25 de agosto de 2020

MILITÂNCIA

A guerra, como veremos, não apenas efetua a necessária destruição como a efetua de uma forma psicologicamente aceitável. Em princípio, seria muito simples usar a força de trabalho excedente mundial para construir templos e pirâmides, cavar buracos e tornar a enchê-los, ou mesmo para produzir vastas quantidades de mercadorias e depois queimá-las. Só que isso ofereceria apenas a base econômica para uma sociedade hierárquica: ficaria faltando a base emocional. O que importa aqui não é a disposição das massas, cuja atitude não tem importância desde que elas se mantenham estáveis, trabalhando, mas a disposição do próprio Partido. Espera-se que mesmo o militante mais humilde mostre-se competente, laborioso e até inteligente dentro de certos limites, porém é necessário também que ele seja um fanático crédulo e ignorante e que nele predominem sentimentos como o medo, o ódio, a adulação e um triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que ele tenha a mentalidade adequada a um estado de guerra. Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra. (...) A guerra, contudo, já não é o confronto desesperado, aniquilador, que era nas primeiras décadas do século XX. É uma luta de objetivos limitados entre combatentes que não têm como destruir-se uns aos outros, carecem de causas concretas para lutar e não estão divididos por nenhuma diferença ideológica genuína. (...) A cisão da inteligência que o Partido exige de seus membros, e que se obtém mais facilmente numa atmosfera de guerra, é agora quase universal, mas quanto mais alto se chega na hierarquia, mais ela se acentua. Com efeito, é no Núcleo do Partido que a histeria guerreira e o ódio ao inimigo são mais fortes. Em sua qualidade de administrador, muitas vezes é necessário que um membro do Núcleo do Partido saiba que este ou aquele item do noticiário de guerra é fictício, e acontece com frequência estar ciente de que a guerra inteira é espúria e que ela ou não está acontecendo, ou está acontecendo por razões bem diferentes das declaradas: mas esse conhecimento é facilmente neutralizado pela técnica do duplipensamento. (...) A visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção entre as pessoas incapazes de entendê-la. Essas pessoas podiam ser levadas a acreditar nas violações mais flagrantes da realidade porque nunca entendiam por inteiro a enormidade do que se solicitava delas, e não estavam suficientemente interessadas nos acontecimentos públicos para perceber o que se passava. Graças ao fato de não entenderem, conservavam a saúde mental. (...) Ao mesmo tempo, nenhum membro do Núcleo do Partido vacila por um instante sequer em sua fé mística de que a guerra é real e de que ela está fadada a terminar com a vitória de Oceânia, que passará a senhora incontestável do mundo.

George Orwell (1984; págs: 187, 221, 228 e 229)


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