31 de janeiro de 2012

SUCO

Eu tinha passado toda a vida dizendo adeus. Merda. Toda a vida dizendo adeus. Que acontecia comigo? Depois de tanta despedida, o que eu tinha deixado? E em mim, o que havia ficado? Eu tinha trinta anos, mas entre a memória e a vontade de continuar se amontoavam muita dor e muito medo. Eu tinha sido muitas pessoas. De quantas carteiras de identidade era dono? Outra vez havia estado a ponto de naufragar. Tinha escapado de morrer uma morte não escolhida e longe de minha gente, e essa alegria era mais intensa que qualquer pânico ou ferida. Não teria sido justo morrer, pensei. Não tinha chegado ao porto esse barquinho? Mas, e se não houvesse nenhum porto para esse barquinho? Vai ver navegava pelo puro prazer de andar ou por causa da loucura de perseguir aquele mar ou céu luminoso que tinha perdido ou inventado. Agora, morrer teria sido um erro. Eu queria dar tudo antes que a morte chegasse, ficar vazio, para que a filha da puta não encontrasse nada para levar. Tanto suco eu ainda tinha! Sim, era isso o que tinha ficado em mim ao fim de tanto adeus: muito suco e vontade de navegar e desejo de mundo.

Eduardo Galeano (Dias e Noites de Amor e de Guerra; págs: 53 e 54)

28 de janeiro de 2012

ENTRELINHAS


Pra acusar, basta explicar.
Pra confessar, basta mentir.
Pra falar, basta o gesto.
Pra avançar, basta tropeçar.
Pra sofrer, basta viver.
Pra amar, basta sonhar.

Diego Cosmo

27 de janeiro de 2012

O SISTEMA

Que programa o computador que alarma o banqueiro que alerta o embaixador que janta com o general que ordena ao presidente que intima o ministro que ameaça o diretor-geral que humilha o gerente que grita com o chefe que pisa no empregado que despreza o operário que maltrata a mulher que bate no filho que chuta o cachorro.

Eduardo Galeano (Dias e Noites de Amor e de Guerra; pág: 30)

18 de janeiro de 2012

"POR QUE GERAR UMA ÁRVORE TÃO ENCRENQUEIRA E SITUÁ-LA NO CENTRO DO PARAÍSO?"

Adão e Eva não saem do Paraíso porque exercem seu livre-arbítrio. Eles saem do Paraíso porque escutaram não a si, mas ao outro. A serpente é a segunda intenção. Comer do fruto proibido é um engano plenamente tolerável para um ser que não tem compromissos com a perfeição. A falibilidade humana deveria ter tornado o pecado original irrelevante. Porém, o ser que maquina fins utilizando seus desejos, o ser que se deixa levar pelo olhar-fala do outro-serpente e se perde no labirinto de sua identidade, esse ser encontra o Eu. Quando Deus pergunta a Adão: "Onde estás?", Ele não o vê, ou melhor, Ele não o reconhece.

Tal pergunta não se refere à posição geográfica de Adão. Deus não teria dificuldade de localizar Adão, e a indagação é claramente uma pergunta dirigida para Adão fazer a si mesmo. Mais do que se ocultar, Adão desaparece, e Deus registra isso no campo da existência. Enquanto Adão pensa ter adquirido em sua consciência uma presença nunca antes experimentada, Deus dá falta dele na esfera da existência.

Adão e Eva somem do radar da existência porque querem se fazer deuses presentes. É essa localização de GPS que os erradica do Éden. No jardim original não havia longitudes e latitudes nas quais se posicionar. Onde quer que se estivessem, Adão ou Eva eram o centro do universo. Mas agora o homem estava no canto, na periferia absoluta do universo, e lhe parecia que este era o seu lugar, o seu caminho - um lugar possuído e assediado como seu.

Nilton Bonder

8 de janeiro de 2012

AMOR É REESCRITA

O Amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão, Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura por eles vestidas.

Fernando Pessoa


Há gente, sim, que muda de amor para não mudar de opinião, que muda de homem para não mudar sua rotina, que manda onde não vigora poder e dominação. Que culpa o amor por não dar conta dele, que ama já pedindo desculpa por não amar. O amor grande não é um grande amor. Há gente que desperdiça a chance do amor grande porque há apenas uma chance para amar grande. Muitas chances dentro de uma chance. O resto são disfarces, suturas, apoios. Amor grande seria insuportável duas vezes nesta vida. Ou a gente se apequena para receber esse amor ou permanece se engrandecendo para não aceitá-lo. Amor é mudar, sempre mudar, sempre se adaptar. E nunca cansar de criar idiomas.

Fabrício Carpinejar


"O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá mais se tem." - Antoine de Saint-Exupéry

5 de janeiro de 2012

"NÃO TOMARÁS O NOME DO SENHOR TEU DEUS EM VÃO"

Desde as Cruzadas até a política norte-americana, passando pela Inquisição, o nome de Jesus vinha sendo usado em vão, em todo tipo de disputa de poder. Os ignorantes sempre haviam gritado mais alto, convocando as massas incautas e forçando-as a fazer o que mandavam. Defendiam seus desejos mundanos citando Escrituras que não compreendiam. Celebravam sua intolerância como prova de suas convicções. Agora, depois de tantos anos, a humanidade finalmente conseguira erodir por completo tudo aquilo que Jesus outrora tinha de belo.

Dan Brown (O Símbolo Perdido; pág: 319)