21 de agosto de 2020

A OBRA-PRIMA DO DISFARCE

Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da abstração; este último é tão irracional quanto o primeiro é inartístico. Ambos desejam ter domínio sobre a vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudência, regularidade, enfrentar as principais necessidades, aquele, como “herói eufórico”, não vendo aquelas necessidades e tomando somente a vida disfarçada em aparência e em beleza como real. Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais frequência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; pág: 60)

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