30 de maio de 2011

DEUSES E HOMENS

Para quem vive a cristandade do nosso lado do planeta a salvação é entendida, fundamentalmente, em termos jurídicos. A partir de uma leitura pouco imparcial das cartas do Apóstolo, nossa tradição acabou concluindo que a salvação é uma mudança de status legal, um indulto emitido pelo juiz em favor de quem concorda em dar crédito ao caráter remissório do sacrifício do advogado. Não é assim na metade oriental da cristandade, a igreja chamada de Ortodoxa e que gerou gente notável como Dostoiévski e Tolstói. Nossa igreja e a ortodoxa são gêmeas separadas não muito depois do nascimento, mas que desde a cisão não conseguem entender direito as idéias e o comportamento uma da outra. Por exemplo, ambas concordam que o homem carece de uma salvação que só Jesus pode dar - mas discordam sobre de que Jesus salva o homem, e para quê. Para os cristãos ortodoxos, a essência da salvação não está na justificação, mas na deificação (grego theosis) - o processo de identificação completa dos homens com Deus. Nos documentos da igreja primitiva a deificação não merece menos destaque do que a justificação, mas a theosis como conceito teológico não comparece no pensamento cristão ocidental há mais de mil anos.

O evangelho afirma que a todos que acolheram sua encarnação Deus "deu o poder de se tornarem filhos de Deus". Como Pedro explicitou em outro lugar, trata-se de conceber a homens que se tornem participantes da natureza divina - o que, convenhamos, não é pouca coisa. Essa é a lógica da deificação resumida numa única frase de Atanásio: "Se o Verbo tornou-se homem foi para que homens se tornassem deuses". Os ortodoxos e seus antecessores deixam claro, no entanto, que o milagre da deificação não está em tornar o cristão um deus independente, digno, ele mesmo, de adoração. Agostinho raciocina que, "se somos feitos filhos de Deus, somos da mesma forma feito deuses", mas esclarece: "Deus quer fazer de você um deus; não por natureza ou nascimento, mas por graça e por adoção". Atanásio também opina que "somos como Deus por imitação, não por natureza". A ideia está em imitar Deus em sua revelação máxima, a pessoa de Jesus. Aqui está o mistério: a deificação diz respeito muito mais a aprendermos a ser gente do que a ser deuses.

João Crisóstomo (349-407), pregador de Antioquia que a ajudou a cristalizar o que viria a ser o pensamento dos cristãos ortodoxos sobre a deificação, ensinava que o mistério da redenção está indelevelmente associado ao mistério da encarnação. Isto é, a salvação diz pelo menos tanto respeito à vida de Cristo quanto à sua morte. A encarnação, para Crisóstomo, não só revelara Deus para a humanidade: revelara também a verdadeira humanidade para a humanidade. Imitar a legitimidade da vida terrena de Jesus é infundir-se do sopro vital de Deus, o regenerador "espírito de Cristo" - em letras tanto maiúsculas quanto minúsculas. O fim da deificação (e, portanto, da salvação) é restaurar no homem a imagem da divindade impressa nele por Deus na criação, imagem que Jesus estampou integralmente. Deus quer que sejamos deuses para que aprendamos finalmente a ser homens. No pensamento ortodoxo a salvação instila uma mudança real na natureza humana; não se trata - como normalmente cremos aqui no Ocidente - de uma mudança relativa e temporária, a ser melhor implantada em momento oportuno. Para nós, o homem é salvo da condenação; para os cristãos ortodoxos, é salvo da mediocridade. Para nós o homem é salvo para viver com Deus um dia; para os ortodoxos, é salvo para viver como Deus hoje.

Nas palavras de Crisóstomo:

"Visto que Cristo ascendeu ao céu, sua carne tornou-se, como as primícias, o princípio dos que dormem. Ele abençoou a humanidade inteira através dessa única carne e desse único princípio. Antes, por causa do pecado, nada era mais abjeto do que o homem, enquanto agora nada é mais honrado do que ele. Através do Cristo ressurreto e ascendido, o homem vence a corrupção e adquire a incorrupção. Vence a morte, porque a morte foi inteiramente abolida e não aparece em lugar algum, enquanto o homem adquire imortalidade e é deificado. Deus e humanidade tornaram-se de fato uma única raça."

A obsessão forense da igreja ocidental fez com que nos concentrássemos quase que exclusivamente nos méritos da morte de Cristo. O terrível preço dessa ênfase foi que perdemos de vista os méritos de sua vida e sua encarnação. Por deixarmos de considerar o caráter do Jesus dos evangelhos, a teologia ocidental tornou-se eminentemente racionalista, intelectual e escolástica; perdeu contato com as necessidades da vida real e a espiritualidade do homem comum. Perdeu o dom de lavar pés e ensinar lavradores. Ocupou-se em entender a revelação racionalmente e explicá-la com argumentos lógicos a uma audiência sofisticada. Passamos a crer que a salvação é questão de aceitação intelectual da verdade, sem relação alguma com a vida real de Deus ou com a nossa. Perdemos no processo o dom que Jesus veio nos conceder, o de sermos gente; agentes humanizadores num mundo desumano e deuses suplentes num mundo sem Deus. Como sempre acontece, o que nos falta é voltar aos princípios mais fundamentais da humanidade de Jesus - o Deus encarnado que escolheu chamar a si mesmo de Filho do Homem.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 203, 204 e 205)

27 de maio de 2011

A TRADIÇÃO DA LIBERDADE SIGNIFICA TUDO

Josan Gonzalez
 
- Diz que quer me libertar e me põe na prisão...
- Você já estava numa prisão. Esteve numa prisão a vida toda!
- Calaboca! Eu não quero ouvir! Eu não tava numa prisão. Era feliz! Era f-feliz aqui até você me expulsar...
- A felicidade é uma prisão, Evey. A felicidade é a mais insidiosa das prisões. (...).
E-eu estava amando! Era feliz! Se era uma prisão, não me importa!
- Não! Seu amante vivia na penitenciária em que todos nós nascemos, e era forçado a varrer os dejetos do mundo para viver. Ele conheceu afeição e ternura por pouco tempo. Por fim, um dos outros internos esfaqueou-o com uma espada e ele se afogou no próprio sangue. É isso, Evey? Essa felicidade vale mais do que a liberdade? (...) Eu não pus você numa prisão, Evey. Apenas mostrei as grades. Você está numa prisão, Evey. Nasceu numa prisão. Esteve numa por tanto tempo que já nem acredita que há um mundo lá fora...
- Chega! Você é louco! Não quero ouvir mais!
- Isso porque tem medo, Evey. Você tem medo porque pode sentir a liberdade se aproximando. Está com medo porque a liberdade é aterradora... Não fuja, Evey. Parte de você compreende a verdade, embora finja não ver.

 Alan Moore (V de Vingança; págs: 170, 171 e 172)
 
 
Alguns de nós têm de lutar. Existem grandes tradições de liberdade a defender. Não sou homem de partidos políticos. Onde vejo a infâmia, busco erradicá-la. Nomes de partidos nada significam. A tradição da liberdade significa tudo. As pessoas comuns deixarão isso passar, ah, sim. Elas venderão a liberdade por uma vida mais tranquila. É por isso que elas devem ser espicaçadas, espicaçadas...

Anthony Burgess (Laranja Mecânica; pág: 161)

18 de maio de 2011

NÃO ERA UMA AERONAVE, ERA UM DISCO VOADOR!



A questão da existência de vida fora da Terra não tinha chamado tanta atenção desde o famoso "caso Roswell", em 1947. Foi quando uma nave supostamente alienígena teria se chocado contra o solo em Roswell, Novo México, que, a partir daquele momento, se tornara um santuário para milhões de amantes de teorias da conspiração e óvnis. (...) Aquele caso não passara de um acidente militar durante uma operação secreta chamada Projeto Mogul, envolvendo um balão-espião que estava sendo projetado para os sons dos testes atômicos dos russos. Durante um dos vôos experimentais, um protótipo havia saído de seu curso e caído no deserto do Novo México. Infelizmente um civil encontrou os destroços antes que os militares conseguissem chegar ao local. O fazendeiro William Brazel havia se deparado com os pedaços espalhados de um neoprene sintético radicalmente novo e de metais leves que nunca tinha visto, então chamou imediatamente o xerife. Os jornais divulgaram a descoberta dos estranhos destroços, fazendo com que o interesse do público crescesse rapidamente. Alimentados pela negativa oficial dos militares de que o material fosse deles, os repórteres começaram a investigar, ameaçando o segredo em torno do Projeto Mogul. Entretanto, quando parecia que a delicada questão da existência de um balão-espião estava prestes a ser revelada, algo fantástico aconteceu.

A mídia chegou a uma conclusão inesperada: aquelas substâncias futurísticas só podiam ter vindo de outro planeta, fabricadas por criaturas cientificamente mais avançadas do que os humanos. O fato de os militares negarem qualquer envolvimento com o incidente só podia significar uma coisa: um contato secreto com os alienígenas! Apesar de ter ficado bastante surpresa com essa nova hipótese, a Força Aérea não iria reclamar de uma história tão oportuna. Os militares tomaram partido da teoria dos extraterrestres e fizeram com que crescesse. Uma suspeita mundial de que ETs estavam visitando o Novo México era um risco para a segurança nacional  muito inferior à possibilidade de os russos saberem algo a respeito do Projeto Mogul. Para alimentar a história dos alienígenas, a comunidade de inteligência envolveu todo o incidente em completo segredo e começou a planejar "vazamentos de informações" sobre contatos com extraterrestres, espaçonaves recuperadas e até mesmo um misterioso "Hangar 18" na base da Força Aérea de Wright-Patterson, em Daytona, onde o governo estaria mantendo os corpos dos ETs congelados. O mundo inteiro comprou essa versão, e o interesse por Roswell percorreu o planeta. A partir daquele momento, toda vez que um civil acidentalmente avistava uma aeronave militar americana, a comunidade de inteligência precisava apenas tirar o pó da velha teoria da conspiração.

NÃO ERA UMA AERONAVE, ERA UM DISCO VOADOR!

O administrador ficava surpreso por aquele truque continuar funcionando nos dias de hoje. Todas as vezes que a mídia relatava um súbito aumento de aparições de óvnis, Ekstrom ria. Na maioria dos casos, algum civil tinha visto de relance um dos 57 Global Hawks do NRO: aviões de reconhecimento em formato de charuto que eram operados por controle remoto e se moviam a altíssima velocidade e de forma única. Ekstrom achava patético que muitos turistas ainda fizessem peregrinações até o deserto do Novo México para ficar observando o céu noturno com suas câmeras de vídeo. De vez em quando alguém dava sorte e conseguia uma "prova concreta" de um óvni: luzes fortes cruzando rapidamente o céu e fazendo manobras radicais a velocidades muito superiores às de qualquer avião existente. O que essas pessoas não sabiam é que havia cerca de 12 anos de diferença entre o desenvolvimento de projetos para o governo e sua divulgação para o grande público. Os caçadores de discos voadores estavam apenas tendo uma rápida visão da próxima geração de aeronaves americanas sendo construídas e testadas na Área 51 - muitas das quais eram resultado de idéias de engenheiros da NASA. É claro que o setor de inteligência nunca corrigia esse engano: era preferível que todos acreditassem em outro misterioso objeto voador avistado a que ficassem a par da capacidade real dos novos aviões militares.

Dan Brown (Ponto de Impacto; págs: 252 e 253)

14 de maio de 2011

QUANDO AS MULHERES DOMINAVAM A TERRA


O maior emblema da vitória final da ideologia capitalista no século XX não foi a Queda do Muro e a subseqüente derrocada dos socialistas, mas a entrada da mulher no mercado de trabalho. A transição recebeu diferentes rótulos, todos com conotações positivas para as mulheres - feminismo, liberação da mulher, regime igualitário, mas minha impressão é que, oculto sob o discurso da valorização da mulher, estava o triunfo definitivo de valores tradicionalmente masculinos. Cedendo à simplificação e deixando de lado as exceções, pode-se dizer que durante milênios a participação da mulher na sociedade ocidental representou uma alternativa real ao modo masculino de agir e pensar. Ser mulher era epitomar um modo de vida subversivo, livre (em maior ou menor grau) das obsessões circulares da testosterona: a agressividade, a competitividade, a combatividade e a acumulação compulsiva de territórios, bens e parceiros sexuais. O mundo dos homens sempre foi das conquistas e rivalidades, e portanto dos capitalismos. O domínio da mulher permanecia em grande parte no campo do imponderável, o domínio de coisas antiquadas e gays como o amor, o silêncio, a compaixão, a generosidade, a expressividade, a pausa, o cultivo, o sacrifício, a partilha. O homem cultuava tradicionalmente a performance, a mulher cultuava o afeto. Os homens eram combativos como cristãos, as mulheres desprendidas e zen. O homem prioriza os objetivos, a mulher prioriza os relacionamentos. A postura do homem era sair para o combate, a da mulher abraçar na esperança de que o homem enxergasse a insensatez do combate. O patriarca, mais fraco, saía para trabalhar e caçar; a matriarca, infinitamente mais poderosa e influente, governava de sua cadeira e fazia com que os homens girassem ao seu redor como satélites.

Com a entrada definitiva da mulher no mercado de trabalho, por ocasião do escoamento dos homens no crivo da Segunda Guerra Mundial, esse cenário se alterou. Oficialmente as mulheres estavam, a partir de agora, "reivindicando seus direitos" e "conquistando seu direito". Mais propriamente, estavam dando o seu aval às obsessões masculinas e confessando que apenas o espaço dos homens era legítimo. Depois de séculos de brava resistência, as mulheres dobravam-se no altar da performance. Como conseqüência, o ocidente sofreu uma tremenda perda no campo da "biodiversidade" cultural, e o capitalismo voltou para casa com o braço cheio de troféus e trunfos.

A situação é inusitada. Não sabemos dizer com qualquer grau de certeza o que espreita hoje por trás do conceito de “feminino”, exceto que grande parte das mulheres receberia o qualificativo como insulto. Como se tornou politicamente incorreto associar a mulher ao conceito tradicional de feminilidade, a história e a arte vêm sofrendo uma rigorosa e contínua revisão. Os traços do feminino não-combativo são eliminados com diligência bolchevique tanto de lendas quanto de narrativas históricas. A doce donzela Guinevere, do ciclo das lendas da Távola Redonda, teve de ser redesenhada como guerreira implacável, precisa e sanguinária no filme Rei Arthur, de 2004. Esta decisão é emblema de uma onipresente tendência: a fim de evitar os embaraços causados pela postura tradicionalmente feminina de heroínas como Guinevere, essas são “alçadas” artificialmente à condição de homens honorários – altura de onde lançam flechas, desferem socos, lideram exércitos e cospem no chão. Na verdade apenas os homens e seu mundo é que são honrados, mas a maioria das mulheres parece se aplacar diante dessa insultuosa homenagem. Mesmo um livro como O Código Da Vinci, cuja trama secreta diz respeito à recuperação do “feminino” na história, faz de Maria Madalena mera competidora na luta tipicamente masculina dos discípulos pelo poder. A Madalena de Dan Brown é mulher sem face e sem alma, inteiramente mergulhada no mundo dos homens e deixando-se moldar eficazmente por ele.

O capitalismo, como eu ia dizendo, celebra nessa capitulação das mulheres à combatividade masculina sua mais retumbante vitória. Assim que a mulher caiu na tentação do mundo dos resultados, a oferta de mão de obra dobrou instantaneamente, e o mercado encheu-se de possibilidades e promessas que renderam exponencialmente. Não apenas a mulher tornou-se público consumidor independente, com direito a seus próprios produtos e meios de comunicação, mas sua entrada em cena possibilitou a criação de novos públicos onde ninguém imaginava que poderia haver um. Sentindo-se culpadas por não ficarem em casa “cuidando dos filhos,” e ao mesmo tempo beneficiando-se de sua nova independência financeira, as mulheres passaram a encher seus filhos de presentes, transformando o infantil no público de maior poder decisão de todo o mercado – condição inteiramente inconcebível há meros cinqüenta anos atrás.

Se, por um lado, o mercado saiu ganhando com a glorificação do individualismo, por outro, homens e mulheres contabilizam ainda suas perdas. Os homens foram privados do exemplo de sanidade que lhes restava, e não são mais convidados pelo exemplo das mulheres à salubridade de uma vida menos ambiciosa e de maior significado. Hoje não há quem não acredite que só existem autorrealização e autoexpressão, e portanto valor, no trabalho remunerado. Seduzidas por essa conversa, as mulheres perderam muitos de seus privilégios mais incisivos e essenciais; em especial, a autoridade de zombar do modo de vida dos homens.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 230, 231 e 232)

3 de maio de 2011

A LOUCURA DA RAZÃO

Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos

Todos aqueles que têm tido a infelicidade de lidar com criaturas completamente doidas ou que estão no estágio inicial da doença mental sabem que uma de suas características mais sinistras é a espantosa clareza dos pormenores: as coisas ligam-se umas às outras em um plano mais intrincado do que um labirinto. Se você discutir com um doído, muito provavelmente levará a pior, pois a mente do alienado, em muitos sentidos, move-se muito mais rapidamente porque não se detém em coisas que preocupam apenas quem tem bom raciocínio. O louco não se preocupa com o que diz respeito ao temperamento, à caridade ou à certeza cega da experiência. A perda de certas afecções sãs tornou-o mais lógico. A maneira como se encara, vulgarmente, a loucura é errônea: o louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão. A explicação que um doido dá a respeito de qualquer coisa é sempre completa e, por vezes, satisfatória, num sentido puramente racional. Falando mais rigorosamente, podemos afirmar que qualquer explicação dada por um louco, se não é conclusiva, é, pelo menos, irrespondível. A experiência nos mostra que o doido é, comumente, um lógico e, frequentemente um lógico bem-sucedido. O doido vive na arejada e bem iluminada prisão de uma única ideia, e todo o seu espírito converge para um ponto afiado e doloroso, sem aquela hesitação e complexidade próprias das pessoas normais. O lógico, no meio de sua morbidez, procura tornar as coisas lúcidas e acaba por tornar tudo misterioso. O místico admite que há coisas misteriosas e acaba por tornar tudo lúcido. A imaginação não produz a loucura: o que produz a loucura é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, os jogadores de xadrez, sim. Os matemáticos e os caixas enlouquecem, mas os artistas criadores raramente chegam a tal estado.

Gilbert Keith Chesterton (1874-1936)
 

Em 1864, um ano após as Notas..., escreve Memórias do subsolo, cujo personagem central, o paradoxalista, polemiza intensamente com o racionalismo, a filosofia que deu o respaldo teórico à Revolução Francesa. Um dos componentes centrais da composição em Dostoiévski é o limite (Bakhtin chama de limiar): alguém impôs um limite ao homem, cabe-lhe parar diante desse limite e igualar-se ao resto da manada ou ultrapassá-lo, ainda que à custa de terríveis sacrifícios. O paradoxalista de Memórias... afirma que os homens de nervos fortes, de ação, isto é, os homens guiados pela razão, os homens da civilização burguesa, param diante do impossível, de um limite, e imediatamente se conformam. Esse limite é um muro de pedras, "naturalmente as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática".  O homem do subsolo polemiza com todas essas concepções e as considera ingênuas (...), desdenha desse modelo de homem guiado exclusivamente pela razão e defende o direito a viver segundo vontade própria, ainda que seja "estúpida vontade". Ele vê o homem como um ser complexo, que em toda a sua história sempre se pautou pelo livre-arbítrio, agindo "a seu bel-prazer e nunca segundo lhe ordenava a razão e o interesse". A polêmica com as teses centrais do Iluminismo tem como pano de fundo a civilização burguesa oriunda desse movimento, que incorporou os piores exemplos de violência da história e na qual o homem "talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em derramar sangue", "os mais refinados sanguinários foram todos cavalheiros civilizados" e "são encontrados com demasia frequência, são por demais comuns, e já não chamam atenção" porque seus atos sanguinários já viraram hábito, isto é, passaram a integrar a própria civilização.

Paulo Bezerra
 
Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo; págs: 10 e 11)