15 de abril de 2021

ENTRE APARÊNCIAS

Entre como se vive e como se devia viver há tamanha diferença, que aquele que despreza o que se faz pelo que se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da sua ruína do que da sua conservação. Na verdade, quem num mundo cheio de perversos pretende seguir em tudo os princípios da bondade, caminha para a própria perdição. (...) A um reputam-no pródigo, a outro ganancioso, a este cruel, àquele piedoso, a estroutro desleal, àqueloutro fiel, a um efeminado e pusilânime, a outro feroz e destemido, a um modesto, a outro soberbo, a um lascivo, a outro casto, a um íntegro, a outro astuto, a um inflexível, a outro brando, a um austero, a outro leviano, a um religioso, a outro ímpio, e assim por diante. Todos hão de achar, bem sei, que seria muito louvável possuísse um príncipe, dentre as qualidades mencionadas, somente as boas. Não sendo, porém, possível telas todas nem observá-las integralmente, porque não o permitem as condições humanas, cumpre-lhe ser bastante cauteloso para saber furtar-se à vergonha das que lhe ocasionariam a perda do estado e, em certos casos, também à daquelas que não lha ocasionariam, embora estas menos receio lhe devam inspirar. Releva, deste modo, que não tema incorrer na infâmia dos defeitos mencionados, se tal for indispensável para salvar o estado. É que, ponderando bem, encontrará algo com aparências de virtude [virtù], cuja adoção lhe trará a ruína, e algo com aparência de defeito, que o conduzirá a uma situação de segurança e de bem-estar.

Nicolau Maquiavel (O Príncipe; págs: 139, 140 e 141)

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