17 de março de 2015

OS IPÊS AMARELOS


Acho curriculum vitae uma coisa boba. Sei que os burocratas sem eles se sentiriam perdidos. Por amor aos burocratas e curiosos fiz uma concessão: coloquei o meu na minha homepage. Mas lhe dei um nome novo. "Curriculum", em latim, quer dizer "pista de corrida". Um curriculum vitae é, assim, uma enumeração dos lugares por onde se passou, na correria da vida. As coisas que ele registra não existem mais. O que é passado está morto. Assim, na minha homepage, ao invés de curriculum vitae eu escrevi curriculum mortis, porque eu não sou o meu passado. Eu sou o meu agora. De um pianista que vai iniciar o seu concerto não se espera que ele diga os nomes dos professores com quem estudou e os prêmios que ganhou. Dele só se espera uma coisa: que se assente ao piano e toque. Existirá tédio maior que aquelas apresentações de oradores em que o apresentador vai enumerando cursos, livros e honrarias? Ninguém presta atenção, ninguém quer saber.

Ao final de uma entrevista, o entrevistador me fez a última pergunta: "Como é que o senhor se definiria?". Fui pego de surpresa. A resposta teria de ser curta. Lembrei-me da frase que o poeta Robert Frost escolheu para o seu epitáfio: "Ele teve um caso de amor com a vida...". Encontrei a minha definição de mim mesmo. Respondi: "Eu tenho um caso de amor com a vida...". Uma professora me contou esta coisa deliciosa. Um inspetor visitava a escola. Numa sala ele viu, colados nas paredes, trabalhos dos alunos acerca de alguns dos meus livros infantis. Como que num desafio, ele perguntou à criançada: "E quem é Rubem Alves?". Um menininho respondeu: "O Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos...". A resposta do menininho me deu grande felicidade. Ele sabia das coisas. As pessoas são aquilo que elas amam. Descartes afirmou: "Penso, logo existo". Eu inverto Descartes e digo: "Amo, logo existo".

Mas o menininho não sabia que sou um homem de muitos amores... Amo os ipês, mas amo também caminhar sozinho. Muitas pessoas levam seus cães a passear. Eu levo meus olhos a passear. E como eles gostam! Eles têm fome de ver. Encantam-se com tudo. Para eles o mundo é assombroso. Tenho dó daqueles que caminham para fazer exercício, cabeça baixa, olhando para o chão, com cara de sofrimento, sem ver as árvores e os pássaros. Caminham na companhia de suas velhas idéias... Gosto também de banho de cachoeira, de vento na cara, do barulho das folhas dos eucaliptos, do cheiro das magnólias, de música clássica, de canto gregoriano, de viola caipira, de poesia, de olhar as estrelas, de cachorro, das pinturas de Vermeer (o pintor do filme Moça com brinco de pérola), de Monet, de Dalí, de Carl Larsson, do repicar de sinos, das catedrais góticas, de jardins, da comida mineira, de conversar à volta da lareira, de namorar (para isso não há idade), de crianças, ("Grande é a poesia, a bondade e as danças, mas a melhor coisa do mundo são as crianças...", Fernando Pessoa), de plantar árvores, de canto de sabiá, de balanço, de ver os filhos rindo, de escrever...

Escrever é a minha grande alegria! Já me sugeriram escrever um romance. Não escreverei, Romance é coisa complicada, estória com princípio, meio e fim. Não tenho competência, não tenho paciência, não tenho tempo. Já tenho 71 anos. É preciso escrever curto porque a arte é longa e a vida é breve. Sou um esteta. Diz Alberto Caeiro que o mundo é para ser visto e não para pensarmos nele. Nos poemas bíblicos da criação está relatado que Deus, ao fim de cada dia de trabalho, sorria ao contemplar o mundo que criara: tudo era muito bonito. Os olhos são a porta pela qual a beleza entra na alma. Meus olhos se espantam com tudo. Sou místico. Ao contrário dos místicos religiosos que fecham os olhos para verem Deus, a Virgem e os anjos, eu abro bem os meus para ver as frutas e legumes nas bancas de feira. Cada fruto é um assombro, um milagre. Uma cebola é um milagre.

Tanto assim que Neruda escreveu uma ode em seu louvor: "Rosa de água com escamas de cristal...". Vejo e quero que os outros vejam comigo. Por isso escrevo. Faço fotografias com palavras. Diferentes dos filmes que exigem tempo para serem vistos, as fotografias são instantâneas. Minhas crônicas são fotografias. Escrevo para fazer ver. Uma das minhas alegrias são os e-mails que recebo de pessoas que me confessam haver aprendido o gozo da leitura lendo os meus textos. Os adolescentes que parariam desanimados diante de um livro de duzentas páginas sentem-se atraído por um texto pequeno de três páginas. O que escrevo são aperitivos. Na literatura, frequentemente, o curto é muito maior que o comprido. Há poemas que contêm um universo. Mas escrevo também com uma intenção gastronômica. Quero que meus textos sejam comidos. Mais do que isso: quero que eles sejam comidos com prazer. Esse é o sonho de cada escritor. Comida ruim é vomitada. Texto ruim também. Já um texto que dá prazer é degustado vagarosamente. São esses os textos que se transformam em carne e sangue, como na eucaristia.

Sei que não me resta muito tempo. Já é crepúsculo. Não tenho medo da morte. O que sinto é tristeza. O mundo é muito bonito! Gostaria de ficar por aqui... Escrever é o meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão. Quem sabe se transformarão em árvores! Torço para que sejam ipês amarelos...

Rubem Alves (Um Céu Numa Flor Silvestre; págs: 73, 74, 75 e 76)

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