Nós, desde milênios, temos olhado para o mundo com pretensões morais, estéticas, religiosas, com cega inclinação, paixão ou medo, e porque nos temos regalado nos maus hábitos do pensamento ilógico, que esse mundo pouco a pouco veio a ser tão maravilhosamente colorido, apavorante, profundo de significação, cheio de alma; ele adquiriu cores - mas somos nós os coloristas: o intelecto humano fez aparecer o fenômeno e transpôs para as coisas suas concepções fundamentais errôneas. Aquilo que agora denominamos mundo é o resultado de uma multidão de erros e fantasias, que surgiram pouco a pouco no desenvolvimento total do ser orgânico, cresceram entrelaçados e agora nos são legados como tesouro acumulado do passado. (...) O fato é que, desse mundo da representação, a ciência rigorosa só é capaz de livrar-nos em pequena medida - o que, aliás, nem é de desejar -, já que não é capaz de romper, no essencial, a força de hábitos antiquíssimos de sensação: mas pode aclarar a história da gênese desse mundo como representação, bem aos poucos e passo a passo - e elevar-nos, pelo menos por instantes, sobre o evento inteiro. Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma homérica gargalhada: ela parecia tanto, e mesmo tudo, e, propriamente, é vazia, ou seja, vazia de significação.
O primeiro grau do [pensamento] lógico é o juízo: cuja essência consiste, segundo a afirmação dos melhores lógicos, na crença. Na base de toda crença está a sensação do agradável ou doloroso em referência ao sujeito da sensação. (...) O que está mais distante daquele grau primordial do [pensamento] lógico é o pensamento da causalidade: até hoje pensamos ainda, no fundo, que todas as sensações e ações são atos da vontade livre; se o indivíduo que sente considera a si mesmo, toma cada sensação, cada alteração, por algo isolado, isto é, incondicionado, desconexo: emerge em nós, sem ligação com o anterior ou o posterior. Temos fome, mas originariamente não pensamos que o organismo quer ser conservado, e esse sentimento parece fazer-se sentir sem fundamento e fim, isola-se e se toma por arbitrário. Portanto: a crença na liberdade da vontade é um erro originário comum a todo ser orgânico, tão antigo que existe desde que existem nele as emoções lógicas; a crença em substâncias incondicionadas e em coisas iguais é, do mesmo modo, um erro originário, igualmente antigo, de todo ser orgânico. (...) Um dos graus, certamente muito alto, da cultura, é alcançado quando o homem ultrapassa conceitos e medos supersticiosos e religiosos e, por exemplo, não acredita mais nos caros anjinhos ou no pecado hereditário, e até mesmo da salvação das almas desaprendeu a falar: nesse grau de libertação, ele ainda precisa, com suprema tensão de sua lucidez, superar a metafísica. (...) Os mais ilustrados só vão até o ponto de libertar-se da metafísica e lançar-lhe, para trás, um olhar de superioridade.
Friedrich Nietzsche (Humano, Demasiado Humano - Um Livro Para Espíritos Livres [Vol. 01]; págs: 73, 74 e 75)
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