22 de fevereiro de 2011

MÁSCARAS



Na verdade, acho que todo mundo cresce construindo uma identidade falsa a respeito de si mesmo. Desde a infância, quando sofremos as projeções dos pais e da família, passando pela adolescência, período em que precisamos encontrar um jeito de ser aceitos e admirados pela turma, chegando à fase de definição de carreira e casamento, até este mundo de fachada, cuja moeda mais valorizada é a imagem e onde ninguém vale mais do que aquilo que aparenta. Aos poucos, vai deixando de ser importante o que de fato somos para que entre em cena algo em que nos tornamos por escolha própria ou pressão de outros. A menina que disputava o amor do pai e o menino que disputava o amor da musa da escola crescem e se tornam a executiva que disputa a admiração do seu homem e o empresário que quer provar para todo mundo que é melhor do que o irmão dele, sim. A maioria das pessoas funcionam num ciclo de retroalimentação dessa loucura coletiva de identidades de mentirinhas e infelicidades crônicas. Ninguém se atreve a tirar as máscaras. E muito menos a denunciar as máscaras dos outros.
 
Ed René Kivitz (Outra Espiritualidade; págs: 59 e 60)
 
 
A vestimenta e as segundas intenções são totalmente transparentes e são percebidos pelo outro constantemente. O que nos salvaguarda da vergonha derradeira deste reconhecimento é que o outro também se faz vestido. Tratamo-nos assim por nomes e a dissimulação das verdadeiras essências se faz tolerável. Até porque a melhor maneira de nos escondermos é trazer alguém para dentro de nosso jogo de encobrimentos. Nesse sentido, a sociedade é a trama de nomes e vestes que garante a legitimidade das aparências. Gradativamente vamos trocando o querer do que se quer das primeiras intenções pelo querer do que se tem ou se pode ter das segundas intenções. As primeiras intenções são sempre eróticas e nascem de um desejo, já as segundas intenções têm como objetivo um fim. É justamente a troca de desejos por fins que nos obriga a vestir-nos, pois o corpo não é mais objeto de um desejo, mas de uma utilidade. Ser e usar se tornam indiscerníveis.

Nilton Bonder (Segundas Intenções; pág: 35)


Depois de certa idade, passamos a usar uma máscara de segurança e certezas. Com o tempo, essa máscara gruda no rosto e não sai mais. Quando crianças, aprendemos que, se choramos, recebemos carinho; se mostramos que estamos tristes, recebemos consolo. Se não conseguimos convencer com nosso sorriso, seguramente convenceremos com nossas lágrimas. Mas já não choramos - exceto no banheiro, quando ninguém está nos ouvindo - nem sorrimos - só para nossos filhos. Não demonstramos nossos sentimentos porque as pessoas podem nos julgar vulneráveis e se aproveitar disso.

Paulo Coelho (Adultério; pág: 46)


Nossa vida não passa de umas formações fugidias de areia movediça, constituídas por uma rajada de vento e apagadas pela próxima. Construções da futilidade que se dissipam antes mesmo de se constituírem. (...) Quando é que alguém era ele próprio? Quando era como sempre costumava ser? Ou como era quando a lava incandescente dos pensamentos e dos sentimentos enterrava todas as mentiras, as máscaras e as autoilusões? Frequentemente eram os outros que se queixavam que alguém deixou de ser ele próprio. Talvez isso significasse, na verdade: ele não é mais como nós gostaríamos que fosse. No fim das contas, tudo não seria simplesmente uma espécie de grito de guerra contra a ameaça de um abalo daquilo que é habitual, mascarado de interesse e preocupação pelo bem do outro?

Pascal Mercier (Trem Noturno Para Lisboa; pág: 435)


d'Artagnan observou alguma coisa de dissimuladamente pérfida no movimento habitual das rugas em seu rosto. Um patife não ri da mesma maneira que um homem honesto, um hipócrita não chora as mesmas lágrimas que um homem de boa-fé. Toda falsidade é uma máscara, e por mais bem-feita tal máscara, sempre conseguimos, com um pouco de atenção, diferenciá-la do semblante verdadeiro.

Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros; pág: 271)

12 de fevereiro de 2011

A TIRANIA DA FELICIDADE



A felicidade é o objetivo da busca eterna e universal que vem ocupando a mente humana desde os primórdios da Criação. As pessoas podem diferir em suas perspectivas políticas e religiosas, filosofias de vida, perfis psicológicos, cultura e raça, mas todos, sem exceção, querem ser felizes. A felicidade é a meta do pobre e do rico, do erudito e do ignorante, do santo e do pecador, do ateu e do crente, do ascético e do indulgente. É por causa da felicidade que aspirantes espirituais oram, trapaceiros trapaceiam, monopolistas monopolizam, caridosos entregam-se à caridade, bêbados bebem, ladrões roubam e penitentes se arrependem. Almejando felicidade, uns se casam, outros se divorciam, alguns cometem suicídio e outros se tornam homicidas. E, no entanto, a perseguição à felicidade resulta numa tentativa caótica, absurda, infrutífera. Ninguém tem certeza de como alcançá-la. Nenhum ramo de estudo nos trouxe conhecimento algum a respeito do segredo da felicidade. A religião enfatiza a salvação e a filosofia, a busca da verdade. Os moralistas falam a respeito do dever, e os psicólogos nos pedem que enfrentemos e convivamos com a infelicidade. Os cientistas pouco se importam com nossos sentimentos, e os economistas dão valor tão-somente à riqueza e à prosperidade. Nenhum deles se dedica ao problema da felicidade.

Em busca da felicidade, as pessoas freqüentemente se comportam de forma estranha. Alguns ficam felizes quando os outros estão felizes; alguns são felizes quando os outros são infelizes; e existem até mesmo aqueles que são felizes quando eles próprios são infelizes. Uns têm esperança de comprar a felicidade enquanto outros há que tentam usurpá-la do próximo. Há aqueles que buscam alcançar a felicidade através do domínio, pelo poder; outros, no apego às coisas. Desta forma, estamos todos constantemente perseguindo a felicidade, ao invés de sermos felizes. Não admira, portanto, que nasçamos chorando, vivamos nos lamuriando e morramos frustrados.
 
Swami Adiswarananda (monge da Ordem Ramakrishna)
 
 
Você erroneamente concluiu que perseguindo o alvo espiritual você de alguma forma fará que seus alvos materiais se tornem miraculosamente simples e gerenciáveis. Tudo o que posso garantir é que enquanto estiver buscando a felicidade você permanecerá infeliz. Por que a vida deveria ter algum sentido? Por que deveria haver algum propósito em viver? Viver, em si mesmo, é tudo o que existe. A sua busca por um significado espiritual transformou a vida num problema. Minha missão, se é que existe alguma, deveria ser, de agora em diante, refutar cada declaração que já fiz. Se levar a sério ou tentar aplicar o que venho dizendo, você estará em perigo. Meu interesse não é impugnar o que os outros disseram (o que seria fácil demais), mas impugnar o que eu estou dizendo. Mais precisamente, estou tentando interromper o que você vem concluindo do que estou dizendo.

U.G Krishnamurti

9 de fevereiro de 2011

PONHAM-SE À MESA



"Ora, senhores, pesemos os fatos. A vida é um rosário de pequenas misérias que o filósofo desfia, rindo. Sejam filósofos como eu, cavalheiros, ponham-se à mesa e bebamos. Nada faz o futuro parecer tão cor-de-rosa como vislumbrá-lo através de um copo de chambertin".

Alexandre Dumas (Os Três Mosqueteiros; pág: 515)

5 de fevereiro de 2011

COMO SE DEUS NÃO EXISTISSE

No século passado, Karl Marx e Sigmund Freud representavam duas grandes ameaças contra a religião. Marx afirmava que a igreja serve a interesses ideológicos de controle político e de subjugação econômica. Freud, por sua vez, percebia os mecanismos infantilizantes da religião quando sacerdotes projetam em Deus nosso desejo por um pai perfeito. Para ele, a prática religiosa condena homens e mulheres a viverem como eternas crianças, sempre precisando de intervenções sobrenaturais para enfrentar as agruras da vida.

É preciso dar a mão à palmatória. Os dois leram as instituições religiosas dos seus dias corretamente, principalmente a cristandade. Desde Constantino, o apelo do poder mostrou-se arrasador e irresistível nas igrejas. Infelizmente, os ensinos do Nazareno foram usados para autenticar o expansionismo imperialista e colonialista dos grandes impérios que se auto-proclamaram cristãos. Padres, pastores e bispos se vestiram como a grande prostituta do apocalipse e se entregaram por qualquer preço. Monarcas beijaram anéis episcopais enquanto obrigavam seus donos a lamberem suas botas. Assim, mercadejadores do templo precisaram distribuir ópio religioso para poderem fazer vista grossa e abençoar inúmeras carnificinas dos Tsares russos ao Batista cubano; das aventuras ensandecidas de Isabel espanhola às dos Bush, pai e filho.

A adoração do Deus provedor ocidental deu razão a Freud, que denunciava os recintos religiosos como incubadores de oligofrênicos. O proselitismo missionário foi feito, em grande parte, precisando de uma espiritualidade funcional. Na tentativa de mostrar a superioridade de Jeová sobre as demais divindades, criou-se um fascínio por milagres. "nosso Deus funciona", clamaram os evangelistas por séculos. Desse modo, o sobrenatural passou a ser compreendido como uma intervenção legitimadora daquele que é o verdadeiro dono do pedaço. Assim, os crentes viciados em milagres se condenaram à freudiana dependência infantil.

Em minha opinião, só seria possível resgatar a mensagem de Jesus Cristo, caso a religião abrisse mão de suas hierarquias institucionais, demitisse elites, democratizassem o acesso a Deus, e esvaziasse os rituais da função de serem técnicas para se obter bênçãos. É importante que repensemos a fé, seguindo o exemplo de Jesus que viveu sem precisar de milagres e morreu sem apelar para os anjos. Iguais a ele, precisamos viver sem os cabrestos da religião e sem as intervenções de Deus.

Concordo com John Hick em Evil and the God of Love (New York, Harper & Row; London, Mcmillan, 1966, p. 317)

Ao criar pessoas finitas para amar e serem amadas por ele, Deus precisa dotá-las com certa autonomia relativa quanto a si mesmo. Mas como pode uma criatura finita, dependente do Criador infinito quanto à sua própria existência e a cada poder e qualidade do seu ser, possuir qualquer autonomia significativa em relação a esse Criador? A única maneira que podemos imaginar é aquela sugerida pela nossa situação efetiva. Deus precisa colocar o homem a distância de si mesmo, de onde ele então pode vir voluntariamente a Deus. Mas como algo pode ser colocado à distância de alguém que é infinito e onipresente? É óbvio que a distância espacial não significa nada nesse caso. O tipo de distância entre Deus e o homem que criaria certo espaço para certo grau de autonomia humana é a distância epistêmica. Em outras palavras, a realidade e a presença de Deus não devem se impor ao homem de forma coercitiva como o ambiente natural se impõe à atenção deles. O mundo deve ser para os homens, pelo menos até certo ponto, etsi deus non daretur, como se Deus não existisse. Ele precisa ser cognoscível, mas apenas por um modo de conhecimento que implique uma resposta livre da parte do homem, consistindo essa resposta em uma atividade interpretativa não-compelida através da qual experimentamos o mundo como realidade que media a presença divina.

Uma nova igreja precisa se desvincular de seu fascínio pelo poder, qualquer um: político, econômico, militar ou espiritual. Repito, urge que homens e mulheres construam sua humanidade, sendo sal da terra e luz do mundo, sem necessitar de repetidos socorros celestiais.

Ricardo Gondim

2 de fevereiro de 2011

"SE EU NÃO AMÁ-LOS COMO SÃO, NÃO SERÁ A ELES QUE ESTAREI AMANDO"

Não consigo ainda deixar de me perguntar se nestes dias em que tão vasta proporção da humanidade está mergulhada no materialismo, Deus não deseja que haja homens e mulheres que entregaram-se a Ele e a Cristo e permanecem apesar disso fora da igreja. De qualquer modo, quando penso no ato pelo qual eu entraria na igreja como algo concreto, que pode acontecer num futuro próximo, nada me dá mais dor do que a ideia de separar-me da imensa e desafortunada multidão de descrentes. Tenho a necessidade essencial, creio que pode-se dizer a vocação, de andar entre homens de todas as classes e feições, misturando-me a eles e compartilhando de sua vida e perspectiva na proporção que a consciência permite, mesclando-me à multidão e desaparecendo no meio dela, para que eles se mostrem a mim como são, removendo todos os seus disfarces diante de mim. Isso porque desejo conhecê-los de modo a amá-los como são. Pois se eu não amá-los como são, não será a eles que estarei amando, e meu amor será irreal.

Simone Weil (carta de 1942 ao padre Perrin)