20 de setembro de 2011

A CRUZ


Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós! (Mt 5.10-12)

A paz assimilada e assumida pelo discípulo é resultante da sua fome e sede de justiça. Daí a possibilidade de ser perseguido e sofrer por causa da justiça. Num mundo de injustiça e crueldade, a perseguição é algo inevitável para os discípulos de Jesus.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 107 e 110)

8 de setembro de 2011

SEPARAÇÃO CRIATIVA


Se meu filho explode e avisa que não me ama, não irei castigá-lo ou obrigarei que ele desminta na minha frente. Não o puxarei pelos braços, não responderei para procurar um pai diferente, não subirei no púlpito e ordenarei maldições. Tem a liberdade para me odiar. Eu sei que ele me ama. Eu sei que ele me quer. A sabedoria não está em evitar o sofrimento, e sim em não fugir dele. Já observei casamentos desfeitos porque um falou para o outro que acabou e não voltava mais. E nenhum dos dois cedeu e insistiu e perguntou de novo. Passaram a história inteira para provar o que ele ou ela desperdiçou e o dano irreparável de suas frases. Enterremos logo nossas maldades para velar as injúrias. É só oferecer ao nosso par a mesma capacidade que termos de nos perdoar. Desapareceria metade dos problemas. Os inimigos são netos de nossas teimosias.

Castigamos com silêncio quem temos certeza de que nos ama; torturamos com silêncio quem temos certeza de que nos ama; somos indiferentes a quem temos certeza de que nos ama. Por uma palavra dita na dificuldade absoluta de comunicação. Não vale o que foi vivido antes, será enviado um boleto bancário de um grito, de um palavrão, de uma observação injusta. A cobrança será eterna quando seu significado era provisório, próprio do desabafo, de um momento infeliz. Não conheço dor que não seja desajeitada; ela vai declarar do jeito errado e do modo errado. Por que não desculpar? Terapeutas conhecem o assunto a fundo. Toda discussão é um desespero e não podem sair agrados e elogios. Mesmo assim, fazemos de conta que é difamação e desrespeito. Mais fácil odiar do que continuar trabalhando as próprias limitações. O boicote é uma forma de educar pelo sacrifício. A pior forma. É ficar preocupado em honrar o castigo. É preparar uma vingança ao invés de se distanciar um pouco para entender o que gerou a discórdia.

Trata-se ainda de um sacrifício mútuo, os dois vão perder a possibilidade de criar uma intimidade maior e mais generosa. Aquele que atacou pedia ajuda. E atacou, pois não sabia justamente pedir ajuda. Preocupados em nos defender, não alcançamos o apelo e retribuímos o inferno. A palavra engana. A palavra manda embora e o corpo pede um abraço. Há de se procurar o gesto. O que me interessa é o gesto, o resto da palavra. A origem. Se aquilo foi feito para permanecer mais perto. (...) É na briga que mostramos nossa criatividade. Poderemos repetir os clichês: desaparecer para impor uma lição ou aparecer com namorado/namorada para humilhar ou fingir que nada sente. Poderemos repetir as convenções, defender o orgulho acima de tudo, nos preocupar com a honra mais do que com a relação, chamar de preguiça a falta de cuidado com o que foi dito, reclamar responsabilidade, impor ao outro severidade de nossos princípios para mostrar o quanto somos nobres, coerentes e firmes. Ou poderemos contrariar as expectativas com um talento incomum ao humor e ao entendimento. Só um debate tem tréplica. O diálogo não conta o tempo nem limita o direito de falar. Se a separação depende de motivos, a reconciliação é muito melhor, não precisa delas. Amor não dá a última chance, dá chance sempre. O capricho é cuidar do erro. Não há capricho sem usar a borracha e reescrever de novo.

Fabrício Carpinejar (Mulher Perdigueira; págs: 322, 323 e 324)

MEU DEUS CHORA COMIGO

Ter um deus forte é saber que, se ele tivesse querido, ele teria evitado a morte. Se não evitou é porque não quis. Ora, se foi ele quem matou, ele não pode estar sofrendo. Está é feliz, por ter feito o que queria. Assim, ele é culpado da minha dor. Eu e ele estamos muito distantes, infinitamente distantes. Como poderia amá-lo - um deus assim tão cruel? Mas se ele é um deus fraco, isso quer dizer que não foi ele quem ordenou - ele não pôde evitar. Um deus fraco pode chorar comigo. Ele até se desculpa: "Não foi possível evitá-lo. Eu bem que tentei. Veja só estas feridas no meu corpo: elas provam que me esforcei..." Ele chora comigo. Assim, nós dois, eu e o meu deus, choramos juntos. E por isso nos amamos.

Rubem Alves (Navegando; pág: 111)

5 de setembro de 2011

O JARDIM


Quero também ter a felicidade de poder conversar com meus amigos sobre a minha morte. Um dos grandes sofrimentos dos que estão morrendo é perceber que não há ninguém que os acompanhe até a beira do abismo. Eles falam sobre a morte e os outros logo desconversam. "bobagem, você logo estará bom..." E eles então se calam, mergulham no silêncio e na solidão, para não incomodar os vivos. Só lhes resta caminhar sozinhos para o fim. Seria tão mais bonito uma conversa assim: "Ah, vamos sentir muito sua falta. Pode ficar tranqüilo: cuidarei do seu jardim. As coisas que você amou, depois de sua partida, vão se transformar em sacramentos: sinais da sua ausência. Você estará sempre nelas..." Aí os dois se dariam as mãos e chorariam pela tristeza da partida e pela alegria de uma amizade assim tão sincera.

Rubem Alves (Navegando; págs: 28 e 29)