31 de março de 2011

CULTO A DEUS


O melhor culto é defender a justiça. Deus não gosta de ajuntamentos com liturgias auto-centradas que só buscam canalizar o seu favor. O verdadeiro culto disponibiliza pessoas para cuidar de órfãos e de viúvas, esta é a verdadeira religião, segundo Tiago. Qualquer verticalização do louvor só tem sentido se promover a verticalização do serviço. Espiritualidade é reconhecer Deus no rosto do pobre, do nu, do faminto e do desterrado; tudo o mais é individualismo travestido de piedade. Anseio por reuniões que celebrem a graça, sem paranoias espirituais, sem alguém tentando infundir culpa para descansar no inescrutável amor de Deus. Quero participar de comunidades leves, sem as afetações próprias do glamour do mundo, onde os sorrisos sejam gratos e os abraços sinceros. O caminhar de Jesus não combina com lugares espetaculosos. Viver os valores do reino prescinde de holofotes.

Ricardo Gondim

22 de março de 2011

OS REIS DOS NOSSOS DIAS


Calígula ou Nero, esses grandes caçadores de tesouros, esses cobiçadores do impossível, teriam dado ouvidos às palavras daquele coitado [Abade Farias] e lhe teriam concedido o ar que desejava, o espaço que estimava a um preço tão valioso, e a liberdade pela qual se dispunha a pagar tão caro. Mas os reis dos nossos dias, cerceados no limite do plausível, não possuem mais a audácia da vontade; temem o ouvido que escuta a ordem que decretam, o olho que perscruta suas ações; não sentem mais a superioridade de sua essência divina; são homens coroados, nada mais. Antigamente julgavam-se, ou pelo menos diziam ser, filhos de Júpiter, e conservavam alguma coisa das maneiras do deus seu pai - não se controla facilmente o que acontece além das nuvens. Atualmente, os reis deixam-se facilmente imitar. Ora, como sempre repugnou ao governo despótico mostrar à luz do dia os efeitos da prisão e da tortura; como há poucos exemplos de uma vítima das inquisições ter conseguido ressuscitar com seus ossos moídos e feridas ensangüentadas, da mesma forma a loucura, essa úlcera nascida na franja das masmorras, em conseqüência das torturas morais, esconde-se quase sempre caprichosamente no lugar onde nasceu, ou, se dele sair, vai enterrar-se em algum hospital escuro, onde os médicos não reconhecem nem o homem nem o pensamento no escombro informe que lhes entrega seu carcereiro fatigado. (...)

Não existe assassinato em política. Em política, meu caro, sabe tão bem quanto eu, não existem homens, mas idéias; não existem sentimentos, mas interesses; em política, ninguém mata um homem: suprime-se um obstáculo, ponto final.

Alexandre Dumas (O Conde de Monte Cristo; págs: 135, 158 e 159)

22 de fevereiro de 2011

MÁSCARAS



Na verdade, acho que todo mundo cresce construindo uma identidade falsa a respeito de si mesmo. Desde a infância, quando sofremos as projeções dos pais e da família, passando pela adolescência, período em que precisamos encontrar um jeito de ser aceitos e admirados pela turma, chegando à fase de definição de carreira e casamento, até este mundo de fachada, cuja moeda mais valorizada é a imagem e onde ninguém vale mais do que aquilo que aparenta. Aos poucos, vai deixando de ser importante o que de fato somos para que entre em cena algo em que nos tornamos por escolha própria ou pressão de outros. A menina que disputava o amor do pai e o menino que disputava o amor da musa da escola crescem e se tornam a executiva que disputa a admiração do seu homem e o empresário que quer provar para todo mundo que é melhor do que o irmão dele, sim. A maioria das pessoas funcionam num ciclo de retroalimentação dessa loucura coletiva de identidades de mentirinhas e infelicidades crônicas. Ninguém se atreve a tirar as máscaras. E muito menos a denunciar as máscaras dos outros.
 
Ed René Kivitz (Outra Espiritualidade; págs: 59 e 60)
 
 
A vestimenta e as segundas intenções são totalmente transparentes e são percebidos pelo outro constantemente. O que nos salvaguarda da vergonha derradeira deste reconhecimento é que o outro também se faz vestido. Tratamo-nos assim por nomes e a dissimulação das verdadeiras essências se faz tolerável. Até porque a melhor maneira de nos escondermos é trazer alguém para dentro de nosso jogo de encobrimentos. Nesse sentido, a sociedade é a trama de nomes e vestes que garante a legitimidade das aparências. Gradativamente vamos trocando o querer do que se quer das primeiras intenções pelo querer do que se tem ou se pode ter das segundas intenções. As primeiras intenções são sempre eróticas e nascem de um desejo, já as segundas intenções têm como objetivo um fim. É justamente a troca de desejos por fins que nos obriga a vestir-nos, pois o corpo não é mais objeto de um desejo, mas de uma utilidade. Ser e usar se tornam indiscerníveis.

Nilton Bonder (Segundas Intenções; pág: 35)


Depois de certa idade, passamos a usar uma máscara de segurança e certezas. Com o tempo, essa máscara gruda no rosto e não sai mais. Quando crianças, aprendemos que, se choramos, recebemos carinho; se mostramos que estamos tristes, recebemos consolo. Se não conseguimos convencer com nosso sorriso, seguramente convenceremos com nossas lágrimas. Mas já não choramos - exceto no banheiro, quando ninguém está nos ouvindo - nem sorrimos - só para nossos filhos. Não demonstramos nossos sentimentos porque as pessoas podem nos julgar vulneráveis e se aproveitar disso.

Paulo Coelho (Adultério; pág: 46)


Nossa vida não passa de umas formações fugidias de areia movediça, constituídas por uma rajada de vento e apagadas pela próxima. Construções da futilidade que se dissipam antes mesmo de se constituírem. (...) Quando é que alguém era ele próprio? Quando era como sempre costumava ser? Ou como era quando a lava incandescente dos pensamentos e dos sentimentos enterrava todas as mentiras, as máscaras e as autoilusões? Frequentemente eram os outros que se queixavam que alguém deixou de ser ele próprio. Talvez isso significasse, na verdade: ele não é mais como nós gostaríamos que fosse. No fim das contas, tudo não seria simplesmente uma espécie de grito de guerra contra a ameaça de um abalo daquilo que é habitual, mascarado de interesse e preocupação pelo bem do outro?

Pascal Mercier (Trem Noturno Para Lisboa; pág: 435)


d'Artagnan observou alguma coisa de dissimuladamente pérfida no movimento habitual das rugas em seu rosto. Um patife não ri da mesma maneira que um homem honesto, um hipócrita não chora as mesmas lágrimas que um homem de boa-fé. Toda falsidade é uma máscara, e por mais bem-feita tal máscara, sempre conseguimos, com um pouco de atenção, diferenciá-la do semblante verdadeiro.

Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros; pág: 271)

12 de fevereiro de 2011

A TIRANIA DA FELICIDADE



A felicidade é o objetivo da busca eterna e universal que vem ocupando a mente humana desde os primórdios da Criação. As pessoas podem diferir em suas perspectivas políticas e religiosas, filosofias de vida, perfis psicológicos, cultura e raça, mas todos, sem exceção, querem ser felizes. A felicidade é a meta do pobre e do rico, do erudito e do ignorante, do santo e do pecador, do ateu e do crente, do ascético e do indulgente. É por causa da felicidade que aspirantes espirituais oram, trapaceiros trapaceiam, monopolistas monopolizam, caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões roubam e penitentes se arrependem. Almejando felicidade, uns se casam, outros se divorciam, alguns cometem suicídio e outros se tornam homicidas. E, no entanto, a perseguição à felicidade resulta numa tentativa caótica, absurda, infrutífera. Ninguém tem certeza de como alcançá-la. Nenhum ramo de estudo nos trouxe conhecimento algum a respeito do segredo da felicidade. A religião enfatiza a salvação e a filosofia, a busca da verdade. Os moralistas falam a respeito do dever, e os psicólogos nos pedem que enfrentemos e convivamos com a infelicidade. Os cientistas pouco se importam com nossos sentimentos, e os economistas dão valor tão-somente à riqueza e à prosperidade. Nenhum deles se dedica ao problema da felicidade.

Em busca da felicidade, as pessoas freqüentemente se comportam de forma estranha. Alguns ficam felizes quando os outros estão felizes; alguns são felizes quando os outros são infelizes; e existem até mesmo aqueles que são felizes quando eles próprios são infelizes. Uns têm esperança de comprar a felicidade enquanto outros há que tentam usurpá-la do próximo. Há aqueles que buscam alcançar a felicidade através do domínio, pelo poder; outros, no apego às coisas. Desta forma, estamos todos constantemente perseguindo a felicidade, ao invés de sermos felizes. Não admira, portanto, que nasçamos chorando, vivamos nos lamuriando e morramos frustrados.
 
Swami Adiswarananda (monge da Ordem Ramakrishna)
 
 
Você erroneamente concluiu que perseguindo o alvo espiritual você de alguma forma fará que seus alvos materiais se tornem miraculosamente simples e gerenciáveis. Tudo o que posso garantir é que enquanto estiver buscando a felicidade você permanecerá infeliz. Por que a vida deveria ter algum sentido? Por que deveria haver algum propósito em viver? Viver, em si mesmo, é tudo o que existe. A sua busca por um significado espiritual transformou a vida num problema. Minha missão, se é que existe alguma, deveria ser, de agora em diante, refutar cada declaração que já fiz. Se levar a sério ou tentar aplicar o que venho dizendo, você estará em perigo. Meu interesse não é impugnar o que os outros disseram (o que seria fácil demais), mas impugnar o que eu estou dizendo. Mais precisamente, estou tentando interromper o que você vem concluindo do que estou dizendo.

U.G Krishnamurti