Se o Partido era capaz de meter a mão no passado e afirmar que esta ou aquela ocorrência jamais acontecera - sem dúvida isso era mais aterrorizante do que a mera tortura ou a morte. (...) E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido - se todos os registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava verdade. “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.” (...) Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples.
E, em lugares indeterminados, totalmente anônimas, havia as cabeças dirigentes que coordenavam todo aquele esforço e estabeleciam as diretrizes políticas que tornavam necessário que este fragmento do passado fosse preservado, aquele adulterado e aquele outro destituído de toda e qualquer existência. E, no fim das contas, o Departamento de Documentação não passava de um ramo do Ministério da Verdade cuja função primeira não era reconstruir o passado e sim abastecer os cidadãos da Oceânia com jornais, filmes, livros escolares, programas de televisão, peças dramáticas, romances - com todo tipo imaginável de informação, ensino ou entretenimento, de estátuas a slogans, de poemas líricos a tratados de biologia, de cartilhas de ortografia a dicionários de Novafala. E ao ministério cabia não apenas suprir as inúmeras necessidades do Partido como também reproduzir toda essa operação num nível inferior, em benefício do proletariado. Havia uma série de departamentos dedicados especificamente à literatura, à música, ao teatro e ao entretenimento proletário em geral. Ali eram produzidos jornais populares contendo apenas e tão somente esportes, crimes e astrologia, romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas, filmes com cenas e mais cenas de sexo, e canções sentimentais compostas de forma totalmente mecânica por uma modalidade especial de caleidoscópio conhecida como versificador. (...) Noite e dia as teletelas massacravam os ouvidos das pessoas com estatísticas que provavam que hoje a população tinha mais comida, mais roupa, melhores casas, melhores opções de lazer - que vivia mais, trabalhava menos, era mais alta, mais saudável, mais forte, mais feliz, mais inteligente, mais culta do que as pessoas de cinquenta anos antes. (...) Tudo que fosse grande e portentoso, se tivesse uma aparência razoavelmente nova, recebia de forma automática o carimbo de obra posterior à Revolução, ao passo que todas as coisas que evidentemente datavam de épocas anteriores eram atribuídas a um período indistinto denominado Idade Média. Os séculos de capitalismo, dizia-se, não haviam produzido nada de valor.
(...) O membro do Partido, tal como o proletário, tolera as condições vigentes em parte porque não dispõe de termos de comparação. Deve ser afastado do passado, assim como deve ser afastado de países estrangeiros, porque é necessário que acredite que está em melhor situação do que seus antepassados e de que o padrão médio de conforto material aumenta ininterruptamente. Mas, de longe, a razão mais importante para que se reajuste o passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não se trata apenas de atualizar constantemente discursos, estatísticas e registros de todo tipo para provar que as previsões do Partido se confirmam em todos os casos. Trata-se também de não admitir em hipótese nenhuma a ocorrência de alterações na doutrina ou alinhamento político. Porque mudar de opinião, ou mesmo de atitude política, é uma confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (conforme o caso) for o inimigo de hoje, então é necessário que esse país sempre tenha sido o inimigo. E se os fatos atestarem algo diferente, então é preciso alterar os fatos. Dessa forma, a história é constantemente reescrita. Essa falsificação diária do passado, levada a efeito pelo Ministério da Verdade, é tão necessária para a estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor. A mutabilidade do passado é o ponto central da doutrina do Socing. Afirma-se que os fatos passados não têm existência objetiva e que sobrevivem apenas em registros escritos e nas memórias humanas. O passado é tudo aquilo a respeito do que há coincidência entre registros e memórias. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o partido decide que ele seja.
George Orwell (1984; págs: 47, 57, 58, 94, 120, 250 e 251)
George Orwell (1984; págs: 47, 57, 58, 94, 120, 250 e 251)
Nenhum comentário:
Postar um comentário