30 de abril de 2015

AQUELAS ACUSAÇÕES CONTRA TODO FILÓSOFO

Divulgam que existe um tal Sócrates, um grande miserável, que corrompe a juventude. Quando se lhes pergunta por quais atos ou ensinamentos, não têm o que responder; não sabem; porém, para não mostrar seu embaraço, apresentam aquelas acusações contra todo filósofo, sempre à mão: "os fenômenos celestes, o que existe sob a terra, a descrença dos deuses, a prevalência da razão mais fraca." Porque, suponho, não estariam dispostos a confessar a verdade: terem dado prova de que fingem saber, mas nada sabem. Como são desejosos de honrarias, persistentes, e numerosos, persuasivos no que dizem de mim por se confirmarem uns aos outros, não é de hoje que eles têm enchido vossos ouvidos de calúnias exacerbadas.

Sócrates (Platão - Apologia de Sócrates; págs: 47 e 48)

IGNORÂNCIA

O reencontro consigo mesmo só pode partir da consciência da própria ignorância. Mas essa ignorância, que é um atributo de Sócrates, não é geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na posse de "verdades". Torna-se necessário, por tanto, levá-las, de saída, a despojar-se dessas pseudoverdades - única forma de torná-las aptas a caminharem em direção ao conhecimento de si mesmas. A demolição das falsas idéias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende a ironia. A ironia socrática tem, assim, a função de propiciar uma catarse: uma purificação da alma por via da expulsão das idéias turvas, das ilusões e dos equívocos que distanciavam a alma de si mesma.

Sócrates (Vida e Obra; pág: 25)

A MISSÃO DE SÓCRATES

Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão - a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um "vagabundo loquaz": dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídas. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a expressar opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates - que alegava que "apenas sabia que nada sabia" - era, com frequência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelaram-se infundados e muitas idéias vigentes e consagradas pela tradição manisfestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da própria ignorância.

Para Sócrates, a meta seria não o assunto em discussão, mas a própria alma do interlocutor, que, por meio do debate, seria levada a tomar consciência de sua real situação, depois que se reconhecesse povoada de conceitos mal formulados e obscuros.

Sócrates (Vida e Obra; págs: 6 e 24)

4 de abril de 2015

AS ÁRVORES DE CONHECIMENTOS


A evolução do sistema de formação não pode ser dissociada da evolução do sistema de reconhecimento dos saberes que a acompanha e a conduz. (...) É preciso imaginar modos de reconhecimento dos saberes que possam prestar-se a uma exposição na rede da oferta de competência e a uma conduta dinâmica retroativa da oferta pela demanda. (...) Crescendo a partir das autodescrições dos indivíduos, uma árvore de conhecimentos torna visível a multiplicidade organizada das competências disponíveis em uma comunidade. Trata-se de um mapa dinâmico, consultável na tela, que possui de fato o aspecto de uma árvore, e cada comunidade faz crescer uma árvore de forma diferente. (...) O dispositivo de indexação dinâmica e de navegação que ela propõe produz um espaço do saber sem separações, em reorganizações permanente de acordo com os contextos e os usos. (...) No nível de uma localidade, o sistema das árvores de competências pode contribuir para lutar contra a exclusão e o desemprego ao reconhecer os savoirs-faire daqueles que não possuem nenhum diploma, ao favorecer uma melhor adaptação da formação para o emprego, ao estimular um verdadeiro "mercado da competência". (...) Ao permitir a expressão da diversidade das competências, não restringe os indivíduos a uma profissão ou categoria, favorecendo assim o desenvolvimento pessoal contínuo. (...)
 
A condição necessária é a de valorizar e criar uma sinergia entre as competências, os recursos e os projetos locais em vez de submetê-los unilateralmente aos critérios, às necessidades e às estratégias dos centros geopolíticos e geoeconômicos dominantes. (...) Podem ser um poderoso reforço aos mecanismos democráticos e às iniciativas econômicas nas regiões desfavorecidas. (...) Dentro de nossa perspectiva, as redes de comunicação deveriam servir prioritariamente à reconstituição da sociabilidade urbana, à autogestão da cidade por seus habitantes e ao controle em tempo real dos equipamentos coletivos, em vez de substituir a diversidade concentrada, as aproximações físicas e os encontros humanos diretos que constituem, mais do que nunca, a principal atração das cidades. (...) A partir daí, os computadores pessoais e as redes digitais efetivamente colocam de volta nas mãos dos indivíduos as principais ferramentas da atividade econômica. Mais ainda, se o espetáculo (o sistema midiático), de acordo com os situacionistas, é o cúmulo da dominação capitalista, então o ciberespaço faz uma verdadeira revolução, já que permite - ou permitirá em breve - a qualquer pessoa dispensar a figura do editor, do produtor, do difusor, dos intermediários de forma geral para disseminar seus textos, sua música, seu mundo virtual ou qualquer outro produto de seu espírito. Em contraste, com a impossibilidade de responder e o isolamento dos consumidores de televisão, o ciberespaço oferece as condições para uma comunicação direta, interativa e coletiva.

Pierre Lévy (Cibercultura; págs: 178, 179, 181, 182, 183, 195 e 254)

3 de abril de 2015

APRENDIZAGEM COOPERATIVA

A direção mais promissora, que por sinal traduz a perspectiva da inteligência coletiva no domínio educativo, é a da aprendizagem cooperativa. (...) A principal função do professor não pode mais ser uma difusão dos conhecimentos, que agora é feita de forma mais eficaz por outros meios. Sua competência deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem e o pensamento. O professor torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividade será centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens: o incitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbólica, a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem etc.

Pierre Lévy (Cibercultura; pág: 173)

CIBERESPAÇO

O ciberespaço, interconexão dos computadores do planeta, tende a tornar-se a principal infraestrutura de produção, transação e gerenciamento econômicos. Será em breve o principal equipamento coletivo internacional da memória, pensamento e comunicação. Em resumo, em algumas dezenas de anos, o ciberespaço, suas comunidades virtuais, suas reservas de imagens, suas simulações interativas, sua irresistível proliferação de textos e de signos, será o mediador essencial da inteligência coletiva da humanidade. Com esse novo suporte de informação e de comunicação emergem gêneros de conhecimento inusitados, critérios de avaliação inéditos para orientar o saber, novos atores na produção e tratamento dos conhecimentos.

Pierre Lévy (Cibercultura; pág: 170)

1 de abril de 2015

A FALSA IDEIA DE SUBSTITUIÇÃO

A multiplicação dos catálogos, dos livros e dos filmes de arte, tenha feito diminuir o público dos museus? Pelo contrário. Quanto mais difundidos os elementos recombináveis do museu imaginário, mais foram fundados prédios abertos ao público cuja função era abrigar e expor a presença física das obras. (...) Os museus virtuais provavelmente nunca farão concorrência aos museus reais, sendo antes suas extensões publicitárias. Representarão, contudo, a principal interface do público com as obras. Um pouco como o disco colocou mais pessoas em contato com Beethoven ou os Beatles do que os concertos. A falsa ideia de substituição do pretenso "real" por um "virtual" ignorado e depreciado deu lugar a uma série de mal-entendidos. (...) Quanto às relações "virtuais", não substituem pura e simplesmente os encontros físicos, nem as viagens, que muitas vezes ajudam a preparar. Em geral é um erro pensar nas relações entre antigos e novos dispositivos de comunicação em termos de substituição.

Pierre Lévy (Cibercultura; págs: 131, 156 e 157)

A HETEROGENEIDADE DA BÍBLIA

A Bíblia é um outro caso exemplar de uma obra maior do fundo espiritual e poético da humanidade, à qual, no entanto, não podemos atribuir um autor. Precursor do hipertexto, sua constituição resulta de uma seleção (de um sampling!) e de um amálgama tardio de um grande número de textos de gêneros heterogêneos redigidos em diversas épocas. A origem desses textos pode estar em antigas tradições orais do povo judeu (o Gênesis, o Êxodo), mas também na influência das civilizações da Mesopotâmia e Egito (certas partes do Gênesis, os livros de sabedoria), na fervorosa reação moral a determinada atualidade política e religiosa (livros proféticos), em uma divagação poética ou lírica (Salmos, Cântico dos Cânticos), em uma vontade de codificação legislativa e ritual (Levítico) ou de preservação de uma memória histórica (Crônicas etc.). Considera-se, portanto, com razão, a Bíblia como sendo uma obra, portadora de uma mensagem religiosa complexa e de todo um universo cultural.

Pierre Lévy (Cibercultura; pág: 155)