30 de junho de 2014

ENCÍCLICA DE ELITE

A burguesia teme perder o poder que acabou de conquistar com a Revolução Francesa, e assim passa a ter medo de outras revoluções. De um lado, encontram-se a teoria liberal e o cristianismo, baseados no medo do conflito. De outro, a teoria marxista, fundada,  ao contrário, na esperança da revolução. Somente no nosso século, com a teoria dos sistemas e com Dahrendorf, vai se chegara afirmar que o conflito, se contido dentro de certos limites e arbitrado pelo Estado, é útil às organizações, pois determina seu dinamismo e crescimento.

Os milhares de deserdados que aportam na América trazem consigo essa cultura. A revolução industrial na América enraíza-se tão rapidamente porque existe uma minoria, a dos patrões, que está convencida de que quem possui fortuna neste mundo a merece, já que é esta a vontade de Deus. São convictos de que Deus está do lado dos wasp, isto é, "brancos anglo-saxões protestantes". Mas se era fácil encontrar gente convicta do próprio direito de comandar, era, no entanto, difícil encontrar gente disposta a obedecer. E, assim, essas massas católicas, impregnadas da Rerum Novarum que tinham ouvido em todas as igrejas, estavam convencidas de que tinham o dever de sofrer em silêncio e trabalhar.

A encíclica deixa claro, desde o começo, que a propriedade privada é um direito natural - logo, divino. E o faz com o seguinte raciocínio abstruso: como os animais têm o direito de usar as coisas, mas não de possuí-las, o homem, que é superior aos animais, deve ter um direito a mais. Por conseguinte, o direito à propriedade. Digamos a verdade: um raciocínio ridículo. A encíclica fala a seguir da família e do Estado. Depois disso, começa a parte sobre a "necessidade das diferenças sociais e do trabalho pesado". Diz: "É impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível... O homem, mesmo que no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável" - e eis o meu ócio criativo -, "a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor e o impôs como uma expiação: 'a terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida'".

O dever do rico é, "em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém" e agir segundo "a caridade cristã". O proletário, por sua vez, faz bem em contentar-se com o que tem, pois, diz o papa, "que abundeis em riqueza ou outros bens, chamados de bens de fortuna, ou que estejais privados deles, isto nada importa à eterna beatitude: o uso que fizerdes deles é o que interessa. (...) Assim, os afortunados deste mundo são advertidos de que as riquezas não os isentam da dor; que elas não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstáculo...". Em suma, é melhor ser pobre do que rico.

Se não se aceitam as desigualdades sociais e o trabalho como expiação, nasce a luta de classe: "O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado."

A encíclica propõe que as diversas classes entrem num acordo, em nome de um organicismo, resgatado tal e qual o de Menemio Agrippa. O texto original é o seguinte: "É necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também na sociedade as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, do conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na sua raiz, as instituições possuem uma virtude admirável e múltipla."

E eis que se ajusta o papel superior da Igreja tanto contra os socialistas fomentadores de ódio entre as classes quanto contra os liberais: "E, primeiramente, toda a economia das verdades religiosas, de que a igreja é guarda e intérprete, é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os pobres, lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, primeiro que todos os outros, os que derivam da justiça. (...) O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços." O papa, portanto, coloca-se como defensor do status quo e inimigo da luta de classes, propondo o cristianismo como o melhor dos meios para garantir a paz social.

A igreja compreende que a indústria é sua inimiga: porque racionaliza o mundo, substitui a magia pela ciência e o raciocínio, torna vã a fé na vida depois da morte com a confiança no progresso. E o papa adverte para o perigo de que as classes pobres pretendam enriquecer. Quanto menor for o número de  pobres, menor será o número de fiéis com a qual a Igreja poderá contar: de fato, nas zonas rurais, o camponês era submisso ao padre, enquanto nas cidades industriais o operário pobre se emancipava e passava da pregação dos padres à das vanguardas políticas.

O alvo dela [a doutrina católica] é a sociedade que nasceu com as fábricas: o marxismo de um lado e o liberalismo do outro. Afirma que as desigualdades não podem ser eliminadas, que a caridade precisa ser exercida pelos ricos, e a paciência, pelos pobres.

Domenico de Masi (O Ócio Criativo; págs: 53, 54, 55, 56, 57, 58 e 59)

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