3 de setembro de 2020

A ARTE DO DISFARCE

Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano - mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter. O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade.

Friedrich Nietzsche (Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral; págs: 53 e 54) 


Uma parte considerável da metafísica, que não constitui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento humano, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, constroem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 30)

2 de setembro de 2020

BEM VIVER

Meus amigos saboreiam com prazer e sem manipulação alimentos e bebidas, porque esperam o desejo para comer e beber. O sono lhes é mais agradável que aos ociosos; interrompem-no sem pesar e não lhe sacrificam seus negócios. Jovens, sentem-se felizes dos elogios dos anciãos. Velhos, recebem felizes os respeitos da juventude. Recordam com prazer as ações do passado e realizam prazerosos o que lhes resta fazer. Por virtude minha, são amados dos deuses, caros aos amigos, honrados da pátria. Ao soar a hora fatal, não dormem no esquecimento sem honra, mas sua memória resplandece, celebrada pela eternidade.

Sócrates (Xenofonte - Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates; pág: 128)

SER ARTISTA

A arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. (...) O estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento. (...) Individuação como o primeiro fundamento do mal, a arte como a alegre esperança de que o exílio da individuação pode ser rompido, como o pressentimento de uma unidade restaurada.

Friedrich Nietzsche (O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música; págs: 31 e 32)

Precisamos da mentira para triunfar sobre essa realidade, essa “verdade”, isto é, para viver… Se a mentira é necessária para viver, até isso faz parte desse caráter terrível e problemático da existência. A metafísica, a moral, a religião, a ciência - são tomadas em consideração nesse livro apenas como diferentes formas da mentira: com seu auxílio acredita-se na vida. “A vida deve infundir confiança”: o problema, assim colocado, é descomunal. Para resolvê-lo, o homem tem de ser mentiroso, já por natureza, precisa, mais do que qualquer outra coisa, ser artista. E ele o é: metafísica, religião, moral, ciência - tudo isso são rebentos de sua vontade de arte, de mentira, de fuga da “verdade”. (...) A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida. A arte como única força superior contraposta a toda vontade de negação da vida, como o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence. A arte como a redenção do que conhece - daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico. A arte como a redenção do que age - daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói. A arte como a redenção do que sofre - como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia.

Friedrich Nietzsche (A Arte em “O Nascimento da Tragédia”; págs: 49 e 50)  

Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimento se possui, além de gosto delicado e de rápida compreensão, um conhecimento exato da estrutura interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das diversas espécies de sentimentos que distinguem o vício e a virtude.

David Hume (Investigação Acerca do Entendimento Humano; pág: 29) 

1 de setembro de 2020

O BATER DE ASAS DA NOSTALGIA

 

Queremos ouvir e ao mesmo tempo aspiramos a ir além do ouvir. Aquela aspiração pelo infinito, o bater de asas da nostalgia, por ocasião do supremo prazer diante da efetividade claramente percebida, recordam que em ambos os estados devemos reconhecer um fenômeno dionisíaco, que nos revela sempre de novo o construir e demolir lúdicos do mundo individual como a efusão de um prazer primordial, de maneira semelhante a como Heráclito o Obscuro compara a força formadora do mundo a uma criança que ludicamente põe pedras para cá e para lá, e faz montes de areia e os desmantela.

Friedrich Nietzsche (O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música; pág: 44)