28 de junho de 2013

AS MULTIDÕES NAS RUAS: COMO INTERPRETAR?

 
Um espírito de insurreição de massas humanas está varrendo o mundo todo, ocupando o único espaço que lhes restou: as ruas e as praças. O movimento está apenas começando: primeiro no norte da África, depois na Espanha com os “indignados”, na Inglaterra e nos EUA com os “occupies” e no Brasil com a juventude e outros movimentos sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeiras do socialismo, das esquerdas, de algum partido libertador ou da revolução. Todas estas propostas ou se esgotaram ou não oferecem o fascínio suficiente para mover as massas. Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais, presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública, clara rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que geraram um mundo político palaciano, de costas para o povo ou manipulando diretamente os cidadãos.

Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados racionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno. Antes de mais nada, importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma nova fase da comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua. De repente, formam-se redes de redes que movimentam milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país mas de toda a humanidade. As manifestações do Brasil provocaram manifestações de solidariedade em dezenas e dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da humanidade que se indentifica como espécie, numa mesma Casa Comum, ao redor de causas coletivas e universais.

Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião. Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da Bolsa Família, da Luz para Todos, da Minha Casa Minha Vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora o quê? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “O ser humano possui duas fomes: uma de pão, que é saciável; e outra de beleza, que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura, reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.

Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder publico, seja do PT ou de outros partidos. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não em ultimo lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais, que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais, como a nossa, é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher o seu “ditador” a cada quatro anos, porque o candidato, uma vez eleito, dá as costas ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e sobre os quais não são consultadas para nada. Nem falemos dos indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das hidrelétricas.

Esse fato das multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: A Gota d’água. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno ao dizerem no prefácio da peça em forma de livro: "O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social. Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para a frente.

Leonardo Boff (Carta Maior)

25 de junho de 2013

SOBRE LIBERDADE

Num sonho, não muito distante, minha mãe se aproximava e falava: "Meu filho, eu queria pedir uma coisa pra você, queria que você aceitasse Jesus, ele está voltando logo, você vai ao culto, fulano de tal e não sei quem fará uma oração com você etc.". Imediatamente me recusava falando alguma bobagem, como: "Não tem a menor condição, não estou desviado... Não vejo as coisas assim, meu Deus nem se quer depende de religião ou reconhecimento, religião é coisa dos homens etc.". Logo percebi que provoquei chateação nela, ficou brava e aflita ao mesmo tempo. Então, fiquei mal comigo mesmo, embora não tenha sido grosseiro no tom, pensar que ela passaria os próximos dias aflita por achar que Jesus voltaria e eu, supostamente, ficaria, me incomodou também... Me senti desconfortável ao ponto de pensar que eu poderia ir aceitar a jesus, como ela queria, para que ela não ficasse preocupada com isso.

Já naquele estado semi-consciente, acordando, a ideia de liberdade me assaltou. Pensei se estaria comprometendo minha liberdade ao ceder (no sonho) ao pedido dela.. A tristeza em vê-la aflita em frente a minha recusa, seria o preço da liberdade? E se liberdade tem um preço, isso ainda é liberdade? Será que, como diz Fernando Pessoa: "a renúncia é a libertação, e não querer é poder"? Talvez a liberdade esteja em alguma linha tênue entre renúncia e egoísmo, entre querer e não querer poder.
 
Diego Cosmo

15 de junho de 2013

ARNALDO JABOR, LULA E DILMA

Adriana Negreiros: Quando esta entrevista for publicada, as eleições provavelmente já estarão definidas.

Jabor: Já vamos ter a Dilma tomando conta da nossa vida.

Adriana Negreiros: Existe uma diferença considerável em ter uma mulher presidente em vez de um homem?

Jabor: Nenhuma. A diferença não é de sexo, é de preparo. O Lula é um homem extremamente carismático e tem uma experiência política espantosa. Talvez seja o político mais esperto do Brasil, um dos maiores atores do mundo. E ele resolver fazer um terceiro mandato por intermédio de uma representante que ele inventou. A Dilma não tem competência nenhuma. Mas eu acho que - eu vou dizer uma frase absolutamente hipotética, eu posso estar enganado - inconscientemente Lula preferiu uma mulher na Presidência por uma questão machista de controle. Eu não sei se ele teria posto um homem mais culto, mais inteligente e tão forte quanto ele para sucedê-lo. É uma coisa parecida com o que o Fernando Collor de Melo fez botando aquela senhora [Zélia Cardoso] para dirigir a economia brasileira. É um pouco de machismo, "mulher a gente controla". Mas as pessoas que estão em torno da Dilma me preocupam mais do que ela própria - com exceção de Antônio Palocci [ex-ministro da Fazenda e coordenador da campanha de Dilma], que é um homem sensato.

Adriana Negreiros: Como assim?

Jabor: O que eu temo é que teses e posturas ideológicas e políticas de 40, 50 anos atrás voltem para a pauta brasileira de uma forma absolutamente arcaica. Essas pessoas que acompanham a Dilma se consideram superiores e acham que podem ditar os rumos da sociedade. Pode haver uma união muito estranha do clientelismo típico do PMDB com o sovietismo. Imagina um Stalin [líder soviético, morto em 1953] misturado com José Sarney [presidente do senado]? Esse é o perigo que nós corremos.

Adriana Negreiros: Quem seria o Stalin do governo?

Jabor: O pensamento da maioria das pessoas que estão em volta da Dilma tem ecos stalinistas. Eu conheci vários deles. Conheço o Marco Aurélio Garcia [coordenador do programa de governo da Dilma], o Samuel Pereira Guimarães [ministro de Assuntos Estratégicos]. Não é que eles sejam ainda stalinistas, mas fica uma espécie de resquício de um pensamento socialista que acabou. O perigo é essa oligarquia arcaica, reacionária e de direita representada por pessoas como Sarney e Renan Calheiros [senador] ser misturada com uma oligarquia sindicalista. A mistura dessas duas coisas é explosiva. A gente pode ter aqui não o chavismo chavista porque o Brasil é muito complexo e não comporta um canalha como o Hugo Chávez [presidente da Venezuela]. Mas pode pintar uma espécie de chavismo light.

Adriana Negreiros: Por que corremos mais esse risco com a Dilma do que com outro candidato?

Jabor: Porque a Dilma é formada dentro do marxismo-leninismo, como eu fui também. Eu conheço a cabeça da Dilma e das pessoas em volta como se fosse a palma da minha mão. Eu sei como eles pensam.

Adriana Negreiros: Como eles pensam?

Jabor: Basicamente o seguinte... "nós somos superiores à sociedade. Nós temos uma linha justa, Nós sabemos o que é bom para o mundo. Nós queremos mudar a história e o capitalismo para outra coisa. Não dá mais para fazer socialismo, mas dá para fazer umas malandragens. Nós temos de ter controle sobre a sociedade, porque a sociedade é como uma criança que precisa de direção, precisa de pai e mãe". Esse é o pensamento que a Dilma tem, por mais que ela disfarce, dê sorrisos, por mais que ela mude o penteado e diga que respeita a democracia.

Adriana Negreiros: Ela não respeita a democracia?

Jabor: Respeita, até, porque a democracia se impôs no mundo. Mas é uma aceitação em parte. Nas reuniões internas, eles chamam a democracia de "democracia burguesa". Eu me lembro uma vez do Francisco Oliveira, que é um sociólogo da USP, dizendo que a democracia é papo para enganar as massas. Eles acham que a democracia é só da burguesia e o povo não tem acesso à liberdade.

Adriana Negreiros: A oposição se comportou bem durante o governo Lula?

Jabor: Não, essa é a oposição mais vergonhosa que eu já vi na história deste país. A oposição que o PT fez ao governo Fernando Henrique foi uma das oposições mais inclementes, em que o José Dirceu [ex-deputado federal] dizia... "Temos de nos opor a absolutamente tudo o que eles dizerem, mesmo coisas boas". Então foi uma sabotagem permanente. Já a oposição do PSDB foi vergonhosa.

Adriana Negreiros: A que você atribui isso?

Jabor: Primeiro porque ficaram com medo do prestígio do Lula. Segundo porque não sabem defender nem o trabalho que fizeram. Não defenderam os oito anos do governo Fernando Henrique, que foram fundamentais na vida brasileira. Não defenderam nem o Plano Real, nem as privatizações, nem a Lei de Responsabilidade Fiscal, nem a redução da dívida externa, nem a consolidação da dívida interna, nada. A população não sabe qual é a opção à Dilma. É uma população muito ignorante, que serve a desígnios populistas. É bom para os populistas que as pessoas sejam analfabetas.

Adriana Negreiros: Este cenário da oposição vai se repetir no provável governo da Dilma?

Jabor: Não tem mais oposição, pô! Eles têm maioria no Congresso. Se fizerem uma lei obrigando todo mundo a andar nu, vai passar.

Adriana Negreiros: Como você explica a popularidade do presidente Lula?

Jabor: Porque ele é um gênio. Um Maquiavel [filósofo italiano autor do clássico O Príncipe, morto em 1527]. Ele tem um carisma extraordinário. Nesse aspecto ele é imbatível. E tem qualidades também. Não tô dizendo que o Lula é um canalha.

Adriana Negreiros: Que qualidades?

Jabor: Uma das qualidades dele é ter passado por todas as bocas sujas da vida, desde a miséria até a liderança sindical. Isso deu a ele uma prática política popular de esquerda, porém pragmática. Não é aquela coisa ideológica maluca dos Luiz Gushiken [ex-ministro], dos Ricardo Berzoini [presidente do PT], dos Dirceu, de que o mundo vai ser socialista. O Lula é muito prático. Nesse sentido, ele foi modernizador da política de esquerda no Brasil. Ele é genial, o Mick Jagger da política. Eu me lembro que quando teve aquele perigo do segundo turno contra o Geraldo Alckmin [em 2006], foi sensacional. Ele mandou armar um palanque igual aos do Rolling Stones, aqueles de corredor, enormes. Ele ficava falando e andando exatamente igual ao Mick. O Lula é um genial comunicador de televisão. Eu acho até que eu sou um bom comunicador, mas o Lula me dá de 10 a zero [risos]

Adriana Negreiros: Você já esteve com o presidente Lula?

Jabor: Sim, uma única vez na minha vida, antes de ele ser presidente da República. Eu ainda não estava na televisão, só nos jornais. Ele estava com a mulher dele, passou e falou comigo... "Oi, Jabor. Como é que vai?" E passou a mão no meu braço. É de uma simpatia, o filha da mãe, é de uma sedução que o José Serra não tem. A Dilma não tem nenhuma. Eu não consigo entender como é que o povão vota na Dilma porque a figura é realmente espantosa. Mas o povo vai votar nela porque o Lula mandou!

Entrevista de Arnaldo Jabor à Adriana Negreiros (Playboy - Outubro/2010)

12 de junho de 2013

ARRISCAR É PRECISO

Quem deseja viver não adia. O imponderável se intromete na vida, as contingências não escolhem justos ou injustos. Como nas patas do gato, as unhas do destino se alongam, querendo arranhar o curso da história. O imprevisto às vezes acontece peçonhento e estraga projetos queridos sem qualquer consideração. A vida requer prontidão de antecipar-se ao imponderável. – antes da dor, o beijo; antes do adeus, o abraço; antes da solidão, a conversa. O agora é estrela cadente, asteróide nômade. Cada instante fugitivo precisa valer uma eternidade. O já não passa de um átimo, fenda impermanente entre o ainda não e o que já se foi. Quem busca viver não caminha sob o jugo do medo. Arriscar é preciso. Em cada decisão há perigo – decidir é vulnerabilizar-se. Nos relacionamentos há exposição e no amar, deixar-se à mercê do outro. A ferida da decepção dói menos do que o desterro. Amantes carregam cicatrizes. Os pequenos acenos de felicidade acontecem nos que se atrevem a caminhar sem blindagem, nos que arrancaram o elmo e jogam fora o escudo. As clausuras são tristes, elas não têm acesso ao olhar de quem suplica afeto.

Quem almeja viver não se mantém ansioso. A salvação mora no sossego. O possível, nem sempre o melhor, só vira matéria prima do contentamento em corações calmos. A alma implora por descanso. O corpo avisa que o desespero de desejar mais e mais produz descargas hormonais adoecedoras. É necessário dar um passo de cada vez e esperar pelo amanhã. Ao desistir dos atalhos, aprendem-se processos relacionais. Os apressados, que tentam se antecipar o sereno da madrugada, cansam logo. Tudo passa. A alteridade dos ritmos deve ser respeitada. Quem anela viver não foge de si. Não se enfrentar põe a alma em risco – que acaba somatizando a culpa e depois o câncer. Reconhecer inadequações evita aleijões existenciais. Nos solilóquios, as transgressão perdem força de um pecado mortal. Os tropeços ensinam. As mazelas ajudam a crescer. Humildade passa a valer como coragem.

Quem suspira viver ouve, não monologa. Na habilidade de escutar o que o outro tem a dizer, valoriza outras histórias, tradições, folclores. E nessa sensibilidade coexistencial, preconceitos, discriminações, rótulos, estigmas, perdem força. Os absurdos cometidos em nome de nacionalismo, religião ou ideologia deixam de se repetir com tanta frequência. Quem sonha viver, medita. Nas conchas que a maré triturou e que pavimentam a praia, contempla os milênios que já passaram. No ócio do leão, feliz com a prole bem alimentada, vê a alegria da desafobação. O sol que se agacha no lusco fusco revela uma grandeza discreta. É preciso vagar para notar nas entrelinhas da poesia, o imarcescível, e na estrutura da prosa, o gênio do autor. Meditar é fechar os olhos para que violinos, gaitas, trompetes, pianos e realejos cheguem ao coração. Para viver, poucas coisas são necessárias: amigos que nos façam rir – mas que não nos abandonam quando choramos; companheiros que não têm medo de falar a verdade – mas que se mostrem prontos para nos levantar na hora da queda.

6 de junho de 2013

CONFISSÃO AOS LIVROS


Os livros tiraram-me da maneira mais justa e completa tudo que me deram: a literatura foi o augúrio que me conduziu a Deus, a ninfa cuja mão me mostrou o amor, o companheiro de espada que me desafiou à lealdade, o adversário que me acendeu a paixão, a amante que me ensinou o tédio.  Em troca dessa glória as estantes me varreram, espoliaram e exauriram, devassaram meu universo interior, levando cativa minha vontade e negando-se a deixar em meu poder qualquer fiapo de autenticidade que pudesse ter peso ou validade na vida real. Hoje tudo que sou e que sinto é regido pelo jogo vão da literatura, pela ardente cobiça das ordens de palavras que com resignado afeto sonho serem minhas.

Paulo Brabo