10 de agosto de 2016

ACHO QUE É HORA DE CONVERSARMOS


23 de Fevereiro de 1998. Horário nobre

Boa noite, Londres! Acho que é hora de conversarmos. Estão todos confortáveis? Então eu começarei... Imagino que você esteja se perguntando por que foi chamado aqui esta noite. Sabe, não estou inteiramente satisfeito com seu desempenho nos últimos tempos, receio que seu trabalho tenha decaído muito e... ...Bem, estamos pensando seriamente em demitir você. Claro... Eu sei que está na empresa faz muito tempo, quase... Deixe ver... Quase dez mil anos! Deus do céu! O tempo voa, não? Eu me lembro do dia em que você começou no emprego, balançando nas árvores, ainda jovem e muito nervoso, com um osso na mão peluda... Você me perguntou: "Por onde começo, senhor?" Ainda recordo minhas exatas palavras: "Está vendo aquela pilha de ovos de dinossauro?", indaguei, sorrindo paternalmente. "Pode chupar."

Já se passou muito tempo desde aquela época, não é verdade? E, claro, tem toda razão... Até hoje, você não faltou um dia. Muito bem, ó servo bom e fiel. Por favor, não pense que me esqueci da sua admirável folha de serviços, ou das valiosas contribuições que prestou à empresa. O fogo, a roda, a agricultura... Uma lista respeitável, meu velho. Realmente muito respeitável. Mas... Bem, para ser franco, nós andamos tendo problemas, não se pode fechar os olhos para isso. E sabe onde eu acho que a maioria deles se origina? Na sua indisposição natural para subir dentro da empresa. Você não quer encarar responsabilidades verdadeiras, nem ser seu próprio chefe. Deus sabe quantas oportunidades já teve. Várias vezes, nós lhe oferecemos promoções, e você sempre recusou. "Isso é muito pra mim, chefia. Eu conheço meu lugar." Para ser franco, você nunca nem tentou. Sabe.. Como não progride há muito tempo, isso já começa a afetar seu trabalho... ...E, devo acrescentar, seu padrão de comportamento também. Os constantes desentendimentos na fábrica não escaparam à minha atenção... ...Nem os surtos de desordem na cantina dos funcionários. Além disso, posso citar... Hmm, bem, eu não queria trazer isso à tona, mas... ...Sabe, andei ouvindo coisas desagradáveis sobre sua vida pessoal. Não. Nada de nomes. Quem me contou, não importa. Estou sabendo que você não consegue mais se entender com sua esposa... Me disseram que os dois brigam muito, que você grita... Falaram até de violência. Fui informado que você sempre magoa aquela que ama... ...Aquela que jamais deveria magoar. E seus filhos? São sempre as crianças que sofrem, como você bem sabe. Pobrezinhos! O que fizeram para merecer isso? O que fizeram para merecer sua truculência, seu desespero, sua covardia e todas as intolerâncias cultivadas com tanta estima?

Situação nada boa, não é? E não adianta culpar a gerência pela queda nos padrões de trabalho... ...Embora eu saiba que ela deixa muito a desejar. Na verdade, sem papas na língua... A gerência é deplorável! Nós tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem-número de decisões catastróficas. Isso é inegável. Mas quem os elegeu? Você! Você indicou essas pessoas. Você deu a elas o poder para tomarem decisões em seu lugar! Claro que qualquer um está sujeito a se equivocar, mas cometer os mesmos erros fatais, século após século, parece uma atitude deliberada. Você encorajou esses incompetentes, que transformaram sua vida profissional num inferno. Aceitou suas ordens insensatas sem questionar. Sempre permitiu que enchessem seu espaço de trabalho com máquinas perigosas. Você podia ter detido essa gente. Bastava dizer "não". Você não teve orgulho próprio. Perdeu o valor que tinha na companhia. No entanto, eu serei generoso. Você terá dois anos para aprimorar seu trabalho. Se, ao fim desse período, não apresentar resultados satisfatórios... ...Será cortado. Isso é tudo, pode voltar ao trabalho. As tarefas normais devem começar tão logo seja possível.

9 de Novembro de 1998

Boa noite, Londres. Eu gostaria de me apresentar, mas verdade seja dita, não tenho nome. Podem me chamar de "V". Desde a aurora da humanidade, um punhado de opressores assumiu a responsabilidade sobre nossas vidas. Responsabilidade que nós deveríamos ter. Ao fazer isso, eles tomaram nosso poder. Ao nada fazermos, nós o entregamos. Nós vimos aonde seus caminhos levaram, através de campos e guerras, rumo a matadouros. Na anarquia, há outro caminho. Com a anarquia, dos destroços vem vida nova, esperança renascida. Dizem que a anarquia está morta, mas vejam... As notícias de minha morte foram... ...Exageradas... Amanhã, a rua Downing será destruída, a cabeça reduzida a ruínas. Um fim para o que já passou. Hoje vocês irão escolher entre uma vida própria ou o retorno aos grilhões. Escolham com cuidado.

Adieu.

10 de Novembro de 1998

Você escapou do abatedouro ileso, mas não intacto. Viu a necessidade da liberdade, não apenas pra si, mas pra todos... Você viu... E vendo, ousou fazer. Quão sábia foi sua vendeta... Quão benigna, quase uma cirurgia. Os inimigos acreditaram que você pretendia se vingar só em suas carnes, mas não. Você esquartejou suas ideologias. As pessoas encontram-se em meio às ruínas da sociedade, uma cela que prometia ser eterna. A porta está aberta. Podem partir agora, ou voltar a se desentender e tecer nova escravidão. A escolha é deles, como sempre deveria ter sido. Não pretendo liberá-los, mas ajudarei a construir, a criar. Não ajudarei a matar. A era dos assassinos acabou. Eles não têm lugar em nosso mundo melhor.

Alan Moore e David Lloyd (V de Vingança; págs: 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 260 e 262)

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