Seria possível, eu me pergunto, estudar um pássaro tão intimamente, observar e catalogar suas peculiaridades nos mais diminutos detalhes, a ponto de ele se tornar invisível? Seria possível, enquanto calculando meticulosamente a envergadura de suas asas ou a extensão de seu tarso, de alguma forma perdermos de vista sua poesia? Que em nossas prosaicas descrições de uma plumagem marmórea ou vermiculada, deixemos escapar um lampejo de telas vivas, cascatas de marrons cuidadosamente dosados e dourados que envergonhariam Kandinsky, explosões enevoadas de cor que se rivalizariam com Monet? Eu acredito que sim. Acredito que, ao nos aproximarmos de nossos objetos de estudo com a sensibilidade de estatísticos e disseccionistas, nós nos distanciamos cada vez mais do maravilhoso e fascinante planeta da imaginação cuja gravidade nos atraiu, antes de tudo, aos nossos estudos. Isto não quer dizer que devamos deixar de estabelecer fatos e verificar nossas informações, mas apenas sugerir que, se não puderem ser imbuídos da clareza da percepção poética, tais fatos permanecerão como joias opacas; pedras semipreciosas que mal valem o trabalho de ser coletadas.
Quando contemplamos a pupila negra de um periquito, devemos nos ensinar a vislumbrar a fria e distante loucura que Max Ernst percebeu quando decidiu paramentar suas noivas nuas com confecções de pena escarlate e as cabeças monstruosas de pássaros exóticos. Quando algum papagaio ou andorinha-do-mar são capturados pela atenção azulada de nossas lentes Zeiss, devemos ser capazes de ver o voo imóvel das gaivotas sépias por meio das antigas fotografias cinéticas de Muybridge, batendo asas brancas, traçando uma lenta linha osciloscópica pelo tempo e o espaço. Contemplando um falcão, vemos as diminutas diferenças na largura das hastes que correm pelas penugens onde os egípcios outrora viram Hórus e o olho incandescente da vingança divina encarnada. Até transformarmos nosso reles olhar em visão genuína; até nosso ouvido estar maduro o bastante para pinçar uma sinfonia no pandemônio estridente do aviário; até que isso aconteça podemos ter um hobby, mas não uma paixão. (...) Uma compreensão científica dos movimentos articulados e sincronizados de cada pena de uma coruja durante o voo não impede uma apreciação poética do mesmo fenômeno. Na verdade, ambos intensificam um ao outro, um olhar lírico emprestando aos dados gélidos uma paixão da qual eles há muito tinham se divorciado.
Alan Moore (Watchmen - edição definitiva; Capitulo 7; págs: 239, 240 e 241)
O par de amantes está abraçado, corpos e almas incendiados pelo desejo. A mão do amante desliza vagarosa pela pele lisa do corpo da amada. Mas ele, professor de anatomia, em virtude dos seus saberes científicos e dos seus hábitos de professor, em vez de ir recitando docemente textos apaixonados dos Cânticos dos Cânticos ou dos poemas eróticos do Drummond, não pode resistir à compulsão de ir enunciando os nomes científicos dos músculos do corpo da amada por onde sua mão desliza... Assim termina uma noite que poderia ter sido uma noite de amor. A ciência triunfa - ele não errou nem um nome - mas o amor fracassa.
Rubem Alves (Por Uma Educação Romântica; pág: 47)
Rubem Alves (Por Uma Educação Romântica; pág: 47)
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