4 de setembro de 2020

ESPÍRITO LIVRE

 

E quem adivinha algo das consequências que se alojam em toda suspeita profunda, algo dos calafrios e angústias do isolamento, aos quais toda incondicional diferença de olhar condena os que são acometidos dela, entenderá também quantas vezes eu, para descansar de mim, como que para um temporário auto-esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte - sob alguma veneração ou inimizade ou cientificidade ou leviandade ou estupidez: e também porque, onde não encontrei aquilo de que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo, criá-lo ficticiamente para mim (...e que outra coisa fizeram jamais os poetas? e para que existiria toda a arte no mundo?). (...) Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de ensaio, o caminho ainda é longo até aquela descomunal segurança e saúde transbordante, que não pode prescindir nem mesmo da doença, como um meio e anzol do conhecimento, até aquela madura liberdade do espírito que é também autodomínio e disciplina do coração e permite os caminhos para muitos e opostos modos de pensar - até aquela interior envergadura e mimo do excesso de riqueza, que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se perca em seu próprio caminho e se enamore de si e em algum canto fique sentado inebriado, até aquele excedente de forças plásticas, regeneradoras, conformadoras e restauradoras, que é justamente o sinal da grande saúde, aquele excedente que dá ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do espírito livre! Nesse meio-tempo pode haver longos anos de convalescença, anos cheios de mudanças multicores, dolorosamente feiticeiras, dominadas e conduzidas pela rédea por uma tenaz vontade de saúde, que muitas vezes já ousa vestir-se e travestir-se de saúde. Há aqui um estado intermediário, de que um homem de tal destino se recorda mais tarde não sem emoção: uma pálida, refinada felicidade de sol e luz lhe é própria, um sentimento de liberdade de pássaro, panorama de pássaro, desenvoltura de pássaro, um terceiro termo, em que curiosidade e delicado desprezo se ligaram. Um ”espírito livre” - essa fria palavra faz bem naquele estado, quase aquece. Vive-se, não mais nas cadeias de amor e ódio, sem sim, sem não, voluntariamente perto, voluntariamente longe, e de preferência esquivando-se, desviando-se, esvoaçando para longe, outra vez além, outra vez voando para o alto; está-se mal acostumado, como todo aquele que viu uma vez uma descomunal multiplicidade abaixo de si - é-se agora o reverso daqueles que se afligem com coisas que não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito doravante somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o afligem…

Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 63 e 66)

Nenhum comentário: