Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma
tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas
são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter.
Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte;
vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham
sobrecarregadas de pais e mães; não tem esposas, nem filhos, nem amantes
por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo
que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por
acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. (...) Mas esse é o preço que temos de pagar pela estabilidade. É preciso
escolher entre a felicidade e aquilo que antigamente se chamava a grande
arte. Nós sacrificamos a grande arte. Temos, em seu lugar, os filmes
sensíveis e o órgão de perfumes. (...) A felicidade real sempre parece
bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento.
E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão espetacular como a
instabilidade. E o fato de estar satisfeito nada tem da fascinação de
uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a
tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida.
A felicidade nunca é grandiosa.
Respondeu Mustafá Mond, (...) a civilização industrial somente é possível quando não há desprendimento. É necessário o gozo até os limites impostos pela higiene e pelas leis econômicas. Sem isso, as rodas cessariam de girar. (...) E a instabilidade é o fim da civilização. Não se pode ter uma civilização duradoura sem uma boa quantidade de vícios amáveis. (...) A civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heroico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde houver guerras, onde houver obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido. Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar amores extremados, seja por quem for. Não há nada que se assemelhe a obrigações de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal modo que ninguém pode deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há, verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum acaso infeliz, ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa de desagradável, bem, então há o soma, que permite uma fuga da realidade. E sempre há o soma para acalmar a cólera, para nos reconciliar com os inimigos, para nos tornar pacientes e nos ajudar a suportar os dissabores. No passado, não era possível alcançar essas coisas senão com grande esforço e depois de anos de penoso treinamento moral. Hoje, tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama e pronto. Todos podem ser virtuosos agora. Pode-se carregar consigo mesmo, num frasco, pelo menos a metade da própria moralidade. O Cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma.
A gente inventa qualquer coisa
Pra não sofrer
E ri à toa
Pra não chorar
A gente inventa de morar até na lua
E quer partir de mala e cuia
A gente vive em edifício de elevador
Quer morar no céu ou no Arpoador
E ri à toa
pra não chorar
A gente sonha, bebe e chora pra esquecer
Rasga cartas e retratos pra não sofrer
A gente sai pra viajar, pra caminhar
Quer trabalhar pra não lembrar
A gente não quer encarar o bicho
Que tá roendo dentro de nós
A gente inventa qualquer coisa
Pra ser feliz
Se apaixona por um ator
ou por uma atriz
Zé da Riba (Fuga nº 1)
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