28 de fevereiro de 2015

ESPAÇO DOS FLUXOS

O espaço define o quadro temporal das relações sociais. É por isso que as cidades nascem da concentração de funções de comando e controle, da coordenação, da troca de bens e serviços, da vida social diversa e interativa. Na verdade, as cidades são, desde a sua aparição, sistemas de comunicação, aumentando as chances de comunicação por meio da contiguidade física. Chamo o espaço dos lugares de espaço de contiguidade. Por outro lado, práticas sociais como práticas de comunicação também aconteciam à distância por meio de transporte e mensagens. Com o advento de tecnologias de comunicação operadas eletricamente, como, por exemplo, o telégrafo e o telefone, uma certa simultaneidade foi introduzida nas relações sociais à distância. Mas foi o desenvolvimento da comunicação digital baseada na microeletrônica, das redes avançadas de telecomunicação, dos sistemas de informação e do transporte computadorizado que transformou a espacialidade da interação social com a introdução da simultaneidade, ou de qualquer outro quadro temporal, nas práticas sociais, a despeito da localização dos atores engajados no processo de comunicação. Essa nova forma de espacialidade é o que conceituei como espaço dos fluxos: o suporte material de práticas sociais simultâneas comunicadas à distância. Isso envolve a produção, transmissão e processamento de fluxos de informação. Também depende do desenvolvimento de localidades como nós dessas redes de comunicação e da conectividade de atividades localizadas nesses nós por meio de redes de transporte rápido operadas por fluxos de informação.

Manuel Castells (A Era da Informação: A Sociedade em Rede; págs: 16 e 17)

AUTÔMATO GLOBAL

A crise [2008] foi fermentada nos caldeirões da nova economia, uma economia definida por um aumento substancial da produtividade gerado pela inovação tecnológica, pela formação de redes e pelos níveis educacionais mais altos da mão-de-obra. (...) De fato, se nos concentrarmos nos Estados Unidos, onde a crise teve início, veremos que, entre 1998 e 2008, o crescimento cumulativo da produtividade chegou a quase 30%. Todavia, por causa de políticas gerenciais míopes e gananciosas, os salários reais só subiram 2% durante a década e, na verdade, a remuneração semanal dos trabalhadores formado no ensino superior caiu 6% entre 2003 e 2008. Ainda assim, os preços dos imóveis disparam na década de 2000 e as instituições provedoras de empréstimos alimentaram esse frenesi fornecendo hipotecas, respaldadas em última instância por instituições federais, àqueles mesmos trabalhadores cujos salários estavam estagnados ou em retração. A idéia era a de que os aumentos de produtividade acabariam por chegar aos salários à medida que os benefícios do crescimento fossem sendo lentamente decantados até a base dos trabalhadores. Isso nunca aconteceu porque as empresas financeiras e imobiliárias colheram os benefícios da economia produtiva, induzindo uma bolha insustentável.
 
A cota de lucro do setor de serviços financeiros passou de 10% na década de 1980 para 40% em 2007, e o valor de suas ações, de 6% para 23%, ao passo que o setor corresponde a apenas 5% do emprego no setor privado. Em suma, os benefícios bastante reais da nova economia foram apropriados pelo mercado de valores mobiliários e usados para gerar uma massa muito maior de capital virtual que multiplicou seu valor por meio de empréstimos a consumidores/tomadores de empréstimos ávidos. Além disso, a expansão da economia global, com a ascensão da China, Índia, Brasil e Rússia, além de outras economias em vias de industrialização, para a vanguarda do crescimento capitalista aumentou o risco de colapso financeiro com o empréstimo do capital acumulado nesses países para os Estados Unidos e outros mercados a fim de sustentar a solvência e a capacidade de importação dessas economias e, ao mesmo tempo, tirar proveito das taxas favoráveis de empréstimo. O gasto militar maciço do governo dos EUA para financiar suas aventuras no Iraque também foi financiado por meio de dívida, tanto que países asiáticos agora possuem uma grande porcentagem dos Títulos do Tesouro Americano, entrelaçando de maneira decisiva a política fiscal dos EUA e da Ásia/Pacífico. Embora a inflação tenha sido mantida relativamente sob controle em todos os países da OCDE por causa do significativo aumento da produtividade, houve, como propus em minha análise, uma ampliação do hiato entre a escala de provimento de empréstimos e a capacidade tanto dos consumidores quanto das instituições de saldá-los.
 
A taxa de endividamento em relação à renda disponível das famílias nos Estados Unidos subiu de 3% em 1998 para 130% em 2008; Por conseguinte, o percentual de mora nas hipotecas de baixo risco subiu de 2,5% em 1998 para 118% em 2008. Todavia, ninguém podia fazer muita coisa a respeito porque o mercado financeiro global havia fugido do controle de qualquer investidor, governo ou agência reguladora e havia se tornado o que, neste livro, chamei de um "autômato global" que impõe sua lógica à economia e à sociedade em geral, inclusive aos seus próprios criadores. Assim, uma crise financeira de proporções sem precedentes acontece em todo o mundo neste exato momento em que escrevo estas palavras, pondo fim, de forma dramática, ao mito do mercado auto-regulado, questionando a relevância de algumas teorias econômicas tradicionais e fazendo com que governos e empresas tentem freneticamente domar o autômato selvagem que deu marcha a ré e devorou diariamente dezenas de milhares de empregos (no sentido de vidas familiares). Há uma busca urgente de remédios estabilizadores, mas temo que, ao procurar soluções nas fórmulas dos cursos básicos de economia, ficaremos perdidos no mundo escuro resultante da incapacidade de regular um novo tipo de economia regido por novas condições tecnológicas.

Manuel Castells (A Era da Informação: A Sociedade em Rede - Prefácio; págs: IV, V e VI)

OS SEIS FATORES QUE POSSIBILITARAM A CRISE DE 2008

 
A crise financeira global que explodiu por volta do final de 2008 e deixou a economia global em queda livre foi a consequência direta da dinâmica específica dessa economia global (...). Resultou de uma combinação de seis fatores. Primeiro, a transformação tecnológica do mundo financeiro que serviu de base para a constituição de um mercado financeiro global e dotou as instituições financeiras da capacidade computacional para operar modelos matemáticos avançados. Esses modelos eram julgados capazes de gerir a crescente complexidade do sistema financeiro, operando globalmente mercados financeiros interdependentes por meio de transações eletrônicas realizadas com a velocidade de um raio. Segundo, a liberalização e desregulamentação das instituições e mercados financeiros, permitindo um fluxo quase livre de capital em todo o mundo e assoberbando a capacidade regulatória das instituições nacionais. Terceiro, a securitização de toda organização, atividade ou ativo econômico, tornando a avaliação financeira o critério mais importante para a estimação do valor de empresas, governos e até mesmo de economias como um todo. Além disso, novas tecnologias financeiras possibilitaram a invenção de vários produtos financeiros exóticos à medida que derivativos, futuros, opções e seguros securitizados (como swaps de crédito inadimplente) se tornavam cada vez mais complexos e interligados, virtualizando o capital e eliminando qualquer aspecto de transparência nos mercados, o que tornou os procedimentos contáveis sem sentido. Quarto, o desequilíbrio entre acúmulo de capital em países em vias de industrialização, como a China e os países produtores de petróleo, e o capital tomado emprestado pelas economias mais ricas, como os Estados Unidos, acarretou uma onda de empréstimos de risco a uma multidão de consumidores acostumados a viver no limite da dívida, expondo os provedores de empréstimos a um risco muito superior a suas capacidades financeiras. Quinto, como os mercados financeiros só funcionam parcialmente segundo a lógica da oferta e da demanda e são em grande parte moldados por "turbulências de informação", (...) a crise das hipotecas que começou em 2007 nos Estados Unidos após a explosão da bolha do mercado imobiliário reverberou por todo o sistema financeiro global. (...) Por fim [Sexto], mas não menos importante, a carência de supervisão adequada nas transações com valores mobiliários e nas práticas financeiras possibilitou que corretores ousados inflassem a economia e suas bonificações pessoais por meio de práticas de empréstimo cada vez mais arriscadas.

Manuel Castells (A Era da Informação: A Sociedade em Rede - Prefácio; págs: III e IV)

26 de fevereiro de 2015

INFRAESTRUTURA CAPITALISTA

Em cada instância, a inovação no nexo Estado-finanças tem sido uma condição necessária para canalizar os excedentes em urbanização e projetos de infraestruturas (barragens e rodovias, por exemplo). Mas, sucessivamente nos últimos trinta anos, o investimento excessivo em tais projetos tornou-se um gatilho catalisador comum para a formação de crises. (...) Várias das crises financeiras desde 1970 foram provocadas por excessos nos mercados imobiliários. A taxa composta de crescimento [3%] que está no cerne do modo de produção capitalista não pode ser alcançada sem antes estabelecer as condições físicas de infraestrutura necessárias. Um crescimento econômico liderado por exportações para alguns países exige transporte prévio adequado e instalações portuárias, assim como uma fábrica não pode funcionar sem o fornecimento adequado (e, às vezes, abundante) de insumos de água e energia, além de transporte e infraestrutura de comunicações, que permitem a continuidade da produção sem estrangulamentos demais no fornecimento de insumos (incluindo o trabalho) e na comercialização do produto. Os trabalhadores também têm de viver, fazer compras, educar seus filhos e satisfazer suas necessidades de lazer em algum lugar razoavelmente perto. A vasta infraestrutura que constitui o ambiente construído é um pressuposto material necessário para a produção capitalista, a circulação e a acumulação avançarem. Essa infraestrutura exige cada vez mais uma manutenção constante e adequada para mantê-la em bom funcionamento. Uma parcela crescente da produção econômica, portanto, tem de ser colocada na manutenção adequada dessas infraestruturas necessárias. Falhas de manutenção (como a ruptura de uma rede elétrica, a falta de abastecimento de água ou panes nos sistemas de transportes e comunicações) estão longe de ser incomuns. (...) A acumulação de capital adicional é, aliás, baseada na construção de novas infraestruturas. 

A sobrevivência do capitalismo, em suma, depende do investimento na organização e financiamento de infraestrutura adequadas para manter a taxa de crescimento composto. O capital tem de criar um cenário adequado para suas próprias necessidades - uma segunda natureza construída à sua própria imagem - em um dado momento, só pra revolucionar a paisagem em um momento posterior, a fim de acomodar uma maior acumulação numa taxa composta. Mas que incentivos existem para o capital investir nessas infraestruturas? Uma taxa adequada de retorno monetário é a resposta óbvia, e isso significa que o pagamento para a utilização dessas infraestruturas tem de ser extraído de alguma forma daqueles que delas se beneficiam. (...) É aqui que o Estado tem de entrar novamente em cena e desempenhar um papel central. Para isso, precisa extrair os impostos. A teoria do gasto público produtivo surgiu na Paris do Segundo Império pelos financistas saint-simonianos e, mais tarde, foi generalizada por Keynes, que sugeriu que a base de tributação deve aumentar à medida que o capital privado responde positivamente a possibilidades geradas pelas novas disposições de infraestrutura. O resultado é uma forma de circulação Estado-capital em que não só os investimentos do Estado se pagam por si mesmos, mas também geram uma receita extra para ser colocada em mais infraestruturas.

David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 76 e 77)

CAPITALISMO DE ESTADO

 
Certamente, se o trabalho é bem organizado demais e muito poderoso num determinado local, a classe capitalista procurará comandar o aparato estatal para que este atenda a seus interesses. (...) O uso do poder estatal para transcender a barreira da organização do trabalho tem sido muito efetivo desde meados da década de 1970 em muitas partes do mundo. Outro método é facilitar, se não subsidiar, a mobilidade do capital para que ele possa se deslocar para onde haja condições de negócios mais vantajosas, incluindo oferta de trabalho e organização fraca do trabalho. (...) A competição interurbana, interregional e internacional por parte dos aparatos estatais por investimentos de capital tem um papel importante aqui. O Estado (local, regional ou nacional) se torna responsável por garantir o fornecimento de força de trabalho em quantidades e qualidades adequadas (incluindo formação profissional, treinamento e docilidade política) em relação à demanda de trabalho corporativo. (...) Há ainda um grande interesse em localidades que investem em oportunidades educacionais de alta qualidade (universidades e escolas técnicas), pois isso poderá ajudar a atrair a indústria de alta tecnologia que irá contribuir mais para a base tributária da localidade. (...).
 
A chamada teoria da crise por "esmagamento dos lucros" se coloca no problema perpétuo das relações de trabalho e da luta de classes, tanto no processo quanto no mercado de trabalho. Quando essas relações representam um obstáculo à acumulação do capital, segue-se então uma crise, a menos que alguma medida (...) possa ser tomada para o capital superar ou contornar essa barreira. (...) A maneira como essa barreira foi contornada pelo capital com a ascensão do neoliberalismo durante os anos 1970 e início dos anos 1980 define em muitos aspectos a natureza dos dilemas que enfrentaremos agora. (...) Há muito poucos sinais de um esmagamento dos lucros. As reservas de trabalho existem em toda parte e há poucas barreiras geográficas ao acesso capitalista. O ataque político sobre os movimentos da classe trabalhadora do mundo inteiro reduziu a resistência do trabalhador a níveis muito modestos em quase toda a parte. A crise de 2008 a 2009 não pode ser entendida em termos de esmagamento dos lucros. A repressão salarial por causa da oferta de trabalho superabundante e a consequente falta de demanda de consumo efetiva são problemas muito mais graves. No entanto, a questão do trabalho nunca acaba. A agitação do trabalho pode muito bem surgir como um problema sério, em qualquer momento e em qualquer lugar. (...) A relação capital-trabalho sempre tem um papel central na dinâmica do capitalismo e pode estar na origem das crises. Mas hoje em dia o principal problema reside no fato de o capital ser muito poderoso e o trabalho muito fraco, não o contrário.

David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 60 e 61)

O COERCITIVO FLUXO DO CAPITAL

A continuidade do fluxo na circulação do capital é muito importante. O processo não pode ser interrompido sem incorrer em perdas. Há também fortes incentivos para acelerar a velocidade da circulação. (...) A aceleração quase sempre leva a maiores lucros. (...) Qualquer interrupção no processo ameaça levar à perda ou desvalorização do capital investido. Os ataques do 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, por exemplo, interromperam o fluxo de bens, serviços e pessoas dentro e fora da cidade de Nova York (e outras) e fecharam mercados financeiros por um tempo. Dentro de três dias, porém, tornou-se claro que os fluxos tinham de ser ressuscitados ou a economia estaria em apuros. Apelos públicos vigorosos foram feitos para todos saírem e fazerem compras, viajarem, consumirem e voltarem aos negócios (especialmente no setor financeiro). Era patriótico ajudar a economia a retomar seu rumo indo às compras! O presidente George W. Bush até mesmo tomou a atitude extraordinária de aparecer em um comercial coletivo das companhias aéreas exortando a todos a esquecer seus medos e continuar a viajar de avião. Embora as interrupções temporárias do tipo da do 11 de Setembro possam ser revertidas, a falta de movimento a longo prazo prenuncia uma crise do capitalismo. (...). Se o crescimento não recomeça, então o capital superacumulado se desvaloriza ou é destruído. A geografia histórica do capitalismo está repleta de exemplos de crises de superacumulação, algumas locais e de curta duração (como a queda dos bancos suecos em 1992), outras em uma escala um pouco maior (a recessão de longa data que aflige a economia japonesa desde 1990 aproximadamente) e outras vezes tomando todo o sistema e, mais tarde, o globo (como em 1848, 1929, 1973 e 2008). (...).
 
Ao longo da história do capitalismo muito esforço tem sido posto, portanto, na redução do atrito de distância e dos obstáculos à circulação. Inovações nos transportes e comunicação têm sido cruciais. Aumentar a abertura das fronteiras do Estado ao comércio e finanças, assinar acordos de livre-comércio e garantir um bom enquadramento jurídico para o comércio internacional também são vistos como essenciais a longo prazo. Imagine se as barreiras alfandegárias na Europa nunca tivessem sido abolidas. Para citar outro exemplo contemporâneo, a securitização das hipotecas locais e sua venda a investidores em todo o mundo eram vistos como uma maneira de conectar áreas de escassez de capital àquelas com excedentes, supostamente minimizando os riscos. Ao longo da história do capitalismo tem havido uma tendência para a redução geral das barreiras espaciais e a aceleração. As configurações do espaço e do tempo da vida social são periodicamente revolucionadas (lembre-se do que aconteceu com a chegada das ferrovias no século XIX e do impacto atual da web). O movimento torna-se ainda mais rápido e as relações no espaço cada vez mais estreitas. Mas essa tendência não é nem suave nem irreversível. O protecionismo pode voltar, as barreiras podem ser reforçadas, guerras civis podem interromper os fluxos. Além disso, as revoluções nas relações espaciais e temporais produzem tensões e crises (tenha em mente os difíceis ajustes forçados em muitas cidades, com a desindustrialização generalizada nas capitais da produção capitalista na década de 1980 quando a produção mudou-se para o Leste da Ásia). (...).

Por que os capitalistas reinvestem na expansão, em vez de consumir seus lucros em prazeres? Esse é o lugar em que "as leis coercitivas da concorrência" desempenham um papel decisivo. Se eu, como capitalista, não reinvestir em expansão e um rival o fizer, então depois de um tempo eu provavelmente estarei fechando as portas. Preciso proteger e expandir minha participação no mercado. Tenho de reinvestir para permanecer um capitalista. Isso pressupõe, no entanto, a existência de um ambiente competitivo, que exige que também expliquemos como a concorrência é perpetuada em face das tendências para a monopolização ou outras barreiras sociais ou tradicionais ao comportamento competitivo. (...) Na ausência de quaisquer limites ou barreiras, a necessidade de reinvestir a fim de continuar a ser um capitalista impulsiona o capitalismo a se expandir a uma taxa composta. (...) Há, contudo, outra motivação para reinvestir. O dinheiro é uma forma de poder social que pode ser apropriado por particulares. Além disso, é uma forma de poder social que não tem limites inerentes. Há um limite para a quantidade de terra que posso ter, de ativos físicos que posso comandar. Imelda Marcos tinha 6 mil pares de sapatos, descobriu-se após a derrubada da ditadura de seu marido nas Filipinas, mas isso ainda constituía um limite da mesma forma que as pessoas muito ricas não podem possuir bilhões de iates ou condomínios fechados. Mas não existe limite inerente aos bilhões de dólares que um indivíduo pode comandar. A ilimitação do dinheiro e o desejo inevitável de comandar o poder social que ele confere oferecem uma gama abundante de incentivos sociais e políticos para querer ainda mais dinheiro. E uma das principais maneiras de ter mais é reinvestir uma parte dos fundos excedentes conquistados ontem para amanhã gerar mais excedentes. Existem, é triste dizer, muitas outras formas de acumular o poder social que o dinheiro possibilita: fraude, corrupção, banditismo, roubo e tráfico ilegal. Mas vou considerar aqui em especial as formas legalmente sancionadas, embora possa haver um argumento sério de que as formas extralegais são fundamentais, não apenas periféricas, ao capitalismo (os três maiores setores de comércio externo global são as drogas, as armas ilegais e o tráfego de seres humanos).

David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 42, 43, 44 e 45)

24 de fevereiro de 2015

GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA

 
Um dos principais obstáculos para o contínuo acúmulo de capital e a consolidação do poder de classe capitalista na década de 1960 foi o trabalho. Havia escassez de mão de obra, tanto na Europa quanto nos EUA. O trabalho era bem organizado, razoavelmente bem pago e tinha influência política. No entanto, o capital precisava de acesso a fontes de trabalho mais baratas e mais dóceis. Houve uma série de maneiras para fazer isso. Uma delas foi estimular a imigração. O Ato de Imigração e Nacionalidade de 1965, que aboliu as cotas de origem nacional, permitiu o acesso ao capital dos EUA à população excedente global (antes apenas europeus e caucasianos eram privilegiados). No fim dos anos 1960, o governo francês começou a subvencionar a importação de mão de obra da África do Norte, os alemães transportaram os turcos, os suecos trouxeram os iugoslavos, e os britânicos valeram-se dos habitantes de seu antigo império. Outra forma foi buscar tecnologias que economizassem trabalho, como a robotização na indústria automobilística, o que criou desemprego. Um pouco disso aconteceu, mas houve muita resistência por parte do trabalho, que insistia em acordos de produtividade. A consolidação do poder de monopólio das empresas também enfraqueceu a implementação de novas tecnologias, porque custos laborais mais elevados eram transferidos para o consumidor por meio de preços mais altos (resultando em inflação estável).
 
As três grandes empresas automobilísticas em Detroit geralmente faziam isso. Seu monopólio acabou finalmente quebrado quando os japoneses e alemães invadiram o mercado de automóveis dos EUA na década de 1980. O retorno às condições de uma maior concorrência, que se tornou  um objetivo político fundamental nos anos 1970, então forçou o uso de tecnologias que economizassem trabalho. (...) Alan Budd, conselheiro-chefe econômico de Thatcher, mais tarde admitiu que "as políticas dos anos 1980 de ataque à inflação com o arrocho da economia e gastos públicos foram um disfarce para esmagar os trabalhadores", e assim criar um "exército industrial de reserva", que minaria o poder do trabalho e permitiria aos capitalistas obter lucros fáceis para sempre. Nos EUA, o desemprego subiu, em nome do controle da inflação, para mais de 10% em 1982. Resultado: os salários estagnaram. Isso foi acompanhado nos EUA por uma política de criminalização e encarceramento dos pobres, que colocou mais de 2 milhões atrás das grades até 2000.

O capital também teve a opção de ir para onde o trabalho excedente estava. As mulheres rurais do Sul global foram incorporadas à força de trabalho em todos os lugares, de Barbados a Bangladesh, de Ciudad Juárez a Dongguan. O resultado foi uma crescente feminização do proletariado, a destruição dos sistemas camponeses "tradicionais" de produção autossuficientes e a feminização da pobreza no mundo. O tráfico internacional de mulheres para a escravidão doméstica e prostituição surgiu, na medida em que mais de 2 bilhões de pessoas, cada vez mais amontoadas em cortiços, favelas e guetos de cidades insalubres, tentavam sobreviver com menos de dois dólares por dia. Inundadas com capital excedente, as empresas norte-americanas começaram a expatriar a produção em meados da década de 1960, mas esse movimento apenas se acelerou uma década depois. Posteriormente, peças feitas quase em qualquer lugar do mundo - de preferência onde o trabalho e as matérias-primas fossem mais baratas - poderiam ser levadas para os EUA e montadas para a venda final no mercado. O "carro mundial" e a "televisão global" tornaram-se um item padrão na década de 1980. O capital já tinha acesso ao trabalho de baixo custo no mundo inteiro. Para completar, o colapso do comunismo, drástico no ex-bloco soviético e gradual na China, acrescentou cerca de 2 bilhões de pessoas para a força de trabalho assalariado global. (...).

Uma nova arquitetura financeira global foi criada para facilitar a circulação do fluxo internacional de capital-dinheiro líquido para onde fosse usado de modo mais rentável. A desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e tornou-se irrefreável na década de 1990. A disponibilidade do trabalho não é mais um problema para o capital, e não tem sido pelos últimos 25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários, e os trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante. A persistente repressão salarial, portanto, coloca o problema da falta de demanda para a expansão da produção das corporações capitalistas. Um obstáculo para a acumulação de capital - a questão do trabalho - é superada em detrimento da criação de outro - a falta de mercado. (...) A lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia gastar foi preenchida pelo crescimento da indústria de cartões de crédito e aumento do endividamento. Nos EUA, em 1980 a dívida agregada familiar média era em torno de 40 mil dólares (em dólares constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas. As dívidas familiares dispararam, o que demandou o apoio e a promoção de instituições financeiras às dívidas de trabalhadores, cujos rendimentos não estavam aumentando. Isso começou com a população constantemente empregada, mas no fim da década de 1990 tinha de ir mais longe, pois esse mercado havia se esgotado. O mercado teve de ser estendido para aqueles com rendimentos mais baixos. Instituições financeiras como Fannie Mae e Freddie Mac foram pressionadas politicamente para afrouxar os requerimentos de crédito para todos. As instituições financeiras, inundadas com crédito, começaram a financiar a dívida de pessoas que não tinham renda constante. Se isso não tivesse acontecido, então quem teria comprado todas as novas casas e condomínios que os promotores de imóveis com financiamento estavam construindo? O problema da demanda foi temporariamente superado, no que diz respeito à habitação, pelo financiamento da dívida dos empreendedores, assim como dos compradores. As instituições financeiras controlavam coletivamente tanto a oferta quanto a demanda por habitação! (...).
 
A mesma história ocorreu com todas as formas de crédito ao consumo para todos os produtos, desde automóveis e cortadores de grama até fácil acesso a cartões de presente de Natal na Toys 'R' Us e Wal-Mart. Todo esse endividamento era obviamente arriscado, mas isso era para ser controlado por maravilhosas inovações financeiras de securitização que, supostamente, partilharam o risco, criando a ilusão de que este tinha desaparecido. O capital financeiro fictício assumiu o controle e ninguém queria pará-lo porque todo mundo que importava parecia estar fazendo muito dinheiro. (...) Mas havia outra maneira de resolver o problema da demanda: a exportação do capital e o cultivo de novos mercados ao redor do mundo. (...) As dificuldades logo surgiram com a crise da dívida dos países em desenvolvimento da década de 1980. (...) Para que tudo isso fosse realmente eficaz, era preciso construir um sistema globalmente interligado de mercados financeiros. Dentro dos Estados Unidos, as restrições geográficas sobre o setor bancário foram retiradas passo a passo a partir do fim dos anos 1970. Até então, todos os bancos, exceto os de investimento - que foram separados judicialmente de instituições de conta corrente -, tinham sido confinados a operar dentro de um Estado, enquanto as empresas de poupança e empréstimos financiavam hipotecas, que eram separadas dos bancos de conta corrente. Mas a integração dos mercados financeiros global e nacional também foi vista como vital e isso levou, em 1986, à articulação de ações globais e mercados de negociação financeira. O "Big Bang", como foi chamado na época, conectava Londres e Nova York e imediatamente a seguir todos os mais importantes mercados financeiros mundiais (e, em última instância, locais) em um único sistema de negociação. (...) Isso não significa que não havia barreiras aos fluxos de capitais internacionais, mas barreiras técnicas e logísticas ao fluxo de capital global certamente foram muito diminuídas. O capital-dinheiro líquido podia vaguear mais facilmente pelo mundo à procura de locais onde a taxa de retorno fosse maior. A suspensão da distinção entre bancos de investimento e conta corrente nos Estados Unidos em 1999, que já estava em vigor desde a Lei Glass-Steagall de 1933, integrou ainda mais o sistema bancário em uma rede gigante do poder financeiro.
 
David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 20, 21, 22, 24 e 25)

PRIVATIZAR OS LUCROS E SOCIALIZAR OS RISCOS

A palavra neoliberalismo. Minha opinião é que se refere a um projeto de classe que surgiu na crise dos anos 1970. Mascarado por muita retórica sobre liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e as virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio, legitimou políticas draconianas destinadas a restaurar e consolidar o poder da classe capitalista. Esse projeto tem sido bem-sucedido, a julgar pela incrível centralização da riqueza e do poder observável em todos os países que tomaram o caminho neoliberal. E não há nenhuma evidência de que ele está morto. Um dos princípios básicos pragmáticos que surgiram na década de 1980, por exemplo, foi o de que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a todo custo. Esse princípio, que bateu de frente com o não intervencionismo que a teoria neoliberal prescreveu, surgiu a partir da crise fiscal da cidade de Nova York de meados da década de 1970. Foi então estendido internacionalmente para o México durante a crise da dívida que abalou os fundamentos do país em 1982. De modo nu e cru, a política era: privatizar os lucros e socializar os riscos; salvar os bancos e colocar os sacrifícios nas pessoas (no México, por exemplo, o padrão de vida da população diminuiu cerca de um quarto em quatro anos após o socorro econômico de 1982). O resultado foi o conhecido "risco moral" sistêmico. Os bancos se comportam mal porque não são responsáveis pelas consequências negativas dos comportamentos de alto risco. (...) Nos Estados Unidos, por exemplo, a renda familiar desde a década de 1970 tem em geral estagnado em meio a uma imensa acumulação de riqueza por interesses da classe capitalista. Pela primeira vez na história dos EUA, os trabalhadores não têm participação em qualquer dos ganhos de produtividade crescentes. Temos vivenciado trinta anos de repressão salarial. (...).

Da mesma forma que o neoliberalismo surgiu como uma resposta à crise dos anos 1970, o caminho a ser escolhido hoje definirá o caráter da próxima evolução do capitalismo. As políticas atuais propõem sair da crise com uma maior consolidação e centralização do poder da classe capitalista. Restaram apenas quatro ou cinco grandes instituições bancárias nos Estados Unidos, embora muitos em Wall Street estejam prosperando. (...) Alguns ricos vão perder, com certeza, mas segundo a famosa observação de Andrew Mellon (banqueiro dos EUA, secretário do Tesouro de 1921 a 1932): "Em uma crise, os ativos retornam aos seus legítimos proprietários" (ou seja, ele). E assim vai ser desta vez também, a menos que um movimento político alternativo surja para detê-lo.

David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 16 e 18)

A CRISE DO SUBPRIME

 
No outono de 2008, no entanto, a "crise das hipotecas subprime", (...) levou ao desmantelamento de todos os grandes bancos de investimento de Wall Street, com mudanças de estatuto, fusões forçadas ou falências. O dia em que o banco de investimentos Lehman Brothers desabou - em 15 de setembro de 2008 - foi um momento decisivo. Os mercados globais de crédito congelaram, assim como a maioria dos empréstimos no mundo. (...) Até o outono de 2008, tremores quase fatais já haviam se espalhado para o exterior, dos bancos aos principais credores da dívida hipotecária. As instituições de crédito Fannie Mae e Freddie Mac, licenciadas pelo governo dos Estados Unidos, tiveram de ser nacionalizadas. Seus acionistas foram destruídos, mas os portadores de títulos, incluindo o Banco Central chinês, mantiveram-se protegidos. Investidores incautos em todo o mundo, como fundos de pensão, pequenos bancos regionais europeus e governos municipais da Noruega à Florida, que haviam sido atraídos para investir em carteiras de hipoteca com "muita garantia de retorno", terminaram segurando pedaços de papel sem valor e incapazes de cumprir suas obrigações ou pagar seus empregados. (...) Os mercados de ações se desintegraram na medida em que especialmente as ações de bancos perderam quase todo o seu valor; fundos de pensão racharam sob a tensão; orçamentos municipais encolheram; e espalhou-se o pânico em todo o sistema financeiro.

Tornou-se cada vez mais claro que só um maciço plano de socorro do governo poderia restaurar a confiança no sistema financeiro. A Federal Reserve reduziu as taxas de juro a quase zero. Pouco depois da falência do Lehman, alguns funcionários e banqueiros do Tesouro, incluindo o secretário do Tesouro, que era um ex-presidente da Goldman Sachs e atual diretor executivo da Goldman, surgiram de uma sala de conferência com um documento de três páginas exigindo 700 bilhões de dólares para socorrer o sistema bancário, prenunciando um Armageddon nos mercados. (...) Algumas semanas depois, (...) o Congresso e, em seguida, o presidente George Bush cederam e o dinheiro foi enviado, sem qualquer controle, para todas as instituições financeiras consideradas "grandes demais para falir". (...) Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido destruídos. A Federal Reserve estimou em 11 trilhões de dólares a perda de valores de ativos das famílias dos EUA apenas em 2008. Naquele período, o Banco Mundial previa o primeiro ano de crescimento negativo da economia mundial desde 1945. (...).

As pessoas por trás do financiamento da catástrofe das hipotecas inicialmente pareceram não se abalar. Em janeiro de 2008, os bônus em Wall Street somaram 32 bilhões de dólares, apenas uma fração menor do que o total em 2007. Esta foi uma recompensa notável pela destruição do sistema financeiro mundial. As perdas dos que estão na base da pirâmide social quase se igualaram aos extraordinários ganhos dos financistas na parte superior. (...) Os principais gestores de fundos de cobertura em Nova York tiveram remunerações pessoais de 250 milhões de dólares cada em 2005, enquanto em 2006 o gestor mais bem-sucedido fez 1,7 bilhão de dólares e, em 2007, que foi um ano desastroso nas finanças globais, cinco deles (incluindo George Soros) ganharam 3 bilhões de dólares cada.

David Harvey (O Enigma do Capital; págs: 10, 12, 13 e 44)

21 de fevereiro de 2015

APRENDENDO COMO APRENDER

Uma das reclamações mais frequentes de quem estuda e trabalha com pesquisa e inovação é a dificuldade de se concentrar, ter ânimo para fazer o que não gosta e manter o foco. Isso tem se agravado mais ainda com a instantaneidade dos meios de comunicação e com o bombardeio de informações que recebemos diariamente, especialmente com o grande número e a facilidade de acesso às redes sociais. Conhecer mais sobre formas e técnicas de aprendizado é fundamental para quem procura estudar e trabalhar de forma mais eficiente e eficaz, especialmente quando o volume de conteúdo é grande ou quando se trabalha com inovação. Uma das principais lições para quem quer aprender algo novo e/ou complexo é a de que o conhecimento é construído passo a passo, é preciso caminhar e praticar gradualmente para dominar determinada habilidade ou competência. Sem levar isso em consideração, o processo de aprendizado poderá ser frustrante, especialmente quando não se consegue obter resultados rápidos, o que geralmente acontece com quem estuda para concursos e não se sai bem nas primeiras provas.

Um dos problemas mais enfrentados pela nossa geração é a procrastinação. Procrastinar não necessariamente é uma falha de caráter como muitos podem pensar, mas é algo que tem uma origem psicológica forte. Quando vemos algo que realmente não queremos fazer, ativamos áreas do nosso cérebro associadas a dor. O cérebro, naturalmente, busca uma maneira de parar essa estimulação negativa mudando nossa atenção para algo diferente (não é à toa que, às vezes, organizar a escrivaninha de diversas formas antes de começar a estudar parece muito mais interesse do que realmente começar a estudar). O que os neurocientistas vêm percebendo, contudo, é que, quando começamos a fazer aquilo que ela a priori não queríamos, mas precisamos fazer, geralmente aquele desconforto desaparece.

Uma das formas de trabalhar para superar a procrastinação é se valer de um método que ficou conhecido como “Técnica Pomodoro”, criado por Francesco Cirillo na década de 1980. Pomodoro é uma palavra italiana que significa tomate e foi usada porque o cronometro utilizado pelo criador se assemelhava a um tomate. O que essa técnica propõe ao usuário é marcar um tempo, desligar-se de todas as interrupções (celular, Internet, televisão e tudo o mais que possa servir como distração da meta), e focar no que realmente se quer/precisa fazer. Ao finalizar o período de tempo proposto, é necessário se dar uma pequena recompensa (alguns minutos na Internet, um lanche, uma conversa, uma música, um momento sem fazer nada), permitindo ao cérebro desfrutar uma momentânea mudança de foco. A utilização da Técnica Pomodoro é realmente efetiva e o tempo de “trabalho/estudo focado” pode variar de acordo com a capacidade de concentração. Como sugestão, trabalhar com blocos de 30 a 50 minutos de foco combinados com 5 a 10 minutos de descanso é uma ótima forma de começar.

Assim, preparar-se para estudar ininterruptamente por 50 minutos e se dar 10 minutos de descanso é uma ótima forma de utilizar blocos de tempo focado em aprendizado. Não é à toa que a maioria das escolas trabalha com tempos de aula baseados em 50 minutos, já que esse é considerando um tempo satisfatório para manter o cérebro focado no aprendizado de algo. O erro de muitas escolas, contudo, é não permitir ao estudante ter uma breve pausa após esses 50 minutos, já que a maioria emenda uma aula após a outra, causando cansaço e estresse mental. Trabalhar com blocos de tempo é uma das melhores maneiras de se tornar produtivo, já que a quantidade de tempo dedicada à determinada atividade se torna facilmente aferível e, o melhor, garante que o trabalho foi feito sem perder o foco.

Outro pronto fundamental para melhorar a eficiência do aprendizado é praticar as ideias e os conceitos que diariamente aprendemos, de forma a contribuir para o aumento e o fortalecimento das conexões neurais feitas durante o processo de aprendizado. Quando começamos a entender algo, por exemplo, um padrão neural é criado e passa a existir no cérebro, mas de forma muito fraca. Quando repassamos o que foi estudado sem cortar caminho (ou seja, rever o assunto sem fazer grandes cortes), aquele padrão neural começa a se aprofundar. Em seguida, quando começamos a ter mais segurança sobre o tema e conseguimos repassá-lo de forma completa e concisa na nossa mente sem precisar rever tudo o que foi estudado, somado à realização de exercícios sobre o tema, o padrão neural, então, se torna permanente, permitindo que o cérebro acesse a informação com mais facilidade quando ela for necessária.

Por isso, quando se está aprendendo, é preciso estudar/trabalhar de forma focada e intensa por um período de tempo, desligando-se de todas as distrações. A dedicação deve ser sincera e aferível. Depois, é preciso ter uma pausa ou pelo menos uma mudança de foco temporária para algo diferente daquilo que estava sendo. Durante esse tempo de aparente relaxamento, o cérebro terá a chance de trabalhar em plano de fundo e ajudar na concepção do que precisa ser entendimento.

Algum tempo depois será necessário voltar a revisar o assunto estudado, fazendo uma recapitulação rápida/resumida do que foi visto, puxando pela memória as principais ideias e temas estudados, e, principalmente, testando o que foi aprendido com exercícios. Isso permitirá que o cérebro naturalmente considere aquelas ideias relevantes e aprofunde ainda mais o padrão neural criado. Ou seja, revisar o que é importante é fundamental para criar uma linha de conexão mais rápida a determinado conhecimento. Essa revisão, contudo, não deve ser feita em curtos espaços de tempo, mas de forma espaçada de acordo com o tempo que se tem para aprender algo com qualidade. Assim, é melhor estudar um tema 2 horas por dia e 3 dias por semana do que estudar esse mesmo tema 6 horas em 1 dia. Dividir o que precisa ser aprendido em uma escala de tempo pausada é uma das melhores formas de permitir que seu cérebro “acomode” o que foi aprendido. Revisar periodicamente um assunto importante é de suma importância.

Em terceiro lugar, é importante dormir.

Pode ser surpreendente, mas o simples fato de estarmos acordados faz com que nosso cérebro produza resíduos tóxicos. E como o cérebro se livra disso? Enquanto dormimos. Sim, enquanto dormimos a atividade cerebral diminui e as células do nosso cérebro encolhem, o que aumenta o espaço entre elas, permitindo que os fluidos cerebrais fluam entre esses espaços e levem as toxinas. Então, dormir, o que para alguns (e eu me incluo aqui algumas vezes) parece uma grande perda de tempo, na verdade é o modo como o cérebro se mantém limpo e saudável. Dormir pouco uma vez ou outra não afetará de forma substancial a performance de aprendizado, mas não ter períodos regulares de sono por muito tempo fará com que o cérebro mantenha acumuladas toxinas que o impedirão de raciocinar com clareza e aprender com eficiência.

Dormir faz mais do que simplesmente se livrar de algumas toxinas. De fato, descansar é parte fundamental do processo de aprendizado e memorização. Enquanto dormimos, nosso cérebro liga as ideias e os conceitos sobre os quais pensamos e aprendemos, apagando as partes menos importantes da memória recente e simultaneamente fortificando áreas que precisamos ou queremos lembrar. Durante o sono, o cérebro repete algumas das partes mais difíceis do que quer que estejamos tentando aprender, passando e repassando os padrões neurais recentemente formados na tentativa de aprofundá-los e fortificá-los.

Dormir também faz uma grande diferença na capacidade de resolver problemas difíceis e compreender o que estamos tentando aprender. Isso acontece porque com o cérebro relaxado, torna-se mais fácil flexibilizar os conceitos aprendidos e juntar padrões neurais diferentes para buscar a solução para as dificuldades de aprendizado. É por isso que problemas aparentemente complexos ou insolúveis se tornam mais claros e acessíveis após um período de sono, quando o cérebro, anteriormente frustrado com a dificuldade de resolução, utilizou o tempo de descanso para ligar memórias e conhecimentos aprendidos em prol da resolução de uma questão complexa.

É claro que tudo isso sobre dormir só funciona se houve dedicação para aprender e o trabalho duro tiver sido feito antes de ter o momento de descanso e dormir. Então, nada de ficar buscando desculpas para dormir desenfreadamente, durma de acordo com as necessidades razoáveis de descanso e aproveite para fixar e aprofundar padrões neurais de aprendizado de qualidade. O sono é uma grande ferramenta de aprendizado quando efetivamente nos dedicamos a aprender/criar algo enquanto estávamos acordados e desejamos fixar na memória.

Por isso, mesmo quem pensa sobre algo que estudou ou aprendeu ao longo do seu dia antes de ir dormir, tem um aumento nas chances de sonhar com isso. Se formos ainda mais adiante e colocarmos na cabeça que queremos sonhar com aquilo, aumentamos ainda mais as chances de sonhar e pensar sobre tais questões enquanto dormimos. Por isso, quem quer pensar melhor sobre algo complexo e de difícil solução, utilizar o sono pode ser uma boa ferramenta após um dia de trabalhado em cima dessa questão complexa.

Tudo o que foi dito, por óbvio, deve ser adaptado às peculiaridades de cada pessoa, especialmente no que se refere ao ritmo de aprendizado, aos objetivos e à própria superação de limitações pessoais, o que pode exigir tempo e dedicação diferenciadas. Essas ideias são em grande parte aplicáveis para as pessoas que têm uma “rotina” de aprendizado e quer se tornar mais eficiente, focado, metódico e menos procrastinador.

Saber aprender de forma mais eficiente e eficaz não só garante efetividade ao aprendizado e economia de tempo, mas permite-nos explorar da melhor forma nosso potencial cognitivo e nossa capacidade de realizar atividades produtivas com qualidade e celeridade. Quem desejar utilizar dessas técnicas nos estudos ou no trabalho poderá contar com resultados bastante animadores em pouco tempo, especialmente no rendimento das atividades realizadas.

20 de fevereiro de 2015

TALVEZ EU ENSINE O CAVALO A CANTAR!

Segundo uma velha história, uma homem condenado à forca por ofender o sultão sugeriu um acordo para o tribunal: Se eles lhe dessem um ano, ele ensinaria o cavalo do sultão a cantar, e ganharia a liberdade; se fracassasse, iria para a forca sem reclamar. Quando ele voltou à cela, um outro prisioneiro disse: "Você ficou maluco?". O homem respondeu: "Pensei: ao longo de um ano, muita coisa pode acontecer. Talvez o sultão morra, e o novo sultão me perdoe. Talvez eu morra; nesse caso não terei perdido nada. Talvez o cavalo morra; aí vou estar livre. E vai saber. Talvez eu ensine o cavalo a cantar!".

Steven Pinker (Do Que é Feito o Pensamento; pág: 451)

O HOMEM IMPLICATURA

Infelizmente, ele não sabe se o guarda é desonesto e vai aceitar a propina ou se é honesto e vai prendê-lo por tentativa de suborno. Qualquer cenário desse tipo, em que o melhor curso de ação depende das escolhas de outro ator, faz parte do território da teoria dos jogos. Na teoria dos jogos, o problema em que um ator não sabe quais são os valores do outro já foi explorado por Thomas Schelling, que o chama de Problema de Identificação. (...) A atratividade de cada escolha é determinada pela soma da recompensa, (...) considerando o peso de suas probabilidades. (...) Se o motorista não tentar subornar o guarda, não faz diferença quão honesto é o guarda; de qualquer jeito, o motorista é multado. Quem não arrisca não petisca. Mas, se ele oferecer o suborno, há muito mais coisa em jogo. Se o Homem Máxima é sortudo e está diante de um guarda desonesto, o guarda vai aceitar o suborno e deixá-lo ir embora sem multa. Mas, se ele é azarado e está diante de um guarda honesto, será algemado e preso por suborno. A escolha racional entre subornar e não subornar vai depender da dimensão da multa, da proporção de bons e maus guardas nas estradas e das punições para o suborno, mas nenhuma das opções é atraente, O Homem Máxima se vê entre a cruz e a espada.

Mas pense agora em um outro motorista, o Homem Implicatura, que sabe como insinuar um suborno ambíguo, como em "Talvez o melhor seja resolver as coisas aqui mesmo". Imagine que ele sabe que o guarda entende a implicatura e a reconhece como sugestão de suborno, e também sabe que o policial sabe que ele não poderia acusá-lo judicialmente de suborno porque o palavreado ambíguo impediria a promotoria de comprovar sua culpa. (...) Também temos de levar em conta o ponto de vista de um guarda honesto e o sistema judicial a que ele serve. Por que um guarda honesto não prende quem faz uma oferta de suborno velada? (...) Para explicar porque o guarda não prende as pessoas que insinuam um suborno, o que tornaria a implicatura tão perigosa quanto um suborno descarado, temos de pressupor duas coisas, ambas razoáveis. Uma é que, se todos os motoristas desonestos dão declarações que podem (corretamente) ser interpretadas como subornos implícitos, há alguns motoristas honestos que dão declarações assim também, só que como observações inocentes. Assim, qualquer prisão pode ser uma prisão injusta, A segunda pressuposição é que uma prisão malsucedida é prejudicial, pois sujeita o guarda à acusação de prisão indevida e o departamento de polícia a punições.

Se a declaração parecer mais uma afirmação inócua que muitos motoristas poderiam fazer (ou, pelo menos, o bastante para que um júri fosse incapaz de condenar o falante por aquelas palavras), a chance de condenação cai, o risco de prisão aumenta. (...) E é aí que o Homem Implicatura consegue influenciar o guarda. Ele pode formular a declaração de modo que um guarda desonesto a detecte como insinuação de propina, mas que um guarda honesto não tenha como ter certeza (ou pelo menos não possa arriscar). (...) O Homem Implicatura está manipulando as opções do guarda honesto para se beneficiar, e para prejudicar o guarda.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 446, 447 e 448)

A FUNÇÃO DA DELICADEZA

Fazer um pedido coloca o ouvinte numa posição em que ele pode ter de dizer não, o que lhe renderia a reputação de mesquinho e egoísta. (...) Não é de surpreender que a primeira coisa que saia dos nossos lábios quando falamos com um estranho seja um pedido de perdão: Excuse me. Mas apesar das muitas maneiras em que o falante pode pisar em calos, ele não tem como ficar o tempo todo medindo as palavras. As pessoas precisam levar a vida, e junto têm de fazer pedidos e reclamações, assim como dar notícias. A solução é contrabalançar com a delicadeza: o falante adoça suas afirmações com expressões educadas que reafirmam sua preocupação com o ouvinte ou que reconhecem a autonomia do ouvinte. (...) As perguntas fingidas sobre o bem-estar das pessoas.

A explicação subjacente é que o ouvinte não recebe uma ordem nem um pedido, mas uma pergunta ou uma orientação sobre uma das condições necessárias para que passe o sal. Se o ouvinte não quisesse atender o pedido ou a ordem, poderia exercer sua prerrogativa de não fazê-lo, sem precisar proferir uma recusa que ameace as aparências. (...) Só que ninguém acha de verdade que quem quer o sal e quem passa o sal vão pensar em todas essas deduções enquanto negociam a questão do saleiro. A esta altura da história da língua, as implicaturas já se fossilizaram na forma de convenções. Fórmulas como (...) [Você pode me passar o sal?] perderam a transparência, como expressões e metáforas mortas, e são usadas como pedidos diretos.

O nível de polidez é ajustado dependendo do nível de ameaça às aparências do ouvinte. O nível de ameaça, por sua vez, depende do tamanho da imposição, da distância social do ouvinte. (a falta de intimidade ou solidariedade) e da diferença de poder entre falante e ouvinte. As pessoas puxam mais o saco quando estão pedindo um favor maior, quando o ouvinte é um estranho e quando o ouvinte tem mais status ou poder que elas. (...) Assim, os pedidos costumam ser acompanhados de várias formas de auto-rebaixamento:

Perguntar em vez de mandar. (...) [Você me empresta o seu carro?].
Expressar pessimismo: (...) [Acho que você não gostaria de fechar a janela].
Restringir o pedido: (...) [Feche a porta, se puder].
Minimizar a imposição: (...) [Só quero um pouquinho de papel emprestado].
Hesitar: (...) [Posso, hã, pegar sua bicicleta emprestada?].
Reconhecer a infração: (...) [Sei que você está ocupado, mas...].
Indicar relutância: (...) [Normalmente eu não pediria isso, mas...].
Pedir desculpas: (...) [Desculpe incomodar, mas...].
Usar formas impessoais: (...) [Não é permitido fumar].
Reconhecer a dívida: (...) [Ficaria eternamente grato se você...].

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 433, 435, 436 e 442)

O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

Os falantes aderem tacitamente a um "Princípio de Cooperação", disse ele [Grice]: Eles ajustam suas afirmações para o objetivo e a direção momentâneos da conversa. A operação exige que eles monitorem o conhecimento e as expectativas do interlocutor e prevejam a reação dele a suas palavras. [Paul] Grice resumiu o Princípio da Cooperação em quatro "máximas" conversacionais, que são os mandamentos que as pessoas seguem tacitamente (ou deviam seguir) para fazer a conversa fluir com eficiência:

Quantidade:
* Não diga nada menos do que a conversa exige.
* Não diga nada a mais do que a conversa exige.

Qualidade:
* Não diga o que você acha ser falso.
* Não diga coisas para as quais não tem provas.

Modo:
* Não seja obscuro.
* Não seja ambíguo.
* Seja breve.
* Seja organizado.

Relevância:
* Seja relevante.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; pág: 429)

PALAVRÃO!

Como os tabuísmos evocam detalhes carnais na cabeça dos ouvintes e leitores, eles costumam ser usados na pornografia e na receita de excitação de muitos adultos que, no sexo consentido, pedem para o parceiro "falar sacanagem". (...) Os palavrões são a linguagem escolhida em muitos círculos dominados por homens da classe trabalhadora. Um dos motivos é que o palavrão, que obriga o ouvinte a pensar em coisas desagradáveis, é levemente agressivo, portanto combina com outros apetrechos que os homens exibem em ambientes turbulentos para mostrar que são capazes de infligir e de suportar a dor (coturnos, tachas de metal, músculos à mostra, e assim por diante). Outro motivo é que a disposição evidente de romper tabus transmite uma atmosfera de informalidade, de liberdade de não ter de se preocupar com o que diz. É claro que nas décadas mais recentes o palavrão se expandiu para as mulheres e para a classe média. (...) A moda faz parte de uma tendência mais ampla no século XX na direção da informalidade, da igualdade e da disseminação do estilo machão de ser e do estilo "maneiro".

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 400 e 401)

CONFLITO SEXUAL

Ainda mais aguçado que os conflitos sexuais entre jovens e mais velhos e entre indivíduos e a sociedade é o conflito entre homens e mulheres. Somos mamíferos, herdamos a assimetria que marca a classe: em todo ato reprodutivo, as fêmeas ficam comprometidas com longos períodos de gestação e lactação, enquanto os machos só precisam de uns poucos minutos de cópula. O macho pode ter uma prole maior se cruzar com várias fêmeas, enquanto a fêmea não vai ter uma prole maior se cruzar com vários machos - embora seus filhotes tenham um melhor desenvolvimento se ela escolher um parceiro disposto a investir neles ou que possa dotá-los de bons genes. Não surpreende que em todas as culturas os homens corram mais atrás de sexo, estejam mais dispostos a fazer sexo sem compromisso e sejam mais propensos a seduzir, enganar ou coagir para conseguir sexo. Sem levar em conta outras circunstâncias, o sexo sem compromisso favorece os homens, tanto genética quanto emocionalmente. Era de esperar que a fala descompromissada sobre sexo mostrasse a mesma assimetria, e é o que acontece. Os homens falam mais palavrão, na média, e muitos tabuísmos sexuais dão a sensação de ser especialmente degradantes para as mulheres - daí a antiga proibição de falar palavrão "quando há senhoras no recinto". (...) Embora as pessoas estejam mais dispostas a ver sexo, falar sobre sexo e fazer sexo hoje que no passado, o tema não está livre de tabu. A maioria das pessoas não copula em público, não faz troca de parceiros depois de um jantar, não mantém relações sexuais com irmãos e filhos nem troca abertamente favores por sexo. Mesmo depois da revolução sexual, ainda falta muito para que "exploremos nossa sexualidade" em toda a sua plenitude, e isso significa que as pessoas ainda instalam barreiras na mente para bloquear a passagem de determinados pensamentos. A linguagem do sexo pode esbarrar nesses bloqueios.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 396 e 397)

19 de fevereiro de 2015

NÃO DIZER O NOME DO SENHOR EM VÃO

Para entender os palavrões, portanto, temos de analisar que tipo de pensamento desagrada às pessoas, e por que uma pessoa quereria infligir esses pensamentos a outra. A raiz histórica dos palavrões no inglês e em muitas outras línguas está, por mais estranho que pareça, na religião. Vemos isso no terceiro mandamento, na popularidade de hell (inferno), damn (maldição), God (Deus) e Jesus Christ, e em muitos termos para a própria linguagem dos tabus: profanidade (aquilo que não é sagrado), blasfêmia (literalmente "fala do diabo", mas na prática desrespeito a uma divindade) e swearing [xingar], cursing [praguejar] e oaths [maldições/juramentos], que surgiram originalmente com a invocação de uma divindade ou de um de seus símbolos, como o tabernáculo, o cálice e a hóstia estranhamente presentes na maledicência católica.

A amenização dos tabuísmos religiosos é consequência óbvia da laicização da cultura Ocidental. Como afirmou G.K. Chesterton, "A blasfêmia em si não pode durar mais que a religião; se alguém duvidar, que tente blasfemar Odin". Para entender os vulgarismos religiosos, portanto, temos de nos colocar na pele dos nossos ancestrais linguísticos, para quem Deus e o inferno eram presenças reais.

Imagine, por exemplo, que você tem de fazer uma promessa. Por que o alvo da promessa deveria acreditar em você, sabendo que você sairia ganhando se não a cumprisse? A resposta é que você pode se submeter a uma contingência que lhe importa uma penalidade se você desonrasse a promessa, de preferência uma pena tão certa e severa que fizesse com que você sempre preferisse cumprir a palavra. Dessa maneira, seu parceiro não precisa confiar só na sua palavra; pode confiar no seu interesse próprio. Mas, antes de existir tal aparato legal e comercial para garantir nossos contratos, éramos os responsáveis por nossa própria punição. As crianças ainda selam suas promessas dizendo "I hope to die if tell a lie" [Que eu morra se mentir]. Os adultos faziam a mesma coisa, invocando a ira divina.

É claro que esse tipo de promessa tinha muito mais credibilidade numa época em que as pessoas achavam que Deus ouvia suas súplicas e tinha o poder de concretizá-las. Ao mesmo tempo, toda vez que alguém renega uma promessa e não é punido pelo chefão lá de cima, isso lança dúvidas sobre a existência e o poder dele, ou pelo menos sobre se ele está mesmo prestando atenção. Os representantes terrenos de Deus se apressam então a preservar a crença de que ele ouve, sim, e toma providências em questões importantes, e não gostam nada quando as pessoas enfraquecem a marca invocando Deus como a força que move coisinhas pequenas. Daí a proibição de dizer o nome do Senhor em vão. Até hoje, as testemunhas nos tribunais norte-americanos têm de jurar sobre a bíblia, como se um ato de perjúrio que passasse incólume pelo sistema judicial fosse ser punido por um Deus que a tudo ouve e que se ofende fácil.

A santidade de uma relíquia religiosa é um construto social que só existe se for tratado com temor e reverência por todos dentro da comunidade. Isso exige um controle mental coletivo para que ninguém olhe para uma coisa sagrada como se ela não tivesse importância, nem pense nela ou fale sobre ela à toa. Se as pessoas juram por uma entidade sagrada a torto e a direito, o caráter sagrado fica ameaçado pela inflação semântica, e as autoridades que baseiam seu poder nesse caráter tomarão providências para evitar que isso aconteça.

O fato de ser literalmente inconcebível trair alguém íntimo ou um aliado é a base da psicologia dos tabus em geral, e é essa visão de mundo que sustenta o juramento sobre coisas sagradas, seja uma punição religiosa ou a vida de um filho.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 387, 388 e 389)

TABUÍSMOS!

O psicólogo Don Mackay fez o experimento, e observou que as pessoas realmente ficam mais lentas devido a um desconcerto involuntário assim que seus olhos batem em cada palavra. O resultado é que um falante ou escritor pode usar um tabuísmo para evocar uma resposta emocional no público bem contra a vontade dele. Algumas empresas exploraram esse efeito dando a seus produtos nomes semelhantes a tabuísmos para chamar a atenção das pessoas, como a rede de restaurantes chamada Fuddruckers, a marca de roupas FCUK (French Connection UK) e o filme chamado Meet the Fockers (Entrando numa fria maior ainda)

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; pág: 380)

17 de fevereiro de 2015

AÇÃO-REAÇÃO SOCIAL

Em seu livro Micromotives and macrobehavior [Micromotivos e macrocomportamento], de 1978, Thomas Schelling chamou a atenção para muitos fenômenos sociais que são imprevistos e muitas vezes indesejáveis, mas que aparecem quando as pessoas fazem escolhas individuais que afetam as escolhas dos outros. Um exemplo é como uma cidade pode ficar segregada, não por causa de uma política de apartheid e não porque todo mundo só queira morar com pessoas de sua própria raça, mas porque ninguém quer ficar em minoria muito pequena dentro de seu bairro. À medida que cada família se muda para evitar esse tipo de marginalidade, elas passam a fazer parte de vizinhança de outras famílias, o que afetará as decisões delas, e assim por diante. No final, podem surgir bairros só de negros ou só de brancos, sem que eles tenham sido planejados nem desejados. Outro exemplo é o modo como uma faixa de trânsito pode ficar congestionada quando cada motorista reduz a velocidade por alguns segundos para espiar o local de um acidente - uma troca que nenhum deles teria aceitado se tivesse tido a chance de combinar seu comportamento com antecedência. Schelling observa como esses padrões surgem sempre que as decisões isoladas são interdependentes: Se seu problema é que há trânsito demais, você faz parte do problema. Se você se junta à multidão porque gosta da multidão, faz a multidão crescer. Se tira seu filho da escola por causa dos outros alunos da escola, tira um aluno da escola deles. Se levanta a voz para se fazer ouvir, colabora para o barulho que as outras pessoas estão tentando superar elevando a voz delas. Quando você corta o cabelo bem curto você muda, mesmo que só ligeiramente, a impressão das pessoas sobre o comprimento de cabelo que as pessoas estão usando.

No seu recente best-seller O ponto de desequilíbrio, o jornalista Malcolm Gladwell aplica a idéia de Schelling a tendências sociais recentes como as mudanças nas taxas de analfabetismos, criminalidade, suicídio e tabagismo na adolescência. Em todos os casos, costuma-se atribuir a tendência a forças sociais externas como a propaganda, programas governamentais ou personalidades que servem de exemplo. E em todos os casos o que realmente moveu a tendência foi uma dinâmica interna de escolhas e influências individuais e a reação a elas. O nome dos bebês, e das coisas em geral, é mais um exemplo de um fenômeno social em grande escala - a composição de uma língua - que surge de forma imprevisível a partir de várias escolhas isoladas que se influenciam umas às outras.

Steven Pinker (Do Que é Feito o Pensamento; págs: 366 e 367)

14 de fevereiro de 2015

MODA E CULTURA

Victoria Lobo

Os nomes passam por ciclos de sucesso e esquecimento. Só com o prenome da pessoa, a maioria dos observadores é capaz de adivinhar sua idade aproximada com uma precisão que supera em muito a mera sorte. Uma Edna, Ethel ou Bertha é uma senhora idosa; uma Susan, Nancy ou Debra é uma integrante do baby boom entrando na terceira idade; uma Jennifer, Amanda ou Heather tem trinta e poucos anos; e uma Isabella, Madison ou Olivia é criança. Os nomes das meninas mudam bem mais rápido que os dos meninos: Robert, David, Michael, William, John e James nunca vão embora. (...) O sociólogo Stanley Lieberson (...) analisou a correlação entre a ascensão e a queda de nomes de bebês e o aparecimento e desaparecimento de pessoas famosas, reais e fictícias, aos olhos do público. Em quase todos os casos ele notou um pequeno destaque no nome antes de a celebridade aparecer em cena. Muitas vezes o nome famoso acaba levando o nome a novos níveis. (...) Marylin, por exemplo, era um nome bastante popular nos anos 1950, e muita gente apontaria para uma explicação óbvia: a fama de Marylin Monroe. Infelizmente para a teoria, o nome tinha começado a crescer décadas antes e já era popular quando Norma Jeane Baker o adotou como nome artístico em 1946. Na verdade, a popularidade de Marylin chegou a cair depois da fama de Monroe. Aqui as pessoas acham que ela deve ter causado a queda: os pais não iam querer batizar suas filhinhas com o nome de um símbolo sexual bem na época do pudor suburbano dos anos 1950 ou do feminismo nascente dos anos 1960. Errado de novo - o nome tinha chegado ao ápice na década de 1930 e já estava em declínio quando Marylin Monroe surgiu em cena.

Nos anos 1930, Herbert caiu e Franklin subiu, e desde então. Adolf desapareceu, por motivos óbvios. Mas em geral a contaminação por nomes de famosos é uma ilusão cognitiva. As pessoas lembram um caso ou dois em que um nome ficou famoso por causa de uma celebridade e o mesmo nome foi dado a muitos bebês, e concluem que o primeiro fenômeno causou o segundo. (...) O feminismo pode parecer uma motivação mais promissora, mas mesmo aqui os efeitos são discutíveis. Alguns nomes de menina inspirados em flores, por exemplo, decaíram desde os anos 1970 (Rose, Violet, Daisy), mas outros ganharam popularidade (Lily, Jasmine). Também dá para escolher a moda que se quiser quando se observa a popularidade dos nomes de menina que são diminutivos de nomes de menino: alguns caem, como Roberta, Paula e Freda, enquanto outros crescem, como Erica, Michaela, Brianna e, claro, Stephanie.

Até a década de 1960 a maior parte dos homens usava chapéu em público; hoje praticamente ninguém usa. O que aconteceu? Não são poucas as explicações. John F. Kennedy inaugurou a tendência ao ir sem chapéu a sua cerimônia de posse. As pessoas se mudaram para os subúrbios e passaram a ficar muito tempo dentro do carro, portanto não tinham tanto frio na cabeça, e além disso é esquisito ficar entrando e saindo do carro de chapéu. Os homens deixaram o cabelo crescer como forma de auto-expressão e não queriam escondê-los, ou, pior, sofrer do desagradável mal de cabelo achatado. Cresceu a ênfase no natural, e os chapéus representavam a incompletude da natureza. Os chapéus estavam associados ao establishment político, e a geração mais jovem se rebelou contra ele. A cultura começou a idolatrar a juventude, e os chapéus eram associados a homens mais velhos.

Lieberson argumenta que temos que repensar o modo como pensamos as mudanças culturais. "Tendência" é a abreviação do efeito conjunto da tomada de decisões pessoais de milhões de homens e mulheres, que prevêem as decisões tomadas por outras pessoas e reagem a elas. Isso cria uma dinâmica interna de mudança - o uso de chapéu num ano afeta o uso de chapéu no ano seguinte - e tendências que têm uma lógica só sua, e não se encaixam em nenhuma narrativazinha sobre as escolhas da sociedade como um todo. Muitas modas - o comprimento das saias, a largura das lapelas, rabos-de-peixe, barba e, claro, nomes - passam por ondas pouco perceptíveis de crescimento e queda, em vez de assaltos abruptos de um nível para outro ou do caos cheio de picos do mercado de ações. (...) O economista Thorstein Veblen e o crítico de arte Quentin Bell observaram que os ciclos da moda podem ser explicadas pela psicologia do status. A elite quer se diferenciar da ralé e para isso usa seus acessórios mais visíveis, mas aí o pessoal da próxima camada social tenta imitá-los, e a mesma coisa com a camada abaixo dela, até que o estilo tenha descido até as massas. Quando isso acontece, a elite adota um novo visual, que faz a burguesia imitá-la, e a classe média baixa, e assim por diante, num interminável sobe-e-desde da moda. (...) Sempre que a moda muda de direção, os criadores de tendência introduzem outra mudança ao mesmo tempo, para que as saias, barbas ou pára-lamas não sejam confundidos com o modelo da década anterior.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 357, 358, 359, 360, 361 e 362)

O NOME DA MARCA

Antes, as empresas batizavam suas marcas com o nome de seus fundadores (Ford, Edison, Westinghouse), ou com uma expressão que transmitisse sua imensidão (Genral Motors, United Airlines, U.S. Steel), ou com uma composição que identificasse uma nova tecnologia (Microsoft, Instamatic, Polavision), ou com uma metáfora ou metonímia que conotassem uma característica que quisessem se atribuir (Impala, Newport, Princess, Trailblazer, Rebel). Mas hoje elas tentam transmitir sabe-se-lá-o-quê usando um grego fajuto e neologismos latinizados, construídos a partir de fragmentos de palavras que supostamente têm a conotação de certas qualidades, sem mostrar às pessoas do que se trata. A gente se solidariza com o espanto de Griffy, o alter ego do cartunista. Acura - Acurado? Agudo? O que isso tem a ver com um carro? Verizon - Um horizonte verídico? Será que significa que um bom serviço telefônico ficará para sempre à distância? Viagra - Virilidade? Vigor? Viável? Devemos achar que ele vai fazer os homens ejacularem como as cataratas do Niágara? O exemplo mais flagrante é a mudança do nome da Philip Morris para Altria, supostamente para mudar sua imagem de gente malvada que vende carcinógenos viciantes para um lugar ou um estado marcados pelo altruísmo e outros valores elevados.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; pág: 347)

SIMBOLISMO SONORO

Qual desses é o malooma e qual é o takata?



A maioria das pessoas acha que o takata é a coisa da esquerda, porque a forma cheia de pontas as remete aos sons entrecortados, e o malooma é a coisa da direita, porque a forma arredondada remete a sons arredondados.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; pág: 343)

A ORIGEM DA PALAVRA "FUCK"

Na Inglaterra antiga, as pessoas não podiam manter relações sexuais sem o consentimento do rei (a menos que pertencessem à família real). Quando alguém queria ter filhos, obtinha o consentimento do rei e este lhe dava uma placa, que era pendurada na porta enquanto o casal mantinha relações sexuais. A placa dizia F.U.C.K. (Fornication Under Consent of the King [Fornicação com o consentimento do rei]).

Steven Pinker (Do Que é Feito o Pensamento; pág: 339)

LÍNGUA

Acho que a metáfora é, sim, a chave para explicar a relação entre pensamento e língua. A mente humana vem equipada da capacidade de penetrar a couraça de aparência sensorial e discernir a construção abstrata que está debaixo dela - nem sempre quando se quer, e não de forma infalível, mas com a frequência e a clarividência suficientes para moldar a condição humana. Nosso poder de analogia nos permite aplicar estruturas neurais antiquíssimas a matérias recém-descobertas, desnudar leis e sistemas ocultos na natureza e, não menos importante, ampliar o poder de expressão da própria língua. A língua, por sua própria estrutura, pode parecer um instrumento com uma funcionalidade definida e limitada. Com um estoque finito de signos arbitrários, e regras gramaticais que os organizam em orações, a língua nos dá meios de trocar um número ilimitado de combinações de idéias sobre quem fez o que a quem, e sobre o que está onde. E, no entanto, ao digitalizar o mundo, a língua é um meio que implica perdas, que descarta informações sobre a textura suave e multidimensional da experiência. A língua é notoriamente falha, por exemplo, para transmitir a sutileza e a riqueza de sensações como cheiros e sons. E parece, à primeira vista, tão inepta quanto para transmitir outros canais de sensibilidade que não sejam compostos de elementos acessíveis e independentes. Flashes de sacadas holísticas (como os da matemática ou da criatividade musical), ondas de emoção que consomem a pessoa e momentos de contemplação melancólica simplesmente não são o tipo de experiência que possa ser captada pela sequência de contas num fio a que chamamos orações.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; pág: 317)

AMBIGUIDADE MORAL

Outra distinção da dinâmica das forças, aquela entre causar e deixar, permeia profundamente nosso raciocínio moral. A diferença fica evidente no problema do vagão, um famoso experimento mental proposto pela filósofa Philippa Foot que é há muito tempo assunto de debates entre filósofos da moral. Um vagão em disparada e sem controle avança na direção de cinco funcionários da ferrovia, que não o vêem se aproximar. Você está no controle de um desvio e pode mandar o vagão para outro trilho, embora lá ele vá matar um único trabalhador, que também não sabe do perigo. Deveria você salvar cinco vidas à custa de uma desviando o vagão? A maioria das pessoas diz que sim - não apenas leitores de revistas filosóficas balançando a cabeça em sinal de aprovação, mas, num experimento colossal comandado por Marc Hauser, quase 90% das 150 mil pessoas em mais de cem países, que se ofereceram como voluntários para pensar no dilema e compartilhar suas intuições na página dele na internet.

Imagine agora que você está numa ponte sobre os trilhos e viu que o vagão descontrolado avança na direção dos cinco trabalhadores. Agora o único jeito de contê-lo é jogar um objeto pesado em seu caminho. E o único objeto pesado ao alcance é um homem gordo que está perto de você. Deveria você jogar o homem ponte abaixo? Os dois dilemas apresentam a opção de sacrificar uma vida para salvar cinco e, assim, sob certo aspecto, são equivalentes em termos morais. Mas a maioria das pessoas pelo mundo discorda. Embora elas acionassem o desvio no primeiro dilema, não arremessariam o homem gordo no segundo. (...) Joshua Greene, que é filósofo e neurocientista da cognição, sugere que as pessoas são equipadas com uma repulsa moldada pela evolução a maltratar um ser humano inocente, e que isso supera qualquer cálculo utilitarista que contabilize vidas salvas ou perdidas. O impulso contra o uso de violência contra uma pessoa explicaria outros exemplos em que as pessoas se recusam a matar um para salvar muitos, como fazer eutanásia num paciente para coletar seus órgãos e salvar cinco pacientes moribundos que dependem de transplantes, ou sufocar um bebê num esconderijo de guerra para evitar que seu choro atraia soldados que matariam todos os ocupantes, incluindo o próprio bebê. Para sustentar essa idéia, Greene, junto com o neurocientista da cognição Jonathan Cohenfez imagens dos cérebros das pessoas enquanto elas analisavam vários dilemas. Eles descobriram que os dilemas que requeriam matar uma pessoa com as próprias mãos ativavam áreas do cérebro associadas à emoção, junto com outras áreas cerebrais envolvidas na resolução de conflitos.

Vemos aqui, portanto, a marca inconfundível de uma visão de mundo movida pela dinâmica das forças, na ponderação de um profundo dilema moral. Um cenário em que o ator é um antagonista e sua vítima sacrificial (o homem gordo) é um agonista - o significado prototípico dos verbos causativos - evoca uma emoção que supera nossa consciência sobre o número de vidas salvas e perdidas, enquanto o cenário alternativo, em que o ator é um mero possibilitador do antagonista (o trem), não faz a mesma coisa. Isso significa que nossa visão do mundo movida pela dinâmica das forças nos torna irracionais na arena moral? Será que a visível diferença entre causar e possibilitar contamina nossa ética e torna nossas instituições pouco confiáveis? Não necessariamente. Valorizamos as pessoas não apenas pelo que elas fazem, mas pelo que são. E uma pessoa que é capaz de arremessar um homem ponte abaixo ou de tampar a boca de um bebê até ele parar de respirar é provavelmente capaz de outros atos horrendos que não venham acompanhados de uma redução redentora no número de vítimas. Mesmo deixando de lado a frieza que seria necessária para realizar tais ações, o tipo de pessoa que escolhe seus atos apenas pelo custo-benefício previamente calculado (cálculos que ele deixa só por sua conta) pode distorcer o total a seu favor sempre que as chances e a recompensa não forem determináveis, coisa que sempre acontece na vida real.

Steven Pinker (Do que é Feito o Pensamento; págs: 266 e 267)

13 de fevereiro de 2015

REDES CAUSAIS BAYESIANAS E A TEORIA PREFERIDA


O mundo não é uma fileira de dominós em que cada acontecimento causa exatamente um acontecimento e é causado por exatamente um acontecimento. O mundo é um tecido de causas e efeitos que se cruzam em padrões intricados. (...) Uma solução para a trama complexa de causação é uma técnica da inteligência artificial chamada Redes Causais Bayesianas. (Levam esse nome por causa de Thomas Bayes, cujo teorema homônimo mostra como calcular a probabilidade de determinada condição a partir de sua plausibilidade prévia e a chance de ela ter levado a determinado sintomas observados). Escolhe-se um grupo de variáveis (quantidade de café consumido, quantidade de exercício, presença de doença cardíaca e assim por diante), traçam-se setas entre causas e seus efeitos e rotula-se cada seta com um número representando a intensidade da influência causal (o aumento ou diminuição da probabilidade de o efeito ocorrer, dada a presença da causa). As setas podem estar em qualquer padrão, convergente, divergente ou circular, se necessário; não há necessidade de identificar "a" causa para determinado efeito. Com esse diagrama em mãos, e medições das variáveis (como quantas xícaras de café uma pessoa bebe), um computador pode acionar a aritmética e prever os efeitos de uma determinada causa (como o risco aumentado de doença cardíaca) ou, na outra direção, a probabilidade de uma causa estar presente, considerando seus efeitos típicos.
 
Por exemplo, uma Rede Causal Bayesiana típica permitiria que você conjecturasse, a partir do fato de um alarme anti-roubo disparar na casa do vizinho, que provavelmente houve um arrombamento, mas, se você também vir um gato circulando do lado de dentro, colocará o telefone de volta no gancho sem ligar para a polícia. Antes de usar uma Rede Causal Bayesiana, é preciso estabelecê-la, e isso pode ser feito a partir de algumas hipóteses iniciais sobre as variáveis e a relação entre elas, um grupo de intervenções experimentais (como privar pessoas de café e observar o que acontece com a saúde delas) ou um grupo de medições de como os fatores se correlacionam dentro de um grande conjunto de dados. As Redes Causais Bayesianas são uma excelente maneira de pensar em causas e efeitos a partir da informação sobre suas intercorrelações, e sob certos aspectos já foi demonstrado que as pessoas se ajustam a suas idéias, como no cenário com o gato e o alarme anti-roubo. Mas no fundo é Hume com um computador. Elas descrevem o raciocínio causal como algo que é resultado de um enorme conjunto de correlações, sem a preocupação com o que significam essas variáveis, ou que mecanismos no mundo permitem que os referenciais dessas variáveis na vida real influenciem uns aos outros. É algo que se aplica perfeitamente a um observador sentado diante de um imenso mostrador de luzes coloridas, que presta atenção para ver se a luz vermelha no canto superior direito tende a acender alguns minutos antes de uma luz verde na fileira do meio, a menos que um quadro amarelo no canto inferior esquerdo pisque duas vezes nesse ínterim.

Elimina, portanto, um componente crucial de nosso pensamento causal: a intuição de que o mundo é feito de mecanismos e forças com poderes causais - algum tipo de empurrão, energia, ou atração que é transmitido da causa para o efeito - e de que as correlações que observamos são o resultado da ação desses poderes. Até uma rápida olhada no comportamento humano já sugere que as pessoas freqüentemente pensam na causação como forças ocultas, em vez de meras correlações. Muitos experimentos psicológicos já mostraram que, quando as pessoas têm uma teoria preferida sobre como as coisas funcionam (como a de que o clima úmido causa dor de artrite), elas juram enxergar essas correlações no mundo, mesmo quando os números mostram que as correlações não existem nem nunca existiram. (...) Nossas intuições causais, lá no fundo, não passam de expectativas marcadas pelas experiências, e essas expectativas só são satisfeitas se o universo obedecer a leis, uma hipótese brutal que não conseguimos provar. (...) O hábito de inventar por alucinação forças causais e obrigar a experiência a se encaixar nelas vem moldando as culturas humanas desde tempos imemoriais, produzindo o vasto compêndio de vodu, astrologia, magia, oração, idolatria, panacéias da Nova Era e outras bobagens de nossa espécie.

Steven Pinker (Do Que é Feito o Pensamento; págs: 244, 250, 251 e 252)

CAUSALIDADES

Se alguém nos pedir para identificar a causa de o fósforo acender, destacamos o ato de riscá-lo, não a presença de oxigênio, a secura do fósforo ou a presença de quatro paredes e um teto. Pelo mesmo motivo não consideramos o casamento a causa da viuvez, ou roubar jóias a causa da polícia as descobrir, embora nos dois casos o acontecimento posterior não pudesse ter acontecido sem o anterior. (...) As pessoas distinguem apenas uma das condições necessárias para um acontecimento como sua causa e as outras como meras possibilitadoras ou contribuidoras, embora todas sejam igualmente necessárias. A diferença não está na cadeia de acontecimentos físicos nem nas leis que eles seguem, mas numa comparação implícita com determinadas situações outras (...) que mantemos guardadas em nossa cabeça como alternativas razoáveis ao status quo. Como o oxigênio está sempre por aqui, não pensamos em sua presença como uma causa da ignição do fósforo. Mas, como passamos mais tempo sem riscar fósforos que riscando, e achamos que cabe a nós decidir a qualquer momento se o riscamos ou não, atribuídos a causa ao ato de riscar. Mude-se a comparação e se mudará a causa. (...) Um problema semelhante com a teoria contrafactual é que a causação é transitiva: se A causa B, e B causa C, então A causa C. Se fumar causa câncer, e câncer causa a morte, então fumar causa a morte. Mas condições necessárias (as que estão por trás das inferências contrafactuais) não são transitivas. Soa razoável dizer que, se Kennedy não tivesse sido presidente, ele não teria sido morto. Também soa razoável dizer que, se Kennedy não tivesse sido assassinado, ele teria sido reeleito. Mas é bem pouco razoável dizer que, se Kennedy não tivesse sido presidente, ele teria sido reeleito!

Um outro problema da teoria é a chamada preempção. Dois atiradores conspiram para assassinar um ditador num ato público. Eles combinam que o primeiro a conseguir uma boa mira vai atirar, enquanto o outro vai se misturar à multidão. O Assassino 1 derruba o ditador com seu primeiro tiro, e obviamente seu ato é a causa da morte do ditador. Mas não é verdade que, se o Assassino 1 não tivesse atirado, o ditador não teria morrido, porque nesse caso o Assassino 2 teria concluído a missão.

Steven Pinker (Do Que é Feito o Pensamento; págs: 248 e 249)