7 de agosto de 2019

HABITUA O CORPO AO IMPÉRIO DA INTELIGÊNCIA E TEMPERA-O NO TRABALHO E NO SUOR


Talvez sustentem muitos de nossos pretensos filósofos que o homem justo jamais se torna injusto nem o sábio, insolente. Que uma vez de posse de uma ciência, nunca mais se esquece o que se aprendeu. De minha parte, estou longe de pensar como eles. Vejo, com efeito, que, se não exercitarmos o corpo, tornamo-nos inaptos para os trabalhos corporais, e que, da mesma forma, se não o exercitarmos, o espírito se tornará incapaz dos trabalhos espirituais, não se podendo fazer o que se deve nem se abster do que se deve evitar. Noto ainda que aqueles que se entregam ao vinho e aos prazeres dos sentidos são menos capazes de fazer o que devem e de resguardar-se do que é necessário evitar. Muitos há que antes de amar sabiam administrar seus bens. Amando, já não o sabem. E perdidos seus haveres, já não se acautelam de ganhos de que se mantinham castos por considerá-los vergonhosos. Penso que todas as virtudes requerem prática, notadamente a temperança. Inatas na alma com o corpo, as paixões incitam a pôr de lado a sabedoria e a satisfazer imediatamente os apetites sensuais.

Ignoras que graças a certos exercícios pessoas fracas de corpo se tornam mais fortes e os suportam mais facilmente do que aquelas que, nascidas mais fortes, foram descuidadas? Não acreditas que eu, que habituei meu corpo a resistir a todas as influências, sofra menos que tu, que não te exercitaste? Se não sou escravo do ventre, do sono, da volúpia, é porque conheço prazeres mais doces que não deliciam apenas no momento, mas proporcionam vantagens contínuas. Sabes que sem a esperança do sucesso nenhum prazer experimentamos, de modo que, se se pensa obter bom êxito, seja na agricultura, seja na navegação, seja em outra profissão qualquer, a elas nos dedicamos com tanta energia como se já tivéssemos triunfado.

Quem sofre voluntariamente se consola de seus males com uma doce esperança, como vemos os caçadores suportarem garbosamente as fadigas pela esperança de uma captura. Semelhante recompensa é bem pouca coisa para suas penas. Mas os que trabalham para ter bons amigos ou para triunfar dos inimigos, para robustecer o corpo e a alma e assim bem gerir sua casa, fazer bem aos amigos, prestar serviços à pátria, como não acreditar que com tais objetivos suportem com prazer todas as fadigas e vivam felizes, contentes de si próprios, louvados e invejados por outros homens? Mais: os hábitos de indolência e os prazeres fáceis não podem, no dizer dos ginastas, dar boa compleição ao corpo nem fazer penetrar no espírito algum conhecimento apreciável. Ao contrário, os exercícios que requerem constância nos conduzem à prática de belas e boas ações, como dizem os grandes homens. Disse em algum lugar Hesíodo: O vício é sedutor e fácil, seu caminho liso e breve. Antes da virtude, porém, colocaram os deuses o suor, e a vereda que leva ao cume é áspera, agreste e árdua: ganhando-se o alto, contudo, aplaina-se o caminho.

Do que existe realmente de honesto e belo, nada concedem os deuses aos homens sem sacrifício e dedicação. Queres que os deuses te sejam propícios? Homenageia-os. Ambiciona a estima de teus amigos? Beneficia-os. Desejas que uma nação te honre? Serve-a. Queres que a Grécia inteira admire teu valor? Procura ser-lhe útil. Desejas que a terra te forneça seus frutos? Cultiva-a. Preferes enriquecer com rebanhos? Apascenta-os. Aspiras a fazer-te grande pela guerra? Querer tornar livres teus amigos e triunfar de teus inimigos? Aprende a arte da guerra com aqueles que a conhecem, exercita-te em pôr-lhes em prática as lições. Desejas adquirir força física? Habitua o corpo ao império da inteligência e tempera-o no trabalho e no suor.

Sócrates (Xenofonte - Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates; págs: 88, 89, 112, 124, 125 e 126)

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