4 de junho de 2016

DIÁRIOS DE RORSCHACH


12 de outubro de 1985

Esta manhã, no beco, havia um cão morto com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi o rosto dela. As ruas são sarjetas dilatadas e essas sarjetas estão cheias de sangue. Quando os bueiros finalmente transbordarem, todos os ratos irão se afogar. A imundice acumulada de todo o sexo e matanças que praticaram vai espumar até suas cinturas e todos os políticos e rameiras olharão para cima, gritando "salve-nos"... ...e, do alto, eu vou sussurrar: "não". Eles tiveram escolha. Todos eles. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes que acreditavam no suor do trabalho honesto. Em vez disso, seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber, até ser tarde demais, que a trilha levava a um precipício. Não me digam que eles não tiveram opção. Agora o mundo todo está na beira do abismo, contemplando os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia que ardem no inferno... ...e, de repente, ninguém mais sabe o que dizer.

13 de outubro de 1985

Dormi o dia todo. Acordei às 16h37. A zeladora continua reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Na certa, engana a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo, esta cidade horrível grita como um matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Numa sexta-feira à noite, morreu um comediante em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo... ...alguém sabe. O anoitecer fede a fornicação e consciências imundas. Acho que vou me exercitar. (...) Primeira visita da noite, infrutífera. Ninguém sabia de nada. Me sinto deprimido. A cidade está morrendo de hidrofobia e tudo que consigo fazer é limpar um pouco da espuma na sua boca? Nunca se desespere. Nunca se renda. Eu deixo as baratas humanas discutindo sua heroína e sua pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de gente.

20h30

Encontrar Veidt me deixou com um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? Preciso lembrar de investigar mais. Dreiberg não fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que sobraram tão poucos de nós na ativa, sãos e sem desvio de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma oficina de carro. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo californiano. Capitão Metrópole foi decapitado num acidente de carro em 1974. O Traça está num hospício no Maine. Silhouette se aposentou em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiça Encapuzada sumiu em 55. O Comediante está morto. Só sobraram dois nomes na minha lista. Ambos dividem moradia no Centro Rockfeller de Pesquisas Militares. Eu vou até lá. Vou avisar ao homem indestrutível que tem gente querendo matá-lo.

23h30

Sexta à noite, morreu um comediante na cidade. Foi arremessado da janela e, quando atingiu a calçada, sua cabeça entrou no abdômen. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que é isso? Tudo inútil? Logo vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão morrer na miséria e na doença. Por que uma morte pesa mais do que outras? Porque existe o bem e existe o mal. O mal deve ser punido. Mesmo no Dia do Juízo Final isso não vai mudar. Mas tem muitos merecendo pagar... ...e tão pouco tempo.

16 de outubro de 1985

Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, emporcalhando a calçada. Me oferecem amor sueco e francês... ...mas não americano. Amor americano, como coca em garrafas de vidro verde... ...não se faz mais. A caminho do cemitério, pensei na história do Moloch. Pode ser mentira, parte de uma vingança armada durante uma década atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Há referência intrigante a uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas. Tudo bem. Eu respondo logo. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileiram como marcas de giz numa lousa gigante. Faço a última visita com tranquilidade. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflito sem tempo pra amigos... ...pra no fim, só nossos inimigos deixarem rosas. Vidas violentas terminando violentamente. Dollar Biil, Silhouette, Capitão Metrópole... Nós nunca morremos na cama. Não é permitido. Algo na nossa personalidade, talvez? Algum impulso animal para lutar e se debater, fazendo de nós o que somos? Não importa. Nós fazemos o que deve ser feito. Outros enterram a cabeça entre as tetas inchadas da indulgência e da gratificação, leitões se contorcendo por abrigo debaixo de uma porca... ...mas não há abrigo... ...e o futuro aparece correndo como um trem expresso. (...) Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas entendia. Ele viu as rachaduras na sociedade, viu os homenzinhos mascarados tentando manter as coisas juntas... Ele viu a verdadeira face do século 20 e decidiu se tornar o reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém mais sacou a piada. Daí sua solidão.

Me contaram uma piada: Um homem vai ao médico. Diz que está deprimido. Que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador, onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade esta noite. Vá ao show. Isso deve animar você." O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor..." "...eu sou o Pagliacci." Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Cortinas.

21 de outubro de 1985

Deixei a casa de Jacobi às 2h35. Ele não sabe nada sobre a tentativa de desacreditar Dr. Manhattan. Foi apenas usado. Por quem? Russos parecem a escolha óbvia: Manhattan e Comediante era figuras militares importantes. Mas o Comediante falou de uma ilha, de artistas e escritores vivendo nela. Não se encaixa. Não consigo me concentrar. Cansado. Sem dormir desde sábado. A caminho de casa, passando por latas de lixo cheias de rumores de guerra, analiso fotos, corpos, motivos... ...e aguardo um lampejo de clareza no mar de sangue.

Acordei às onze com gritos lá fora. Estranho cair no sono sem remover a pele da cabeça. Mais cansado do que supunha. Devo ter cuidado. Do outro lado da rua, garotos com spray depredavam um prédio abandonado. Memorizei suas feições e me preparei para o trabalho. Primeiro, tirei meu rosto, dobrei-o e guardei no casaco. Sem a face, ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou. Ao sair do quarto, topei com a zeladora. As queixas de sempre: higiene e aluguel. Havia marcas de chupão no pescoço gordo dela. Novas. Ela me lembra minha mãe. Na rua, inspeciono o prédio depredado: desenho na porta, homem e mulher, possivelmente em preliminares sexuais. Não gostei. Faz a porta parecer assombrada. Na Quarenta com a Sete, Dreiberg e Juspeczyk deixam o Diner. Não me reconheceram. De caso, talvez? Será que Juspeczyk arquitetou o exílio de Manhattan, abrindo caminho para Dreiberg? Ela também odiava o Comediante. Devo investigar. Entrei no Diner, pedi café e me sentei, olhando para minha caixa de correio do outro lado da rua. Transeuntes fizeram vários depósitos: papel de bala, jornais, um par de tênis com cadarços amarrados entre si, linguetas protundidas. Esta cidade é um animal feroz e complicado. Para entendê-la, leio seus dejetos, seus aromas, o movimento de seus parasitas... Eu me sentei diante do lixo e Nova York me abriu seu coração.

Tentaram matar Veidt. Prova a teoria de um "assassino de mascarados". O criminoso fecha o cerco. Chequei mensagens. Bilhete de Moloch. Relacionado, talvez? Em seguida, fui recolher o rosto no beco. Em frente ao Utopia, a polícia prendeu um viciado em KT-28. Ele gritava alguma coisa sobre o presidente Nixon. Algo sobre bombas. Será que todos menos eu enlouqueceram? Sobre a rua 40, um elefante flutuava.. Acima dele, satélites espiões invisíveis. Se fecharem seus olhos de vidro, todos morreremos. Mundo implacável. Só há uma resposta sã para ele. O beco estava frio e deserto. Minhas coisas estavam onde eu havia deixado. À minha espera. Colocando-as, abandonei o disfarce e voltei a ser eu mesmo, livre do medo, da fraqueza ou do desejo. Meu casaco, meus sapatos, minhas luvas imaculadas. Meu rosto. Tenho três horas antes de encontrar Moloch. Mais adiante no beco, uma mulher gritou, a primeira nota balbuciante do coro noturno da cidade. Eu me aproximo. Uma tentativa de estupro/assalto/ambas as coisas. Pigarreei. O homem se virou e seu olhar foi uma recompensa para mim. Às vezes, a noite é generosa comigo.

27 de outubro de 1985

Fiquei na rua assistindo queimar. Imaginei torsos de feltro sem membros lá dentro; mamas se escurecendo; ventre fumegando; ardendo em chamas um à um. Assisti por uma hora. Ninguém saiu. Fiquei à luz das chamas, encharcado de suor. O sangue no peito como mapa de um novo e violento continente. Me senti limpo. Senti o planeta sombrio rodopiando e me dei conta do que faz os gatos gritarem, à noite, feito bebês. Olhei pro céu além da fumaça cheia de gordura humana e Deus não estava lá. A escuridão fria e sufocante prossegue eternamente e a gente está sozinho. Levamos a vida sem nada melhor pra fazer. A razão, inventamos depois. Nascemos do nada, temos filhos condenados ao inferno como nós, voltamos ao nada. Só existe isso. A existência é aleatória. Sem padrão, a não ser o que imaginamos depois de ficar olhando por muito tempo. Sem sentido, a não ser o que decidimos dar. Não são forças metafísicas vagas que moldam este mundo. Não é Deus quem mata as crianças. Não é o destino que as trucida ou a sina que as dá de comer aos cães. Somos nós. Só nós. As ruas fediam a fogo. O vazio soprou áspero no meu peito, gelando e esmigalhando minhas ilusões. Renasci, então. Livre pra traçar meu próprio destino neste mundo amoral. Como Rorschach. Isso responde suas perguntas, doutor?

1 de novembro de 1985

Último registro? Deixamos o escritório de Veidt quase meia-noite. Dreiberg, convencido de que Veidt está por trás de tudo, fala sério em visitar a Antártica. A nave-coruja aparentemente tem condições, mas e nós? Veidt. Não imagino oponente mais perigoso. Se a jornada for possível, rastreá-lo ao seu covil é a única opção. Mas me sinto intranquilo. Território desconhecido. Ele poderia nos matar na neve. Ninguém jamais saberia... Primeira noite de novembro. Eu estou com frio. Escritórios abaixo, lousas de sepultura marcando diariamente milhares de túmulos. Em seu interior, sobre faces de relógios, tão visadas quanto as de celebridades, os porteiros iniciam suas voltas derradeiras; o fim vem a galope. Favorecendo a espora, poupando as rédeas. Acho que desapareceremos logo. Veidt é mais rápido do que Dreiberg. Talvez mais do que eu. Voltar da missão parece improvável. Última anotação. Mandarei o diário aos únicos em quem confio. Digo a Dreiberg que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isto agora, saberá da verdade: seja qual for a natureza exata dessa conspiração, Adrian Veidt é o responsável. Me esforcei para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador. Aprecio seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva o suficiente para que isto chegue às suas mãos mas os tanques estão em Berlim Oriental e o Juízo Final se anuncia. Quanto a mim, de nada me arrependo. Levei a vida livre de compromissos... e... Agora avanço rumo às sombras sem me queixar.

Rorschach, 1 de novembro de 1985.

Alan Moore (Watchmen - edição definitiva: Capítulo 1: págs: 7, 20, 22, 25 e 30. Capítulo 2: págs: 65, 66, 67 e 68. Capítulo 5: págs: 148, 153 e 160. Capítulo 6: págs: 201 e 202. Capítulo 10: pág: 334)

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