3 de março de 2021

MORTE COMPANHEIRA

Um inimigo fictício que pode lhe destruir ou se tornar seu melhor companheiro: a Morte. O homem é o único ser na natureza que tem consciência de que vai morrer. Por isso, e apenas por isso, tenho um profundo respeito pela raça humana, e acredito que seu futuro será muito melhor do que seu presente. Mesmo sabendo que seus dias estão contados e tudo irá se acabar quando menos espera, ele faz da vida uma luta digna de um ser eterno. O que as pessoas chamam de vaidade – deixar obras, filhos, fazer com que seu nome não seja esquecido – eu considero a máxima expressão da dignidade humana. Acontece que, criatura frágil, ele sempre tenta ocultar de si mesmo a grande certeza da Morte. Não vê que ela é que o motiva a fazer as melhores coisas da sua vida. Tem medo do passo no escuro, do grande terror do desconhecido, e sua única maneira de vencer esse medo é esquecer que seus dias estão contados. Não percebe que, com a consciência da Morte, seria capaz de ousar muito mais, de ir muito mais longe nas suas conquistas diárias – porque não tem nada a perder, já que a Morte é inevitável. (...) A minha verdadeira Morte, amiga e conselheira, que não ia mais me deixar ser covarde nem um dia de minha vida. A partir de agora, ela ia me ajudar mais do que a mão e os conselhos de Petrus. Não ia mais permitir que eu deixasse para o futuro tudo aquilo que eu podia viver agora. Não me deixaria fugir das lutas da vida e ia me ajudar a combater o Bom Combate. Nunca mais, em momento algum, eu iria me sentir ridículo ao fazer qualquer coisa. Porque ali estava ela, dizendo que, quando me pegasse nas mãos para viajarmos até outros mundos, eu não devia carregar comigo o maior pecado de todos: o Arrependimento. Com a certeza de sua presença, olhando seu rosto gentil, eu tive a convicção de que ia beber com avidez da fonte de água viva que é esta existência.

Paulo Coelho (O Diário de um Mago; págs: 120 e 128)

2 de março de 2021

VELHA HISTÓRIA

É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história. (...) Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é um arremedo de lembrança anterior. (...) Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida.

Chico Buarque (Leite Derramado; págs: 96, 136 e 184)

OS FRACOS

É que de tanto se fazer de fraca a pessoa acaba acreditando que é mesmo. Mas é só uma ilusão. A força está lá. É só puxar para fora que ela vem. É por isso que eu não gosto de gente que se faz de fraca. É tudo mentira, só para você fazer as coisas que elas querem. Quando você não entra na ilusão delas, ficam contra você. Aí, tome cuidado: mesmo com toda a fraqueza, elas mordem para valer.

Zibia Gasparetto (Ninguém é de Ninguém; pág: 29)

O BOM COMBATE

 

O homem nunca pode parar de sonhar. O sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, em nossa existência, vemos nossos sonhos desfeitos e nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar sonhando, senão nossa alma morre e Ágape não penetra nela. (...) O Bom Combate é aquele que é travado porque o nosso coração pede. Nas épocas heroicas, no tempo dos cavaleiros andantes, isso era fácil – havia muita terra para conquistar e muita coisa que fazer. Hoje em dia, porém, o mundo mudou muito e o Bom Combate foi transportado dos campos de batalha para dentro de nós mesmos. O Bom Combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos. Quando eles explodem em nós com todo o seu vigor – na juventude -, nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. Depois de muito esforço, terminamos aprendendo a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disso, nos voltamos contra nós e combatemos a nós mesmos, e passamos a ser nosso pior inimigo. Dizemos que nossos sonhos eram infantis, difíceis de realizar, ou fruto de nosso desconhecimento das realidades da vida. Matamos nossos sonhos porque temos medo de combater o Bom Combate. (...) O primeiro sintoma de que estamos matando nossos sonhos é a falta de tempo – continuou Petrus. – As pessoas mais ocupadas que conheci na vida sempre tinham tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar e se queixavam constantemente de que o dia era curto demais. Na verdade, elas tinham medo de combater o Bom Combate. O segundo sintoma da morte de nossos sonhos são nossas certezas. Porque não queremos olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a nos julgar sábios, justos e corretos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do dia a dia e ouvimos o ruído de lanças que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que está no coração de quem luta, porque para estes não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas combater o Bom Combate.

Finalmente, o terceiro sintoma da morte de nossos sonhos é a paz. A vida passa a ser uma tarde de domingo, sem nos pedir grandes coisas e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos então que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância e conseguimos nossa realização pessoal e profissional. Ficamos surpresos quando alguém de nossa idade diz que quer ainda isto ou aquilo da vida. Mas na verdade, no íntimo de nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciamos à luta por nossos sonhos, a combater o Bom Combate. (...) Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz (...), temos um pequeno período de tranquilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós e infestar todo o ambiente em que vivemos. Começamos a nos tornar cruéis com aqueles que nos cercam e, finalmente, passamos a dirigir essa crueldade contra nós mesmos. Surgem as doenças e as psicoses. O que queríamos evitar no combate – a decepção e a derrota – passa a ser o único legado de nossa covardia. E, um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a morte que nos livrasse de nossas certezas, de nossas ocupações e daquela terrível paz das tardes de domingo. (...) Mas quem deseja combater o Bom Combate precisa olhar o mundo como se fosse um tesouro imenso, que está ali esperando para ser descoberto e conquistado.

Paulo Coelho (O Diário de um Mago; págs: 56, 57, 58, 59 e 85)