as mulheres sabem. O ciumento pode e é capaz de perdoar depressa demais (claro, após uma terrível cena inicial), por exemplo, uma traição já quase provada, os abraços e beijos já presenciados por ele mesmo, se, por exemplo, puder ao mesmo tempo asseverar-se, de alguma maneira, de que isso aconteceu "pela última vez" e que a partir desse momento seu rival desaparecerá, irá para o fim do mundo, ou ele mesmo a levará para algum lugar em que esse terrível rival não voltará a aparecer. É claro que a conciliação acontecerá apenas por uma hora, porque, mesmo que o rival tenha realmente desaparecido, amanhã mesmo ele inventará outro, um novo, e voltará a ter ciúmes. Poder-se-ia pensar: que amor é esse que precisa ser tão vigiado, e de que vale um amor que precisa ser tão intensamente vigiado?

Pois é isso que nunca irá compreender o verdadeiro ciumento; não obstante, palavra, entre eles aparecem pessoas até de coração elevado. Também é digno de nota que, estando essas mesmas pessoas de corações elevados em algum cubículo, escutando atrás da porta e espionando, ainda que, com "seus corações elevados", compreendam claramente toda a desonra em que caíram voluntariamente, mesmo assim nunca sentem remorso, ao menos enquanto se encontram nesse cubículo. Quando Mítia via Grúchenka desaparecia-lhe o ciúme e num instante ele se tornava crédulo e nobre, chegava até a se desprezar por nutrir maus sentimentos. Isto, porém, significava, apenas que em seu amor por essa mulher havia algo bem mais elevado do que ele mesmo supunha e não só paixão, não só as "curvas do corpo" de que ele falara a Aliócha. Não obstante, mal Grúchenka desaparecia Mítia voltava a suspeitar que ela estivesse praticando todas as baixezas e artimanhas da traição. E aí não sentia nenhum remorso.

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; págs: 508 e 509)

JÁ QUE TROUXE ESSE CÁLICE AOS LÁBIOS...

Bukowski

Se eu não acreditasse na vida, se perdesse a confiança na mulher querida, se perdesse a confiança na ordem das coisas, se me convencesse até de que tudo, ao contrário, é uma desordem, um caos maldito e talvez até demoníaco, mesmo que todos os horrores da frustração humana me atingissem, ainda assim eu teria vontade de viver, e já que trouxe esse cálice aos lábios não o afastaria de mim enquanto não o esvaziasse! Pensando bem, aí por volta dos trinta anos certamente largarei o cálice mesmo sem esvaziá-lo e me afastarei... não sei para onde. Mas até os trinta ano, disso estou firmemente certo, minha mocidade vencerá tudo - qualquer frustração, qualquer aversão à vida. Muitas vezes fiz a mim mesmo esta pergunta: se existirá no mundo um desespero que vença em mim essa sede frenética e talvez indecente de viver, e decidi que tal coisa parece não existir, ou, reiterando, não existe antes dos trinta anos, porque depois eu mesmo já não vou querer, assim me parece. Frequentemente uns moralistas tísicos e ranhosos, principalmente os poetas, chamam de torpe essa sede de viver. (...) mas por que é torpe? Ainda existe um volume colossal de força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o céu azul, é caro esse ou aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe porque gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança antiga, o respeita de coração. (...) Aí não se trata de inteligência, nem de lógica, aí se ama com as entranhas, aí se gosta com o ventre, aí se ama com as primeiras forças da juventude...

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; págs: 317 e 318)

O RITUAL DO CHÁ


O chá constitui o cerne da aptidão para ver a grandeza das pequenas coisas. Onde se encontra a beleza? Nas grandes coisas que, como as outras, estão condenadas a morrer, ou nas pequenas que, sem nada pretender, sabem incrustar no instante uma preciosa pedrinha de infinito? O ritual do chá, essa recondução exata dos mesmos gestos e da mesma degustação, esse acesso a sensações simples, autênticas e requintadas, essa licença dada a cada um, a baixo custo, de se tornar um aristocrata do gosto, porque o chá é a bebida tanto dos ricos como dos pobres, o ritual do chá, portanto, tem essa virtude extraordinária de introduzir no absurdo de nossas vidas uma brecha de harmonia serena. Sim, o universo conspira para a vacuidade, as almas perdidas choram a beleza, a insignificância nos cerca. Então, bebamos uma xícara de chá. Faz-se o silêncio, ouve-se o vento que sopra lá fora, as folhas de outono sussurram e voam, o gato dorme sob uma luz quente. E, em cada gole, se sublima o tempo.

Muriel Barbery (A Elegância do Ouriço; págs: 95 e 96)

14 de março de 2016

SE EU PUDESSE RETORNAR NO TEMPO

Ah! Se eu pudesse retornar no tempo! Conquistaria menos poder e teria mais poder de conquistar. Beberia algumas doces de irresponsabilidade, me colocaria menos como aparelho de resolver problemas e me permitiria relaxar, pensar no abstrato, refletir sobre os mistérios que me cercam. Se eu pudesse retornar no tempo, procuraria meus amigos da juventude. Onde estão? Quem está vivo? Eu os procuraria e reviveria as experiências singelas colhidas no jardim da simplicidade, onde não havia as ervas daninhas do status nem a sedução do poder financeiro. Se eu pudesse retornar, daria mais telefonemas para a mulher da minha vida nos intervalos das reuniões. Procuraria ser um profissional mais estúpido e um amante mais intenso. Seria mais bem-humorado e menos pragmático, menos lógico e mais romântico. Escreveria poesias tolas de amor. Diria mais vezes "eu te amo!". Reconheceria sem medo: "perdoe-me por trocá-la pelas reuniões de trabalho! Não desista de mim". Ah, se eu pudesse retornar nas asas do tempo! Beijaria mais meus filhos, brincaria muito mais, curtiria sua infância como a terra seca absorve a água. Sairia na chuva com eles, andaria descalço na terra, subiria em árvores. Teria menos medo que se ferissem e se gripassem, e mais medo de que se contaminassem com o sistema social. Seria mais livre no presente e menos escravo do futuro. Trabalharia menos para lhes dar o mundo e me esforçaria muito mais para lhes dar o meu mundo.

Augusto Cury (O Vendedor de Sonhos - o chamado; pág: 286)

A OUTRA FACE

Dar a outra face é um símbolo de maturidade e força interior. Não se refere à face física, mas à psíquica. Dar a outra face é procurar fazer o bem para quem nos decepciona, é ter elegância para elogiar quem nos difama, altruísmo para ser gentil com quem nos aborrece. É sair silenciosamente e sem estardalhaço da linha de fogo dos que nos agridem. Dar a outra face previne homicídios, traumas, cicatrizes impagáveis. Os fracos se vingam, os fortes se protegem.

Augusto Cury (O Vendedor de Sonhos - o chamado; pág: 228)

 
Jesus não estimulou seus discípulos a irem tomar cafezinho com pessoas perversas. Ele apenas orienta que não se faça resistência a tais indivíduos. Também não manda seus discípulos oferecerem a face para ser batida em qualquer situação. Mas há situações em que, por causa do perfil do inimigo, não se consegue reconciliação nem negociação. E aí, nestes casos, a melhor atitude é não revidar, não resistir ao perverso.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; pág: 127)

O FILHO DO HOMEM

Jesus contou mais de sessenta vezes que era o filho do homem. Poucos na história entenderam o que ele queria dizer. Revelou paulatinamente que era cem por cento pela humanidade e não apenas pelo judeus. Ao insistir que era filho do homem, queria mostrar em código que era filho da humanidade, que era o primeiro ser humano completamente sem fronteiras. Sua cultura, raça, nacionalidade eram importantes, mas sua condição de ser humano era muito mais.

Augusto Cury (O Vendedor de Sonhos - o chamado; pág: 212)

11 de março de 2016

RELIGIÃO VS. CIÊNCIA

 
A ciência pode ter aliviado os sofrimentos das doenças e dos trabalhos enfadonhos e fatigantes, pode ter proporcionado uma série de aparelhos engenhosos para nossa conveniência e distração, mas deixou-nos em um mundo sem deslumbramento. Nossos crepúsculos foram reduzidos a comprimentos de ondas e frequências. As complexidades do universo foram desmembradas em equações matemáticas. Até o nosso amor-próprio de seres humanos foi destruído. A ciência proclama que o planeta Terra e seus habitantes são um cisco insignificante no grande plano. Um acidente cósmico. (...) Até a tecnologia que promete nos unir, ao contrário, só nos divide. Cada um de nós está hoje eletronicamente conectado ao globo inteiro e, entretanto, todos nos sentimos sós. Somos bombardeados pela violência, pela divisão, pela desintegração e pela traição. O ceticismo passou a ser uma virtude. O cinismo e a exigência de provas para tudo converteram-se em pensamento esclarecido. Alguém ainda se admira que as pessoas hoje se sintam mais deprimidas e derrotadas do que em qualquer outra ocasião da história do homem? Será que existe alguma coisa que a ciência considere sagrada? A ciência procura respostas usando fetos não-nascidos como material de pesquisa. A ciência até se atreve a reorganizar nosso DNA. Despedaça o mundo de Deus em parcelas cada vez menores em busca de significados e só encontra mais perguntas. (...).
 
Medicina, comunicações eletrônicas, viagens espaciais, manipulação genética, estes são os milagres sobre os quais agora falamos às nossas crianças. Estes são os milagres que alardeamos como prova de que a ciência nos trará as respostas. As istórias antigas de concepções imaculadas e mares que se abrem não são mais relevantes. Deus ficou obsoleto. A ciência venceu a batalha. (...) A velha guerra entre a ciência e a religião está encerrada. (...) Vocês venceram. Mas não venceram honestamente. (...) Venceram redirecionando nossa sociedade de modo tão radical que as verdades que outrora víamos como diretrizes agora parecem inaplicáveis. A religião não tem capacidade para acompanhar isto. O crescimento científico é exponencial. Alimenta-se de si mesmo como um vírus. Cada novo avanço abre caminho para outros novos avanços. A humanidade levou milhares de anos para evoluir da roda para o carro. E apenas décadas do carro para o espaço. Atualmente, calculamos por semana o progresso científico. (...) À medida que a religião vai ficando para trás, as pessoas se vêem em um vazio espiritual. Imploramos pelo sentido das coisas. E, acreditem, imploramos de fato. Vemos OVNIs, frequentamos médiuns, buscamos contato com os espíritos, experiências extracorpóreas, uso do poder mental - todas essas idéias excêntricas têm um verniz científico, mas são descaradamente irracionais. São o grito desesperado da alma moderna, solitária e atormentada, deformada por seu próprio esclarecimento e por sua incapacidade de aceitar que haja sentido em qualquer coisa que seja estranha à tecnologia. (...).

Quem é esse deus-ciência? Quem é esse deus que oferece poder a seu povo, mas nenhuma estrutura moral para lhe dizer como usar este poder? Que tipo de deus dá fogo a uma criança, mas não a avisa sobre seus perigos? A linguagem da ciência não vem com diretrizes sobre o bem e o mal. Os livros científicos explicam-nos como criar uma reação nuclear, mas não têm nenhum capítulo discutindo se é uma boa ou má idéia. À ciência, quero dizer o seguinte: a Igreja está cansada. Estamos exaustos de tanto tentar ser uma diretriz para o mundo. Nossos recursos estão esgotados por sermos a voz do equilíbrio enquanto vocês se atiram de cabeça em sua busca por chips menores e lucros maiores. Nem perguntamos por que vocês não se controlam, pois como poderiam? Seu mundo anda tão depressa que, se pararem por um instante que seja para refletir sobre as implicações de seus atos, alguém mais eficiente pode ultrapassá-los em um piscar de olhos. Por isso, vocês vão em frente. Promovem o aumento das armas de destruição em massa, mas é o Papa quem tem de viajar pelo mundo suplicando aos líderes que tenham prudência. Clonam criaturas vivas, mas é a Igreja que tem de lembrar a necessidade de considerarmos as implicações morais de nossos atos. Incentivam as pessoas a interagir através de telefones, telas de vídeo e computadores, mas é a Igreja que abre suas portas e nos lembra de comungar aqui, no mundo real, que é como se deve fazer. Vocês até matam bebês que ainda não nasceram em nome de pesquisas que salvarão vidas. Mais uma vez, cabe à Igreja comprovar a falácia de tal raciocínio. (...).

A moral humana não avançava tão depressa quanto a ciência. A humanidade não era bastante evoluída espiritualmente para os poderes que possuía. Nunca criamos uma arma que não tenhamos usado! (...) O homem ainda podia destruir. O homem aprendera a matar havia muito tempo. (...) Durante séculos (...) a Igreja se manteve impassível enquanto a ciência desmoralizava a religião pouco a pouco. Desmascarando milagres. Treinando a mente para superar o coração. Condenando a religião como o ópio das massas. Deus foi acusado de ser uma alucinação - um arrimo ilusório para os muito fracos, incapazes de aceitar que a vida não tem qualquer sentido. (...) O que está errado em admitir que algo existe além de nossa compreensão? O dia em que a ciência comprovar a existência de Deus em um laboratório será o dia em que as pessoas não terão mais necessidade de fé! (...).

A dúvida é o seu último farrapo de controle. É a dúvida que traz as almas para vocês. A necessidade humana de saber se a vida tem sentido. A insegurança e a necessidade do homem de uma mente instruída que lhe garanta que tudo é parte de um plano geral. Só que a Igreja não é a única mente instruída do planeta! Nós todos buscamos Deus de diferentes maneiras. De que tem medo? Que Deus se mostre em algum outro lugar fora destas paredes? Que as pessoas O encontrem em suas próprias vidas e deixem esses rituais antiquados para trás? As religiões evoluem! A mente encontra respostas, o coração se apega a novas verdades. Meu pai buscava o mesmo que você! Em um caminho paralelo! Como não enxergou isso? Deus não é uma autoridade onipotente que nos olha de cima, ameaçando nos atirar em um poço de fogo se desobedecermos. Deus é a energia que flui através das sinapses de nossos sistemas nervosos e dos ventrículos de nossos corações! Deus está em todas as coisas! (...).

Usem seus telescópios para olhar o céu e me digam como é possível não haver um Deus! (...) Não vêem Deus em sua ciência? Como podem deixar de vê-Lo! Vocês proclamam que a menor alteração na força da gravidade ou no peso de um átomo teria convertido nosso universo em uma névoa sem vida em vez do magnífico mar de corpos celestes que contemplamos, e ainda assim deixam de ver a mão de Deus nisso? Será que é mesmo tão mais fácil acreditar que escolhemos a carta certa em um baralho em que há bilhões delas? Será que estamos tão falidos espiritualmente que preferimos acreditar numa impossibilidade matemática e não em um poder maior do que nós? (...) Quando nós, como espécie, abandonamos a confiança em um poder maior do que nós, abandonamos também nossa noção da obrigatoriedade de prestar contas. A fé, todas as formas de fé, são advertências de que existe algo que não podemos compreender, algo a que temos de responder. Com fé, prestamos contas uns aos outros, a nós mesmos e a uma verdade maior. A religião é falha, mas só porque o homem é falho.

Dan Brown (Anjos e Demônios; págs: 314, 315, 316, 317, 435 e 436)


"Deus é apenas uma hipótese... porém... reconheço que ele é necessário, para a ordem... para a ordem universal, etc... e se Ele não existisse seria preciso inventá-lo".

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; pág: 720)

AS RELIGIÕES NÃO COMEÇAM DO ZERO

Os halos, como grande parte da simbologia cristã, foram tirados da antiga religião egípcia baseada na adoração do Sol. O cristianismo está cheio de manifestações de adoração ao Sol. (...) O que você comemora no dia 25 de dezembro? [Natal] (...) O dia 25 de dezembro, meus amigos, é o dia da antiga festa pagã do sol invictus, o Sol Invicto, que coincidia com o solstício de inverno. É aquela maravilhosa fase do ano em que o Sol retorna e os dias começam a ficar mais longos outra vez. (...) As religiões vitoriosas costumam adotar as festas já existentes para tornar a conversão menos chocante. Chama-se a isto de transmutação. Ajuda as pessoas a se acostumarem com a nova fé. Os devotos mantêm as mesmas datas santas, rezam nos mesmos locais sagrados, usam uma simbologia semelhante e apenas substituem o deus anterior por outro diferente. (...) O cristianismo não tomou elementos emprestados somente da adoração ao Sol. O ritual da canonização cristã foi tirado do antigo rito de deificação de Euhemerus. A prática de "comer Deus", ou seja, a Santa Comunhão, foi copiada dos astecas. Até o conceito de Cristo morrer por nossos pecados pode-se dizer que não é exclusivamente cristão: o auto-sacrifício de um rapaz para absolver os pecados de seu povo aparece nos registros das mais remotas tradições associadas a Quetzalcoatl. (...) Muito pouco em qualquer religião organizada é inteiramente original. As religiões não começam do zero. Crescem uma a partir da outra. As religiões modernas são colagens, um registro histórico assimilado do esforço humano para compreender o divino. (...) A arte cristã nunca retrata Deus igual a um falcão, a um animal asteca ou algo esquisito assim. Sempre mostra Deus como um velho de barba branca. Então, a nossa imagem de Deus é original, não é? (...) Quando os primeiros cristãos convertidos abandonaram suas divindades anteriores, como os deuses pagãos, os deuses romanos, os deuses gregos, o Sol, Mitra ou o que seja, eles perguntaram à Igreja com quem se parecia o seu deus cristão. Sabiamente, a Igreja escolheu o mais temido, o mais poderoso e aquele cuja aparência era a mais conhecida de que se tinha notícia. (...) Zeus não lhe parece familiar?
 
Dan Brown (Anjos e Demônios; págs: 206 e 207)
 

Os símbolos são muito flexíveis, mas o pentagrama foi alterado pela Igreja Católica Romana primitiva. Como parte da campanha do Vaticano para erradicar as religiões pagãs e converter as massas ao cristianismo, a Igreja lançou uma campanha de desmoralização dos deuses e deusas pagãos, definindo seus símbolos divinos como símbolos do mal. (...) Isso é muito comum em épocas de conturbações (...) Um poder emergente se apodera dos símbolos existentes e os degrada com o passar do tempo para tentar eliminar-lhes o significado. Na batalha entre os símbolos pagãos e os símbolos cristãos, os pagãos foram derrotados; o tridente de Possêidon se tornou o tridente do demônio, o chapéu pontudo do mago se transformou no símbolo das bruxas e o pentagrama de Vênus se tornou símbolo demoníaco.

Dan Brown (O Código da Vinci; pág: 33)

TERRORISMO



A morte é apenas um subproduto do terrorismo. (...) Simplesmente, o objetivo do terrorismo é criar terror e medo. O medo abala a confiança nas instituições. Enfraquece o inimigo de dentro para fora, causa inquietação nas massas. (...) O terrorismo não é uma expressão de raiva. O terrorismo é uma arma política. Quando se acaba com a fachada de infalibilidade de um governo, acaba-se com a fé do povo. 
 
Dan Brown (Anjos e Demônios; págs: 150 e 151)
 
 
A escritora e poetisa palestina Edna Yaghi sintetiza admiravelmente o processo psicológico, socialmente construído pela tragédia, que leva um jovem, rapazes e moças, a atar uma bomba ao próprio corpo e se oferecer em sacrifício. Nada tem a ver com “fanatismo islâmico” ou com “terrorismo”, se entendemos “terrorismo” como uma ação estrategicamente calculada para provocar determinados efeitos. Tampouco tem a ver com o desejo de “conquistar o paraíso” prometido aos guerreiros pelo Corão. Os jovens-bomba não se sacrificam pelo paraíso futuro, mas contra o inferno presente. “Muitos daqueles que aderem aos grupos terroristas enfrentam uma vida de desemprego e pobreza. (...) Quando o desemprego atinge a margem dos 40 por cento e cerca de 45 por cento da população tem menos de 15 anos (como é o caso da Cisjordânia e Faixa de Gaza), as pessoas têm dificuldade em acreditar que seu futuro será brilhante.” O autor dessa análise não é nenhum “fanático anti-semita”, mas o funcionário público americano Carl W. Ford Jr., secretário assistente de Informação e Pesquisa de Estado dos Estados Unidos, ao depor (...) diante de um comitê do Congresso dos Estados Unidos sobre as causas do terrorismo. (...) Ninguém está dizendo, aqui, que a miséria justifica moralmente o terrorismo. Não justifica. Mas não há como comparar um jovem desesperado de 15 anos com soldados treinados para praticar o genocídio.

José Arbex Jr. (Terror e Esperança na Palestina; págs: 90 e 91)

OS 5 ESTÁGIOS DA MORTE


A psiquiatra Kübler-Ross descreve o enorme alívio dos pacientes que estão morrendo quando os convidamos a compartilhar seus temores e suas necessidades. Ela argumenta que esses diálogos podem facilitar a jornada para a morte, uma jornada que ela divide em cinco estágios:

A negação, diz ela [Elisabeth Kübler-Ross], é a primeira resposta à notícia de uma doença fatal: "Deve haver algum engano! Não pode ser!". A raiva (contra os médicos, contra o destino) e a inveja (dos que não estão morrendo) vêm em seguida, com a clássica pergunta: "Por que eu?". A negociação é a terceira resposta, uma tentativa de adiar o inevitável, promessas em troca de mais algum tempo - embora a mulher que jura que estará pronta para morrer se viver até o casamento do filho possa voltar atrás e dizer: "Agora, não esqueça que tenho outro filho!". A depressão, o quarto estágio, é o sentimento de pesar pelas perdas do passado e pela grande perda que se aproxima. E, para alguns, a necessidade de uma lamentação preparatória para a própria morte consiste em juntar-se à tristeza e ficar triste. A aceitação, o estágio final, "não deve ser considerada", diz Kubler-Ross, "como uma fase feliz". É quase "isenta de sentimento"; parece ser um tempo em que a luta já terminou. Ela conclui que, quando as pessoas são ajudadas na passagem pelos estágios anteriores, não mais ficam deprimidas, invejosas, zangadas ou inconformadas, mas contemplam o fim próximo "com um certo grau de tranquila expectativa".

Judith Viorst (Perdas Necessárias; pág: 318)

OS OPOSTOS SE ATRAEM

Há também a mulher que detesta pessoas agressivas e faz com que o marido se encarregue da agressão e dos gritos. E a mulher com um marido perdulário que expressa, no lugar dela, a parte indulgente da sua personalidade. A identificação projetada é sempre recebida por pessoas com tendência naquela determinada direção, mas é "colocada" ali pelo companheiro ou companheira, que precisa de alguém para fazer seu papel.

"Quando uma mulher aprende a negar as próprias ambições e impulsos competitivos de competência e domínio", diz a psicóloga Marriet Lerner, "pode escolher um homem que expresse essas coisas por ela. Quando não consegue tolerar a ideia da própria dependência ou fraqueza, pode encontrar um companheiro que desempenhe um papel de incompetente e fraco que ela teme ser o seu papel real. Quando aprende a agradar e proteger os outros, talvez encontre um marido provocador e sem tato social. As mulheres geralmente escolhem como maridos homens que expressam justamente tudo aquilo que elas precisam negar em si mesmas, ou qualidades que deveriam expressar, mas não conseguem. E, então, revoltam-se contra o marido, quando ele expressa as qualidades pelas quais o escolheram." (...) Existem casos em que a identificação projetada e complementar é bastante construtiva. Porém, sempre que as necessidades essenciais se confundem, a união corre perigo. E, por incrível que pareça, duas pessoas presas a um casamento patológico podem continuar neuroticamente juntas para sempre, ao passo que casais mais completos e saudáveis, capazes de crescer e mudar juntos, acabam se separando.
 
Judith Viorst (Perdas Necessárias; págs: 200 e 201)

 
A senhora o ama precisamente tal qual ele é, ama-o sendo ofendida por ele. Se ele se emendasse, a senhora o largaria imediatamente e deixaria de amá-lo de vez. Mas a senhora precisa dele para contemplar constantemente sua façanha de fidelidade e censurá-lo por infidelidade. E tudo isso movida por seu orgulho.

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; pág: 269)


Parece que as mulheres mais bonitas sempre vão com os merdas mais hediondos. as mulheres amam o falso porque ele mente muito bem. intuitivamente a fêmea sabe que o falso sobrevive em nossa sociedade e é por isso que ela o prefere. ela está apenas interessada em sustentar a criança e cuidar que ela se desenvolva com segurança.

Charles Bukowski (Notas de um Velho Safado; pág: 73)

ADOLESCÊNCIA...

Anna Freud (...) diz "que é normal para o adolescente comportar-se durante um considerável período de tempo de modo imprevisível e inconsistente; lutar contra os impulsos e aceitá-los; livrar-se deles e ser dominado por eles; amar os pais e odiá-los; revoltar-se contra eles e depender deles; sentir-se profundamente envergonhado por reconhecer a mãe na frente dos amigos e, inesperadamente, desejar ter conversas íntimas com ela; esforçar-se para imitar e se identificar com outras pessoas enquanto procura incessantemente a própria identidade; ser mais idealista, artístico, generoso e desprendido do que jamais será pelo resto da vida, mas também o oposto: egocêntrico, egoísta, calculista. Essas flutuações entre extremos opostos seriam consideradas altamente anormais em qualquer outra época da vida. Na adolescência, podem significar apenas que leva muito tempo para aparecer a estrutura adulta da personalidade...".

Judith Viorst (Perdas Necessárias; pág: 154)

10 de março de 2016

O COMPLEXO DE CINDERELA

Dina Goldstein
 
Há alguns anos, o best-seller de Colette Dowling, O Complexo de Cinderela, provocou reações entre as mulheres, pois afirmavam que a mulher teme a independência. (...) Costumava atingir garotas de dezesseis e dezessete anos, geralmente impedindo-as de ir para a universidade, levando-as a casamentos prematuros e apressados. Agora, atinge as mulheres depois da universidade - depois de terem vivido algum tempo no mundo. Quando diminui o primeiro entusiasmo da liberdade, e a ansiedade cresce para tomar seu lugar, começam a ser atraídas por aquele antigo desejo de segurança: o desejo de ser salvas. Dowling argumenta que as mulheres, ao contrário dos homens, têm um profundo desejo de ser protegidas por alguém e relutam em aceitar a realidade adulta de que são as únicas responsáveis pela própria vida. Essa tendência para a dependência, afirma Dowling, tem origem na educação da primeira infância, a qual ensina aos meninos que eles estão sozinhos neste mundo difícil e desafiador e, às meninas, que elas precisam e devem procurar proteção.

Judith Viorst (Perdas Necessárias; pág: 121)

MECANISMOS DE DEFESA

O perigo de perder o amor da mãe ou do pai - o amor dos que amamos - nos apavora e é uma promessa de imensa ansiedade. (...) Por meio de um ou mais dos nossos mecanismos de defesa - quase todos inconscientes -, podemos manter afastados a ansiedade, opondo-nos, resistindo, transformando, livrando-nos - nos defendendo. (...) Essas defesas não se restringem aos problemas da rivalidade entre irmãos. Elas nos servem durante toda a vida, funcionando sempre que uma perda temida ou real começa a gerar ansiedade. Elas nos servem nas situações que de modo inconsciente consideramos perigosas emocionalmente. E, embora façamos uso de uma ou outra em determinados momentos, aquelas às quais recorremos com mais frequência tornam-se parte central do nosso estilo e caráter. Aqui estão os nomes e os significados dos mecanismos diários de defesa mais comuns. E aqui está como podemos fazer uso deles para enfrentar aquele impulso de "destrua esse bebê", quando ele ameaça fazer com que percamos o amor da nossa mãe.

Repressão significa empurrar o impulso indesejado (e qualquer lembrança, emoção ou desejo associados a ele) para longe do consciente. Assim, "não sinto conscientemente vontade de machucar esse bebê". Formação Reativa significa manter o impulso indesejado longe do consciente, superenfatizando o impulso oposto. Assim: "Não quero machucar esse bebê. Eu amo esse bebê". Isolamento significa separar uma ideia do seu conteúdo emocional, de modo que, enquanto perdura o impulso indesejado, todos os sentimentos ligados a ele são empurrados para longe do consciente. Assim: "Tenho uma fantasia constante de ferver meu irmão em óleo, mas não tenho o menor sentimento de ódio contra ele". Negação significa a eliminação de fatos indesejáveis e do impulso indesejável associado a esses fatos, reexaminando-os em nossas fantasias, palavras ou comportamentos. Assim: "Não preciso machucar o bebê, porque continuo a me considerar filho único". Um maravilhoso exemplo de negação é a história da garotinha informada de que ia ganhar um irmão ou uma irmã. Ouviu aquilo num silêncio pensativo, depois ergueu os olhos da barriga da mãe para os olhos dela e disse: "Sim, mas quem vai ser a mamãe do novo bebê?". Regressão significa escapar do impulso indesejado voltando a um estágio anterior do desenvolvimento. Assim: "Em vez de machucar o bebê, que está tomando meu lugar ao lado de mamãe, eu serei o bebê". Projeção significa repudiar o impulso indesejado atribuindo-o a outra pessoa. Assim: "Não quero machucar esse bebê, ele quer me machucar". Identificação significa substituir o impulso indesejado por sentimentos mais bondosos e positivos, tornando-se outra pessoa - a mãe, por exemplo. Assim: "Em vez de machucar o bebê, vou servir de mãe para ele". Voltar-se contra si mesmo significa dirigir o impulso hostil contra si mesmo, ao invés de ferir a pessoa que se quer ferir. Assim: "Em lugar de bater no bebê, vou bater em mim". Às vezes, a pessoa com essa reação identifica-se com a pessoa que odeia. Assim: "Batendo em mim mesmo estou, na verdade, batendo no bebê". Anulação significa expressar os impulsos hostis por meio da fantasia ou de fato e então reparar o dano causado com um ato de boa vontade. Assim: "Primeiro bato no bebê (ou imagino que bato no bebê) e depois anulo o mal que fiz beijando-o". Sublimação significa substituir o impulso indesejável por atividades socialmente aceitáveis. Assim: "Em vez de bater no bebê, vou fazer um desenho". Ou talvez, como no meu caso (em resposta à minha irmã mais moça), a pessoa cresça para escrever um capítulo sobre a rivalidade entre irmãos.

Judith Viorst (Perdas Necessárias; págs: 90, 91 e 92)

ESFORÇOS VÃOS

Repetir o que é bom tem sentido, mas é difícil para nós entender a compulsão para repetir o que nos faz sofrer. E, embora Freud tenha tentado explicar essa compulsão como parte de um conceito duvidoso chamado "instinto de morte", pode ser também interpretada como nossos vãos esforços para desfazer - reescrever - o passado. Em outras palavras, fazemos e repetimos e repetimos, na esperança de que dessa vez o fim seja diferente. Continuamos a repetir o passado - quando éramos desamparados e conduzidos -, tentando dominar e alterar o que já aconteceu.

Judith Viorst (Perdas Necessárias; pág: 82)