15 de dezembro de 2011

PACTO E CONTRATO

O Pacto são dois num só apelo, diferente do contrato, que é cada um por si. O pacto é palavra, o contrato é letra. A palavra é lembrança, a letra é cobrança. O pacto é confiança, o contrato é obrigação. No contrato, se pode sair a qualquer hora. No pacto, a saída é sempre pela honra.

Fabrício Carpinejar

2 de dezembro de 2011

O INTERESSE DA BURGUESIA


Creio que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da dominação da classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar historicamente, partindo de baixo, a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar; por exemplo, quanto à exclusão da loucura ou à repressão e proibição da sexualidade, ver como, ao nível efetivo da família, da vizinhança, das células ou níveis mais elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão ou reclusão se dotaram de instrumentos próprios, de uma lógica própria, responderam a determinadas necessidades; mostrar quais foram seus agentes, sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais (que podem ser a família, a vizinhança, os pais, os médicos, etc.) e como estes mecanismos de poder, em dado momento, em uma conjuntura precisa e por meio de um determinado número de transformações começaram a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis. Desse modo, creio ser possível demonstrar facilmente que, no fundo, a burguesia não precisou da exclusão dos loucos ou da vigilância e proibição da masturbação infantil, e nem foi por isto que o sistema demonstrou interesse (o sistema burguês pode perfeitamente suportar o contrário) mas pela técnica e pelo próprio procedimento de exclusão. São os mecanismos de exclusão, os aparelhos de vigilância, a medicalização da sexualidade, da loucura, da delinqüência, é toda esta micro-mecânica do poder que representou um interesse para a burguesia a partir de determinado momento.

Melhor ainda: na medida em que esta noção de burguesia  e de interesse da burguesia não tem aparentemente conteúdo real, ao menos para os problemas que ora nos colocamos, poderíamos dizer que não foi a burguesia que achou que a loucura devia ser excluída ou a sexualidade infantil reprimida. Ocorreu que os mecanismos de exclusão da loucura e de vigilância da sexualidade infantil evidenciaram, a partir de determinado momento e por motivos que é preciso estudar um lucro econômico e uma utilidade política, tornando-se, de repente, naturalmente colonizados e sustentados por mecanismos globais do sistema do Estado. É focalizando estas técnicas de poder e mostrando os lucros econômicos ou as utilidades políticas que delas derivam, num determinado contexto e por determinadas razões, que se pode compreender como estes mecanismos acabam efetivamente fazendo parte do conjunto.

Em outras palavras, a burguesia não se importa com os loucos; mas os procedimentos de exclusão dos loucos puseram em evidência e produziram, a partir do século XIX, novamente devido a determinadas transformações, um lucro político, eventualmente alguma utilidade econômica, que consolidaram o sistema e fizeram-no funcionar em conjunto. A burguesia não se interessa pelos loucos mas pelo poder; não se interessa pela sexualidade infantil mas pelo sistema de poder que a controla; a burguesia não se importa absolutamente com os delinqüentes nem com sua punição ou reinserção social, que não têm muita importância do ponto de vista econômico, mas se interessa pelo conjunto de mecanismos que controlam, seguem, punem e reformam o delinqüente.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 185 e 186)

1 de dezembro de 2011

A DOR É INEVITÁVEL. O SOFRIMENTO É OPCIONAL

Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram. Por quê sofremos tanto por amor? O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz. Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido juntos e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar. Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender. Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!! A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.

Carlos Drummond de Andrade

18 de novembro de 2011

INTUIÇÃO


Voltar para os Estados Unidos foi, para mim, um choque cultural muito maior do que ir para a Índia. As pessoas no interior da Índia não usam o intelecto como nós, elas usam a intuição, e sua intuição é muito mais desenvolvida do que no resto do mundo. A intuição é uma coisa muito poderosa, mas potente do que o intelecto, na minha opinião. Isso teve uma grande influência sobre meu trabalho. (...) Comecei a perceber que uma compreensão e consciência intuitiva eram mais significativas do que o pensamento abstrato e a análise lógica intelectual. (...)  O pensamento racional ocidental não é uma característica humana inata; é aprendido e é a grande conquista da civilização ocidental. Nas aldeias da Índia, eles nunca o aprenderam. Eles aprenderam outra coisa, que de certo modo é tão valiosa quanto, mas de outra maneira não é. Trata-se do poder da intuição e da sabedoria experiencial. Ao voltar, depois de sete meses em aldeias indianas, vi a loucura do mundo ocidental, bem como sua capacidade para o pensamento racional. Se você simplesmente sentar e observar, verá como sua mente é inquieta. Se tentar acalmá-la, isso só torna as coisas piores, mas com o tempo ela se acalma, e quando isso acontece há espaço para ouvir coisas mais sutis - é quando sua intuição começa a florescer e você começa a ver as coisas com mais clareza e estar mais no presente. Sua mente simplesmente fica mais lenta, e você vê uma expansão tremenda no momento. Você vê tanta coisa que poderia ter visto antes. É uma disciplina, você tem de praticá-la.

Walter Isaacson (Steve Jobs - a biografia; págs: 53, 67 e 68)

17 de novembro de 2011

COMO DIZIA O POETA

Mário Gomes

Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai

Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não

Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir?
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração
Esse não vai ter perdão.

Toquinho e Vinicius de Moraes

13 de novembro de 2011

QUANDO CONHECERMOS A LEI MELHOR DO QUE ELES


Os apelos emocionais não adiantam: "Por favor, não cortem as lindas árvores, não estraguem a paisagem, não deixem os animais morrerem." Isso nada significa para os homens do governo. E a violência também não adianta: "Defenderemos as árvores até o fim, atiraremos em vocês se tentarem destruir a floresta." Isso só servirá para que o exército seja acionado, a fim de proteger a derrubada. Só a ação legal poderá deter o governo. Quando conhecermos a lei melhor do que eles, quando souberem que podemos levá-los aos tribunais e ganhar, quando pudermos provar que estão violando os regulamentos federais, então a derrubada será impedida.

Richard Bach (A Ponte Para o Sempre; págs: 417 e 418)

1 de novembro de 2011

ELA...


 
Pelo acaso nos encontramos, por pouco em meio ao caos passei a te amar. No que eu não espero é que venho a te querer, e reescrevendo, ficamos juntos. Em contradição nos beijamos e fica-se assim sem entender... Nessa carência de quem ama é que te tenho mais perto e assim sonhamos juntos nessa imprevisibilidade amorosa... Nos eternizamos no embaraçoso momento fugaz que estamos juntos, e é na indefinição que de alguma forma nos aturamos. No efêmero, na nostalgia, na magia, na poesia, no encanto, nesse conto, nesse olho existimos um no outro, ontem e depois...
 
Diego Cosmo

VOCÊ E O SEU RETRATO


Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?
Talvez porque o retrato,
já sem o enfeite das palavras,
tenha um ar de lembrança.
Talvez porque o retrato
(exato, embora malicioso)
revele algo de criança
como, no fundo da água,
(um coral em repouso).
Talvez pela ideia de ausência
que o seu retrato faz surgir
colocando entre nós dois
(como um ramo de bortênsia).
Talvez porque o seu retrato,
embora eu me torne oblíquo,
me olha, sempre, de frente
(amorosamente).
Talvez porque o seu retrato
mais se parece com você
do que você mesma (ingrato).
Talvez porque, no retrato,
você está imóvel
(sem respiração...)
Talvez porque todo retrato
é uma retratação.

Cassiano Ricardo

30 de outubro de 2011

A LÓGICA DAS RELAÇÕES

A cosmovisão de uma sociedade que acredita mais nas relações sociais do que nos indivíduos que lhes dão forma e vida. (...) Têm a capacidade ou o poder de dobrar a vontade dos indivíduos, fazendo com que façam coisas que até mesmo abominam em nome da lealdade ou da fidelidade para com outra pessoa. Em nome da amizade, do amor filial ou do compadrio e parentesco, conforme situamos o problema no caso do Brasil. Somos, assim, obrigados a visitar pessoas, a comer comidas, a dar presentes, a assinar manifestos, a frequentar locais e até mesmo a casar, não porque individualmente queremos, mas porque há uma demanda relacional. É a relação que exige, não o indivíduo que deseja! (...) Fazer sociologia não é estudar motivações individuais ou interações de trajetórias pessoais que se tocam num cenário artificial e passivo. a cultura de uma sociedade. Não. Fazer sociologia é estudar o peso e o valor das relações e das teias de relações que ligam os indivíduos entre si, fazendo com que vivam num mundo pleno de lógicas. Há a lógica individual de cada um; há a lógica da moralidade social que orienta a ação de todos; e há a lógica das relações que todos estabelecem entre si e com a ideologia como um todo.

Roberto DaMatta (A Casa e a Rua; págs: 134 e 135)

19 de outubro de 2011

O QUE É ESTE MUNDO?


"O que é este mundo.. Senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)"

André Comte-Sponville

14 de outubro de 2011

VIXE MARIA!

Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais seguro -, então de onde vem o mal real e por que não o elimina?

Epicurus, ed. de O. Gigon, Zürich, 1949, p. 80.

2 de outubro de 2011

O JOGO DA DOMINAÇÃO

Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença dos valores; classes dominam classes e é assim que nasce a idéia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força - e é o nascimento da lógica. Nem a relação de dominação é mais uma "relação", nem o lugar onde ela se exerce é um lugar. E é por isto precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e propriamente falando sua perversão. (...)

A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação. É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns ou de outros. O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras. As diferentes emergências que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma mesma significação; são efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas disfarçadas, inversões sistemáticas. (...) O devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser a sua história: a história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos procedimentos.

Michel Foucault (Microfísica do Poder; págs: 24, 25 e 26)

26 de setembro de 2011

A GRAÇA NÃO É SUFICIENTE?


Se fundarmos nossa igreja teremos mais dinheiro que o chefe do tráfico e não teremos o incômodo da polícia no nosso calcanhar, nem andaremos com armas nem com gente violenta. Detesto violência, sou da paz. Quem quiser nos seguir e nos pagar dízimos farão livremente. Mas nosso apelo será irresistível. Já saquei como esses pastores da TV trabalham, imprimiremos o medo do inferno nas pessoas, focaremos a culpa pelos pecados. Todo mundo tem pecado. Mostraremos como somos poderosos contra satã.

Como as massas se deixam manipular barato. Tudo não passava de uma farsa, mas o povo acreditava. Por que acreditava tão fácil? Perguntava para si mesmo. "Seria o desespero para obter ajuda espiritual? Conseguir atalhos para vencer os mais terríveis dilemas da vida? Ou mesmo preguiça de pensar, de lutar, e de encarar suas responsabilidades?". Havia também empresários, profissionais liberais e gente de razoáveis posses. O que estariam fazendo no meio da multidão? Eram pessoas que procuram garantir sua prosperidade, que buscavam uma espécie de blindagem divina contra as bancarrotas, as tragédias, as catástrofes, a falência, a violência urbana, as doenças e tudo mais que saísse do seu controle e signifique perigo de perder a boa vida que levavam.

Teologias que exigem sacrifícios, penitências e flagelo. A graça de Jesus não é suficiente? Não foi ele quem fez o sacrifício definitivo?

Jansen Viana (Apenas um Carpinteiro; págs: 35, 74, 75 e 95)

A SÍNDROME DE CENSURAR

Em geral, o critério de julgamento utilizado por um líder já é o reflexo, ou tornar-se-á reflexo, do mesmo critério utilizado pelo seu grupo de convivência. A maldade sofrida por um líder no seu grupo de convivência parece não ser muito diferente dos sofrimentos ou constrangimentos que já provocou em outras pessoas. O problema, tudo indica, reside não simplesmente na veracidade ou qualidade do julgamento feito, mas sobretudo na cultura de julgamento que se instala numa comunidade. (...) Em geral, quando alguém julga severamente, está punindo seu próprio erro ou fraqueza em potencial, tomando o outro como bode expiatório do mal que, em potencial, está dentro de si mesmo. Cada dia mais eu me convenço de que os líderes afetados pela "síndrome de censurar", invariavelmente, ou tiveram comportamentos desajustados dos quais se reprimem e vivem punindo outros com base na projeção da natureza pecaminosa que ainda os acompanha, ou então vivem passíveis e vulneráveis aos erros que condenam. (...) O hipócrita não consegue enxergar que de fato a severidade que utiliza com o outro é decorrente do mal que se aloja na sua própria natureza.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 180, 181 e 183)

FIDELIDADE AO EVANGELHO

A fidelidade consiste em nosso grau de conformidade com os dogmas de uma igreja que também deve se ocupar de buscar novas respostas às novas perguntas, em lugar de se ancilosar no passado em nome da perfeição? É fidelidade o que damos quando, pretendendo ser fiéis, nos negamos a refletir junto com o restante do mundo sobre as questões que determinarão o futuro da vida neste planeta e a autenticidade da vida nesta igreja, tais como: o aborto, a eutanásia, o armamentismo nuclear, o papado, a colegialidade, o sexismo e uma ciência desenfreada, como se Jesus não tivesse pensando a partir de uma perspectiva nova nos leprosos e no pecado, nas mulheres e na vida, nos sacerdotes e no povo, em Deus e nos fariseus?

Muito pelo contrário. Não é a nenhuma instituição, por muito elevados que sejam seus objetivos, que devemos ser fiéis. A fidelidade, pura e simplesmente, busca passo a passo, lugar a lugar e projeto a projeto, unicamente a vontade de Deus e a apaixonada presença do Evangelho em um mundo que se sente mais confortável com credos do que com a religião, que está mais familiarizado com a igreja do que com Cristo, mais comprometido com a caridade do que com a justiça, mais involucrado na opressão do que na igualdade, mais dedicado a manter a fé de nossos pais proscrevendo os pronomes femininos dos textos sagrados do que a libertar o ímpeto da Boa Nova. Realmente, devemos analisar cuidadosamente a que somos fiéis, a fim de que a fidelidade não seja a nossa ruína.

Joan Chittister

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 64 e 65)


Encontrar clareza e tomar as decisões justas, descobrindo o sentido autêntico da Verdade que leva em seu seio, é antes de tudo tarefa da igreja toda, como comunidade viva e corpo organizado. Aí se enraíza justamente o ponto decisivo: a verdade revelada está na igreja, cristalizada como escrito na Bíblia e encarnada nas diversas formas da tradição. E isto implica que ela está sempre "situada" em contextos concretos e "mediada" por densas camadas de idéias, usos e até abusos culturais. É preciso, portanto, trazê-la à atualidade de cada geração e de cada época, de sorte que fique livre de falsos vínculos e que, dizendo o mesmo, o diga de outra maneira: só poderá manter a fidelidade encarando os riscos da mudança. Justamente seu caráter contextual obriga a compreender que sua intenção profunda deve ser retraduzida em cada etapa histórica ou forma cultural, conscientes de que "o apego às formas de expressão tradicionais levou, com maior frequência, à heresia e não à ortodoxia."

Andrés Torres Queiruga (Fim do Cristianismo Pré-Moderno; págs: 149, 150 e 169)

24 de setembro de 2011

QUANDO ACREDITAMOS NA MENTIRA

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu (...)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
Perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.

Álvaro de Campos

23 de setembro de 2011

CASAMENTO


Para vós invoco os prazeres que voam nos ventos e as alegrias que moram nas cores: beleza, harmonia, encantamento, magia, mistério, poesia: que essas potências divinas lhes façam companhia. Que o sorriso de um seja, para o outro, festa, fartura, mel, peixe assado no fogo, coco maduro na praia, onda salgado do mar... Que as palavras do outro sejam tecido branco, vestido transparente de alegria, a ser despido por sutil encantamento. E que no final das contas e no começo dos contos, em nome do nome não dito, bem-dito, em nome de todos os nomes ausentes e nostalgias presentes, de ágape e filia, amizade e amor, em nome do nome sagrado, do pão partido e do vinho bebido, sejam felizes os dois, hoje, amanhã e depois...

Rubem Alves (Retratos de Amor; págs: 44 e 45)

22 de setembro de 2011

VONTADE DE POTÊNCIA

A juventude não é um período de tempo. É um estado de espírito, um resultado da vontade, uma qualidade da imaginação, uma vitória da coragem sobre a timidez, do gosto pela aventura sobre o amor ao conforto. Um homem não precisa ficar velho porque viveu um determinado número de anos. Os anos podem enrugar a sua pele, mas o desertar dos ideais enruga a alma. As preocupações, os medos, as dúvidas e o desespero são os inimigos que devagar nos fazem prostrar em direção à terra e transformam-nos em poeira antes da morte. A sua vontade permanece jovem enquanto você está aberto para o que é belo, bom e grande; receptivo para as mensagens de outros homens e mulheres, da natureza e de Deus. Se um dia você se tornar amargo, pessimista e consumido pelo desespero, Deus tenha piedade da sua alma de velho.

Gen. Douglas MacArthur

20 de setembro de 2011

NO FINAL A GRAÇA TRARÁ A LUZ

No último julgamento Cristo nos dirá: Vinde, vós também! Vinde, bêbados! Vinde, vacilantes! Vinde, filhos do o próbrio! E dir-nos-á: "Seres vis, vós que sois à imagem da besta e trazem a sua marca, vinde porém da mesma forma, vós também! E os sábios e prudentes dirão: Senhor, porque os acolhes? E ele dirá: Se os acolho, homens sábios, se os acolho, homens prudentes, é porque nenhum deles foi jamais julgado digno. E ele estenderá os seus braços, e cairemos a seus pés, e choraremos e soluçaremos, e então compreenderemos tudo, compreenderemos o evangelho da graça! Senhor, venha o teu Reino!

Fiódor Dostoiévski

O REINO DE DEUS


O Reino de Deus é uma realidade íntima. Jesus disse: "O Reino de Deus está dentro de vós". Buscá-lo é, portanto, um exercício de devoção espiritual, marcado pela comunhão com Deus, através do reconhecimento daquilo que Ele é, através da oração, contemplação, confissão, acolhimento do amor e da graça divina. Buscar o Reino é manter o bem como paradigma interior. Buscar o Reino é cultivar e viver todas as bem-aventuranças como condição primária, como estado íntimo dos limpos de coração.

Os valores e princípios do Reino são uma realidade possível. Portanto, buscar o Reino é buscar a concretização de sua realidade pelo testemunho, proclamação e atos de justiça dos discípulos. Buscar o Reino de Deus é praticar boas obras a fim de que Deus seja glorificado. É confrontar o mal e todos os poderes satânicos para que o reino se aproxime cada vez mais. É manter a esperança de que o Reino de Deus virá em toda a sua plenitude. Assim, buscá-lo é manter a fome e a sede para que a justiça corra como um rio e a paz se instaure para sempre.

Aos que buscam o Reino de Deus e a sua justiça, "todas estas coisas serão acrescentadas". O texto refere-se a "estas coisas", e não a todas as coisas que queremos. E o que será acrescentado? O suprimento necessário a uma vida digna. Assim, "todas estas coisas" não são todas as coisas que almejam os de mentalidade materialista. São as coisas essenciais a uma vida digna, e aqueles concernentes às realidades e esperanças do Reino de Deus.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 174 e 175)

A CRUZ


Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vós! (Mt 5.10-12)

A paz assimilada e assumida pelo discípulo é resultante da sua fome e sede de justiça. Daí a possibilidade de ser perseguido e sofrer por causa da justiça. Num mundo de injustiça e crueldade, a perseguição é algo inevitável para os discípulos de Jesus.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; págs: 107 e 110)

8 de setembro de 2011

SEPARAÇÃO CRIATIVA


Se meu filho explode e avisa que não me ama, não irei castigá-lo ou obrigarei que ele desminta na minha frente. Não o puxarei pelos braços, não responderei para procurar um pai diferente, não subirei no púlpito e ordenarei maldições. Tem a liberdade para me odiar. Eu sei que ele me ama. Eu sei que ele me quer. A sabedoria não está em evitar o sofrimento, e sim em não fugir dele. Já observei casamentos desfeitos porque um falou para o outro que acabou e não voltava mais. E nenhum dos dois cedeu e insistiu e perguntou de novo. Passaram a história inteira para provar o que ele ou ela desperdiçou e o dano irreparável de suas frases. Enterremos logo nossas maldades para velar as injúrias. É só oferecer ao nosso par a mesma capacidade que termos de nos perdoar. Desapareceria metade dos problemas. Os inimigos são netos de nossas teimosias.

Castigamos com silêncio quem temos certeza de que nos ama; torturamos com silêncio quem temos certeza de que nos ama; somos indiferentes a quem temos certeza de que nos ama. Por uma palavra dita na dificuldade absoluta de comunicação. Não vale o que foi vivido antes, será enviado um boleto bancário de um grito, de um palavrão, de uma observação injusta. A cobrança será eterna quando seu significado era provisório, próprio do desabafo, de um momento infeliz. Não conheço dor que não seja desajeitada; ela vai declarar do jeito errado e do modo errado. Por que não desculpar? Terapeutas conhecem o assunto a fundo. Toda discussão é um desespero e não podem sair agrados e elogios. Mesmo assim, fazemos de conta que é difamação e desrespeito. Mais fácil odiar do que continuar trabalhando as próprias limitações. O boicote é uma forma de educar pelo sacrifício. A pior forma. É ficar preocupado em honrar o castigo. É preparar uma vingança ao invés de se distanciar um pouco para entender o que gerou a discórdia.

Trata-se ainda de um sacrifício mútuo, os dois vão perder a possibilidade de criar uma intimidade maior e mais generosa. Aquele que atacou pedia ajuda. E atacou, pois não sabia justamente pedir ajuda. Preocupados em nos defender, não alcançamos o apelo e retribuímos o inferno. A palavra engana. A palavra manda embora e o corpo pede um abraço. Há de se procurar o gesto. O que me interessa é o gesto, o resto da palavra. A origem. Se aquilo foi feito para permanecer mais perto. (...) É na briga que mostramos nossa criatividade. Poderemos repetir os clichês: desaparecer para impor uma lição ou aparecer com namorado/namorada para humilhar ou fingir que nada sente. Poderemos repetir as convenções, defender o orgulho acima de tudo, nos preocupar com a honra mais do que com a relação, chamar de preguiça a falta de cuidado com o que foi dito, reclamar responsabilidade, impor ao outro severidade de nossos princípios para mostrar o quanto somos nobres, coerentes e firmes. Ou poderemos contrariar as expectativas com um talento incomum ao humor e ao entendimento. Só um debate tem tréplica. O diálogo não conta o tempo nem limita o direito de falar. Se a separação depende de motivos, a reconciliação é muito melhor, não precisa delas. Amor não dá a última chance, dá chance sempre. O capricho é cuidar do erro. Não há capricho sem usar a borracha e reescrever de novo.

Fabrício Carpinejar (Mulher Perdigueira; págs: 322, 323 e 324)

MEU DEUS CHORA COMIGO

Ter um deus forte é saber que, se ele tivesse querido, ele teria evitado a morte. Se não evitou é porque não quis. Ora, se foi ele quem matou, ele não pode estar sofrendo. Está é feliz, por ter feito o que queria. Assim, ele é culpado da minha dor. Eu e ele estamos muito distantes, infinitamente distantes. Como poderia amá-lo - um deus assim tão cruel? Mas se ele é um deus fraco, isso quer dizer que não foi ele quem ordenou - ele não pôde evitar. Um deus fraco pode chorar comigo. Ele até se desculpa: "Não foi possível evitá-lo. Eu bem que tentei. Veja só estas feridas no meu corpo: elas provam que me esforcei..." Ele chora comigo. Assim, nós dois, eu e o meu deus, choramos juntos. E por isso nos amamos.

Rubem Alves (Navegando; pág: 111)

5 de setembro de 2011

O JARDIM


Quero também ter a felicidade de poder conversar com meus amigos sobre a minha morte. Um dos grandes sofrimentos dos que estão morrendo é perceber que não há ninguém que os acompanhe até a beira do abismo. Eles falam sobre a morte e os outros logo desconversam. "bobagem, você logo estará bom..." E eles então se calam, mergulham no silêncio e na solidão, para não incomodar os vivos. Só lhes resta caminhar sozinhos para o fim. Seria tão mais bonito uma conversa assim: "Ah, vamos sentir muito sua falta. Pode ficar tranqüilo: cuidarei do seu jardim. As coisas que você amou, depois de sua partida, vão se transformar em sacramentos: sinais da sua ausência. Você estará sempre nelas..." Aí os dois se dariam as mãos e chorariam pela tristeza da partida e pela alegria de uma amizade assim tão sincera.

Rubem Alves (Navegando; págs: 28 e 29)

24 de agosto de 2011

SALVOS DA PERFEIÇÃO

Deus de tão perfeito conheceu a plenitude do tédio. De tão cercado pelo idêntico a si mesmo, incapaz de dizer por que hoje não é apenas um reflexo de ontem, sem jamais ter sonhado com um outro dia, enfadado com a previsibilidade de um mundo impecável, inventou o amor. Ou seria, preferiu amar?

A invenção do amor, ou dos amigos, é o encontro com o imperfeito e aqui está a sua grandeza. Nada se compara ao êxtase da imaginação, à adrenalina do inusitado, ao ciúme diante do livre amante, à ardência do anseio pelo melhor, ao sabor fugido do fugaz, à satisfação de um mundo transformado, ao descaso gostosamente dolorido diante do que não mais é caos. Sensações próprias da vida imperfeita, do que está para sempre para ser, dos que sempre podem desejar uma outra coisa. Dos humanos.

Logo depois de inventar o imperfeito, Deus conheceu a lágrima da frustração. A dor mais feliz que espíritos livres sentem. Viu as costas dos que mais amou. Duvidou sem desistir, o Criador chorou mais uma vez. Desta lágrima descobriu o perdão. Lágrima esquentada com afeto e graça.

Malcompreendido pelos amigos, inimigos tolos, pecado, recobriram-no de ídolo. De tão cansados do incerto, angustiados por tanta liberdade, os amigos inventaram ídolos, pretensos profetas e arrogantes senhores do futuro, sacerdotes e magos de um deus acuado, cristos milagreiros da mesmice ressurreta. Inventaram a religião, vestiram-se de absoluto.

Deus, que do absoluto fugiu em desespero, que inventara o imperfeito, imperfeito se fez. Inventou-se entre incertos. Aperfeiçoou a imperfeição. Humanizou-se entre humanos. De tão impreciso, despido das forças do absoluto, igualmente inapreensível, excepcionalmente frágil, tão vivo e tão morto, descortinou o absoluto como quem desnuda o que é mau. Imperfeito, salvou-nos da perfeição.

Elienai Cabral Jr. (Salvos da Perfeição)

14 de agosto de 2011

MEU PAI, MEU HERÓI

Meu herói, conselheiro, amigo e até patrocinador.. rsr Saiba que além de tudo você é um exemplo pra mim, e tenho muito orgulho disso. Obrigado por sempre acreditar em mim e em qualquer coisa que eu me metesse a fazer, na música ou no esporte, entre outras coisas. Não consigo descrever o valor dessa postura em ter me criado livre de tantas coisas. Sou grato, nesse sentido, por ter permitido que eu trilhasse meu próprio caminho. Não tenho a menor dúvidas de que você sempre será uma referência, no modo de encarar a vida, na forma de criar os filhos e até no estilo! hehe. O Queen, uma das bandas que tive o prazer de conhecer através de você, será aquele som que escutarei pro resto da vida, será sempre incrível escutar as músicas deles e lembrar da época em que andávamos no Santana escutando, em alto volume, músicas como: "I Want To Break Free", "I Want It All", "We Are The Champions", "Bicycle Race", "Don't Stop Me Now" E a "Radio Ga Ga" que era minha predileta na época, entre outras...

Espero que continuemos caminhando juntos como sempre estivemos enquanto vivermos. Feliz dia dos pais! Eu te amo.

Diego Cosmo

11 de agosto de 2011

O OLHAR DA ALMA


Há um olhar que sabe discernir o certo
do errado e o errado do certo.
Há um olhar que enxerga quando a obediência
significa desrespeito e a desobediência
representa respeito.
Há um olhar que reconhece os curtos caminhos
longos e os longos caminhos curtos.
Há um olhar que desnuda, que não hesita
em afirmar que existem fidelidades perversas
e traições de grande lealdade.
Esse olhar é o da alma.

Nilton Bonder (A Alma Imoral [contracapa])

10 de agosto de 2011

O GRANDE MAR

Arte: Sarolta Bán

Deus deu aos homens a terra firme, as lagoas e os mares mansos. Mas o mar absoluto, esse Ele deu ao perigo e ao abismo. Então, o jeito é só navegar no marzinho sem perigo e sem abismo! Pode ser. Mas aí o olho da gente fica feito olho de boi, parado, nada vê, e quando vê fica assustado. Deus é perigo, é abismo. Mora no grande mar. Por isso que é só nele que se espelha o céu. Quem viu o céu espelhado no abismo e no perigo esse terá, para sempre, no olhar, o brilho da eternidade.

Rubem Alves (Navegando)

8 de agosto de 2011

INTELIGÊNCIA ALHEIA

Todos nós, todos sem exceção, no que se refere à ciência, ao desenvolvimento, ao pensamento, aos inventos, aos ideais, aos desejos, ao liberalismo, à razão, à experiência e tudo, tudo, tudo, tudo, ainda estamos na primeira classe do colégio! Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia - e nos impregnamos! Não é verdade? Não é verdade o que estou dizendo?

Fiódor Dostoiévski (Crime e Castigo; pág: 214)

5 de agosto de 2011

O AMOR MORA NA SAUDADE


Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. (...) A separação vem da compreensão. Para se ficar junto é melhor não entender. Isso é o oposto do que pensam os casais que vivem brigando. (...) Não é certo que, depois de se entenderem melhor, vão ficar juntos. (...) A razão nada sabe sobre felicidade. A razão é como aqueles gênios da garrafa. Eles não têm vontade própria; não têm imaginação. Só têm poder. (...) O coração, ele mesmo, desconhece a razão. (...) Pois a música é assim: a gente ama sem entender. (...) A linguagem clara e distinta mata a fantasia. (...) Dentro do que ninguém entende cabe tudo: miolo vira couve-flor e o corpo e a cabeça aprovam.

Não há promessas para amarrar o futuro. Há confissões de amor para celebrar o presente. (...) As coisas do amor não podem ser prometidas. Não posso prometer que, pelo resto da minha vida, sorrirei de alegria ao ouvir seu nome. Não posso prometer que, pelo resto de minha vida, sentirei saudades na sua ausência. Sentimentos não podem ser prometidos. Não podem ser prometidos porque não dependem de nossa vontade. (...) O amor sobrevive na esperança de reaparições. (...) Que a amada apareça tal qual Nossa Senhora, abraçada à lua; e o amado, tal qual Nosso Senhor, abraçado ao sol. Pode ser que vocês não acreditem: mas foi para esse momento efêmero de felicidade que o universo foi criado.

Rubem Alves (Retratos de Amor; págs: 17, 39, 43, 44, 54, 83 e 85)

3 de agosto de 2011

A CORRUPÇÃO DO PROTESTANTISMO DIANTE DO CAPITALISMO

Banksy

A análise de Weber não busca estabelecer uma relação causal entre o espírito do protestantismo e o espírito do capitalismo, mas antes, a relação funcional do primeiro em relação ao segundo: o espírito protestante é estruturalmente semelhante ao espírito do capitalismo e por isso mesmo adaptado a ele e adequado à sua expansão. Ora, na medida em que o mundo ocidental se rege pela lógica do capitalismo, podemos concluir que o protestantismo se sente em casa neste mundo, enquanto o catolicismo se descobre como exilado. A ideologia protestante unifica a liberdade do indivíduo, a democracia liberal e o progresso econômico como expressões do espírito do protestantismo. Em resumo: o mundo moderno é um fruto do protestantismo.

O espírito do protestantismo é o espírito de revolta contra todas as ordens institucionalizadas. A Reforma sacralizou a consciência e dessacralizou o mundo. E ao fazer isso a consciência se descobriu sem um lar. A civilização já não tem uma dimensão de profundidade sacral. O sagrado é substituído pelo útil. Não sendo o espelho do divino, mas um simples produto da atividade humana, o mundo já não se presta como ponto de referência para as exigências religiosas da alma. Destituído de sua aura divina, dessacralizado e desencantado, resta o mundo como simples matéria-prima para a atividade dos homens. A reverência à ordem civilizatória é substituída por uma atitude de orgulhosa rebelião contra ela. A grande conquista protestante, sacralizar a personalidade, tem como seu reverso a secularização do mundo, que agora não mais pode ser gozado misticamente como o ventre divino. O mundo não se constrói sobre o sagrado. Ele é fruto do utilitarismo. E com o utilitarismo surge a possibilidade permanente de anomia. E isso porque num mundo em que todas as coisas são medidas em termos de utilidade o próprio homem se sente sempre na iminência de perder-se, com a perda da sua utilidade.

A reforma é o início da incredulidade moderna e a chave para se compreender todos os fenômenos monstruosos dos tempos modernos. No espírito do protestantismo, portanto, estão presentes as causas da desintegração da civilização ocidental.

Weber concorda em que existe uma grande afinidade entre o espírito do protestantismo e o espírito da modernidade. Mas a modernidade, representada pela lógica capitalista e pelas tendências à racionalização do comportamento e à burocratização, longe de ser uma expressão de liberdade e dos ideais democráticos, representa exatamente o seu oposto. O ideal democrático fala de uma organização política que não é imposta verticalmente de cima para baixo. Sua intenção é articular uma ordem que exprima as tendências sociais presentes nas bases humanas da sociedade. Uma sociedade democrática, assim, deveria ser uma objetivação da liberdade, uma expressão e um instrumento da "razão" imanente nos cidadãos como indivíduos.

Existe uma oposição absoluta entre, de um lado, liberdade e carisma e, de outro, as necessidades funcionais de disciplina e organização exigidos por uma sociedade comprometida com o progresso e o crescimento econômico. "Ou modernidade ou liberdade. As duas não podem ser afirmadas ao mesmo tempo". As exigências funcionais do sistema de produção - exatamente o sistema que é o fundamento do progresso - não podem permitir o comportamento individualmente diferenciado, seja ele determinado por exigências do organismo, seja ele determinado por valores pessoais divergentes. Em outras palavras: na medida em que o espírito protestante se ajusta à ética de disciplina e asceticismo do sistema de produção capitalista, torna-se impossível continuar a manter os ideais individualistas, libertários, críticos, que encontramos nos momentos iniciais da Reforma. Se, nas suas origens, o protestantismo foi um protesto da consciência contra as imposições de certo sistema; se ele proclamou a prioridade da "graça" sobre a "lei"; se ele afirmava que a pessoa, em decorrência da sua ligação direta com Deus, devia ser o pólo axiológico para a denúncia profética de todos os sistemas que pretendiam transformar a pessoa em função - o fato histórico, entretanto, é que a ligação do protestantismo com o progresso abortou os seus ideais fundadores.

Rubem Alves (Dogmatismo e Tolerância; págs: 90, 91, 92, 93, 94 e 95)

1 de agosto de 2011

SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu Amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Vinicius de Moraes

HERÓI

Mahatma Gandhi

Meu conceito de Herói mudou. O Herói não era mais quem ganhava o distintivo ou era aplaudido como Harry Potter no final da história. Um Herói era alguém que fazia algo porque era certo, alguém cujas conquistas pudessem ir além de sua morte e que estivesse disposto a morrer desacreditado e esquecido. Heróis não são necessariamente os que ficam com a medalha no fim da história.

Frank Miller

20 de julho de 2011

A VIDA SOBRE AS ALMAS

O movimento evangélico ainda considera uma antropologia grega, que separa corpo, alma, espírito. Essa tricotomia (em alguns círculos, dicotomia) é estranha à cultura semita e ao ensino de Jesus. Alma, na tradição judaica, é vida. Quando o Novo Testamento ensina sobre a salvação de almas, a leitura deve remeter à vida e não ao elemento etéreo, incorpóreo da humanidade que os gregos acreditavam puro. Imaginava-se que a alma estava aprisionada ao corpo. E que na morte a alma sobrevivia em alguma esfera do mundo dos espíritos. E que o corpo se desfazia na terra. Esse pressuposto, de origem neoplatônica, migrou para o cristianismo. Aceitando-se que há uma alma, os esforços missionários, as iniciativas diaconais, tudo se revolverá em salvá-la. Contudo, ao ler-se que a alma é a vida, o ser humano em sua integralidade será o alvo prioritário da igreja.

O movimento evangélico deve despistar a teologia pessimista da queda. O pecado de Adão tornou-se não só a explicação para o mal que se alastrou, como para o sofrimento universal. Entretanto é preciso reafirmar que a humanidade, independentemente da cor da pele, estética física ou cultura, sempre carregou a imago dei - imagem de Deus. Mesmo maculados pelo pecado, mulheres e homens são capazes de ações dignas. É possível resgatar a esperança, a imago dei nunca se perdeu. Ainda há ONGs lutando pela preservação dos santuários ecológicos; médicos e dentistas enfronhados em favelas e campos de refugiados de guerra; missionários cuidando da saúde de índios. Os poetas ainda falam em versos e prosa sobre a beleza da vida e os seresteiros ainda dedilham suas violas, celebrando o amor. Cientistas lutam para encontrar terapias contra o câncer, vacinas contra o vírus HIV; terapeutas ainda se dedicam aos doentes mentais; ainda existem voluntários cuidando de crianças em orfanatos, pais adotando filhos abandonados, mulheres visitando indigentes em hospitais públicos. Com esses, a igreja deve cooperar porque todos os que se empenham pela vida estão ao lado de Deus. Eles são construtores do futuro.

Ricardo Gondim

24 de junho de 2011

SOLIDARIEDADE


Os especialistas no assunto já me disseram que não se deve ajudar pessoas nos semáforos, pois isso é incentivar a malandragem e a mendicância. Mas me diga: o que vou dizer àquela criança que me olha e pede: "Compre, por favor..."? Vou lhe dizer que já contribuo para uma instituição legalmente credenciada? Diga-me: o que é que eu faço com o olhar dela? (...) "E aí me dá uma tristeza no meu peito feito um despeito de eu não saber como lutar...". Só me restam meu inútil sorriso, minhas inúteis palavras, meu inútil real por um pacotinho de balas de goma... (...)
 
A solidariedade é como o ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: "Seja solidário!". A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam... Da mesma forma que o poema é um transbordamento da alma do poeta, e a canção, um transbordamento da alma do compositor... Disse que solidariedade é um sentimento. É esse o sentimento que nos torna humanos. É um sentimento estranho - que perturba nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não são meus, que são de um outro.
 
Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho das suas balas. Eu e a criança - dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço: algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma magia inexplicável, esse sentimento imaginado se aloja em meus próprios sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha vindo, no meu carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem por convicção religiosa, nem por um mandamento ético. É o jeito natural de ser do meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é a forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade o meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade.

Rubem Alves (Por Uma Educação Romântica; págs: 133, 135, 206 e 207)

22 de junho de 2011

ACONTECEU NA ENTRADA DO CÉU... EU JURO!

Pastor Malacraia, fervoroso combatente contra a legalização da livre sodomia no Brasil estava na TV debatendo o tema com Toninho Rainhas (líder nacional da ABGBLT - Associação Brasileira de Gays, Bissexuais, Lésbicas e Transexuais) que, ao contrário do Pastor Malacraia, defendia fervorosamente que homem é homem, menino é menino, macado é macado e viado é viado.

Acontece que, num sei por que cargas d'agua... Há, tá bom vai! Como eu sou o criador desta estória, eu fiz com que dois refletores bem pesados do palco do programa caíssem respectivamente na cabeça dos dois, e as alminhas deles foram subindo ao céu como o Alex Kid quando morre no jogo. Alguém lembra do game Alex Kid do Master System? Alguém? Alguém?

Enfim, como mariposas numa noite de chuva voando em direção à lâmpada quente, os dois como dita a praxe de qualquer imagem do céu, foram caminhando para a luz.

Enquanto Toninho caminhava choramingando mimimimi emocionado com a luz, Malacraia que já esperava algo parecido, estava equacionando na mente o tamanho da mansão celestial que ia receber e quantos diamantes ia ter na coroa dele, sendo que cada diamante equivale ao número de pessoas que se converteram através de seu ministério.

Jesus, junto com o inseparável anjo Gabriel, fez questão de recebê-los!

- Oláááááááá queridos! Bem-vindos ao céu, venham para meus braços, aqui há muitas morad...

No que foi interrompido abruptamente pelo Malacraia, que vociferava com toda sua fúria e saliva:

- COMO ASSIM BEM-VINDOS NO PLURAL??? ACEITARÁS ESTE PERVERTIDO NO CÉU??? NÃO ADMITO ISSO!!! ESTÁ NA PALAVRA, PODE CONFERIR!!! O SENHOR JAVÉ A INSPIROU!!! ME TRAGAM UMA BÍBLIA AÍ QUE EU MOSTRO!!!

Jesus, removendo o cuspe do Malacria de sua barba, olhou para o Gabriel e perguntou:

- Tem algum exemplar do livrão na biblioteca celestial?

- Pera chefe, vou ligar pra lá! Aló!? Ei Salomão, tem algum exemplar do livrão aí!? Tem!? Ótimo! Manda aí! Pronto, apareceu aqui! Valew cara! Não esquece que hoje vai ter sinuquinha lá no Sky Ceia Bar! Os Mamonas vão dar uma canja lá! Massa, combinado! Té mais seu nerd! Pronto chefe, tá aqui o livrão!

Jesus disse:

- Pronto Malacraia, o livro está aqui!

Malacraia respondeu:

- NUUUUUUNCA PENSEI QUE FOSSE TER QUE ENSINAR A BÍBLIA PRO PRÓPRIO JESUS, MAS BORA LÁ, TEM ESSA NÃO! NUNCA É TARDE PRA APRENDER NÉ? POIS Ó, GABRIEL, LEIA AÍ PARA O TEU CHEFE LEVÍTICO 18:22, LEVÍTICO 20:13, 1 CORÍNTIOS 6: 9-10 E ROMANOS 1:18-27. LEIA AÍ! TA TUDO AÍ NA PALAVRA DE DEUS! VAI SE CONTRADIZER AGORA SENHOR??? DEPOIS DE VELHO??? VAI VIRAR O RICARDO GONDIM AGORA??? ME RESPONDA!!!

Jesus, novamente removendo o bombardeio de saliva do Malacraia da barba olhou de lado e perguntou pro Gabriel:

- E aí? confere?

- É chefe, confere!

E Toninho, coitado, soltou uns mimimi's mais mimimi's ainda!

Jesus disse:

- Poise é, diante disso não me resta muita coisa a fazer né!? Pô Toninho, foi por pouco meu velho, desculpa aí qualquer coisa viu! Por mim você entrava, de verdade, mas sabe como são os pais né, meu Pai Javé é muito cabeça dura para mudanças! Perfeccionista no que diz respeito a onde encaixar as genitálias! Ele quer que tudo seja de acordo com o propósito natural que Ele criou. Trocando em miúdos, cú foi feito pra cagar! Eu sei, meu pai é assim mesmo! É muito difícil mudar a cabeça de um velho. Quase que Ele não deixava eu descer à terra! E mesmo assim, quando eu voltei de lá todo arrebentado Ele foi logo jogando na minha cara: - Eu num disse? Tooooooome pra você aprender! Ainda vai? És muito teimoso meu filho! Etc. Enfim... Vá entender Ele né!? (Respirou fundo e prosseguiu...) Pois bem, diante do livrão não há nada que eu possa fazer. Gabriel, leve os dois lá pra baixo!

Enquanto o Toninho soltava um xilique ameaçando um desmaio com os mimimi's mais altos que já chorou na vida. Malacraia pertubado, atordoado, alucinado, sem acreditar, surpreso com a sentença vociferou:

- COMÉ QUE ÉÉÉÉÉÉ??? ISSO É UM ABSURDO SENHOR!!! QUEM FOI EFEMINADO, SODOMITA, QUE DEIXOU O COSTUME NATURAL, FOI PROMÍSCUO, DEFENDEU A PL-122, ENFIM, QUEM DEU O CÚ AQUI FOI ELE SENHOR!!!

No que Jesus, depois de novamente limpar a barba do cuspe do Malacraia respondeu:

- É verdade meu filho, ele deu o cú. Mas convenhamos Malacraia, francamente, você foi muito pau-no-cú* com seu irmão Toninho agora! Então, pau no cú por pau-no-cú, desce os dois! Assunto encerrado!

Portanto, quem afirma estar na luz mas é pau-no-cú com seu irmão, continua nas trevas.
1 joão 2.9 (Traduzido dos originais para o português por Falcão, humorista cearense)

* Pau-no-cú (Dicionário cearense) - Pessoa extremamente babaca, que gosta de prejudicar as outras ou gosta de ver os outros em dificuldade. Ex. "O motorista pau-no-cú me fechou no cruzamento e eu atropelei a velha!"

George Facundo (Mundo Facundo)

15 de junho de 2011

EM NOME DE JESUS

O drama da narrativa bíblica reflete, em muitos sentidos, um árduo esforço divino para eliminar da mente humana o conceito de magia: a noção de que, através de fórmulas mágicas ou procedimentos estabelecidos, Deus ou o universo podem ser manipulados para atingirmos o objeto que temos em mente. Desde a primeira página, um dos traços mais distintivos do Deus das Escrituras é que ele não pode ser convencido a fazer o que não tencionava fazer em primeiro lugar. Não há ritual ou palavra mágica que possa torcer o seu braço a fazer o que queremos. Se Deus concede o que homens lhe pedem é reflexo da sua magnanimidade e da intimidade de relacionamento que ele propõe, jamais da habilidade humana em manipulá-lo.

Essa obsessão divina em apagar da experiência humana a ideia da magia explica muito nas filigranas dos mandamentos e da lei de Moisés. Israel não deve ter "outros deuses além de mim", entre outras coisas, porque os deuses dos outros povos são entidades manipuláveis - aceitam suborno, dobram-se diante do ritual certo, vendem-se por um sacrifício, negociam, especulam e cedem a barganhas. Deus sabe que não é assim que o seu universo funciona, e não quer que seu povo adote essa visão distorcida do mundo. Pela mesma razão ele deita rigorosas proibições contra feitiçaria, amuletos e toda espécie de adivinhação.

O próprio regime de sacrifícios não pressupõe nenhum controle mágico do mundo; as prescrições deixam muito claro que trata-se de provisão graciosa para a purificação dos pecados, e não de instrumento de manipulação. Deus faz alianças e assina contratos que beneficiam outros além de si mesmo, mas não distribui senhas ou abracadabras. No mundo dele você pode pedir, mas não pode obter o que quer por mágica, isto é, pela força e pela argúcia.

O que o Primeiro Testamento elucida o Novo escancara: Jesus passeia pelo mundo demolindo a noção essencialmente mágica de favor prestado e retribuição. Deus - explica o Filho do Homem - não distingue méritos e não rebaixa-se a troca de favores, mas "faz que o seu sol se levante sobre maus e bons". Seus filhos não devem recorrer a repetitivas fórmulas mágicas em suas orações, "porque vosso pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lhe pedirdes". Não é o pecado nem o bom comportamento que explicam as desgraças ou as felicidades, porque o mundo não funciona pela lógica simplista e retributiva da magia ("Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido essas coisas?").

O universo - Jesus explica - funciona pela lógica singular da graça, não pela lógica humana da magia e da retribuição. Esta é, essencialmente, a natureza da boa nova do reino: Deus não pode ser manipulado a fazer o bem que já está disposto a fazer em primeiro lugar.

A magia, no entanto, tem um brilho sedutor, e os cristãos resvalam periodicamente  nela: recorremos cheios de esperança a óleos milagrosos, profetas curandeiros, caixinhas oraculares de versículos, bibliomancia, quarentenas de oração e copos d'água. Mesmo a obsessão cristã com o domingo é essencialmente mágica, quando o apóstolo alerta a não cairmos na velha armadilha de "dias de festa, ou lua nova, ou sábados", coisa que "têm aparência de sabedoria e de rigor ascético [...], mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne".

O emblema final e mais eloquente da capitulação cristã a uma visão mágica do mundo talvez esteja no abuso, popular à náusea entre evangélicos e pentecostais, da expressão "em [o] nome de Jesus". Orar e pedir "em nome de Jesus", conforme prescrito no Novo Testamento, era provavelmente para ser entendido como se lê; seria orar "como Jesus oraria", ou pedir "imbuído do espírito de Jesus". Com o tempo, o enfoque migrou do espírito para a letra; transferiu-se da pessoa e da postura de Jesus para as palavras, imbuídas supostamente de autoridade e poderes sobrenaturais (de forma semelhante ao Shem Hamphoras da tradição judaica medieval). O conteúdo reduziu-se a fórmula, abracadabra que abre - esperamos - todas as portas.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 34, 35 e 36)

SER DO CEARÁ

Ser do Ceará é mais do que nascer no Ceará, é conseguir reconhecer, à distância, uma cabecinha redonda, um sotaque cantado, uma orelha de abano, um jeito maroto de encarar a vida.

Ser do Ceará é saber a estação certa de colher um sapoti, conhecer os vários tipos de manga e nunca comprar ata verde demais; é dar sabor a um baião de dois com queijo coalho.

Ser do Ceará é gostar de cocada, de suco de tamarindo, de siriguela vermelha, de água de côco docinha.

Ser do Ceará é engolir o final dos diminutivos - cafezinho vira cafezim; Antônio vira Toim; bonzinho vira bonzim. Lá se fala aperreio na hora do sufoco; o apressado é avexado; o triste fica de lundu; quem cria problemas, bota boneco.

Ser do Ceará é morar onde os muros são baixos; lá todo mundo sabe da vida alheia. A melhor conversa entre cearense é fofocar. Aparecer em coluna social sempre foi o máximo. Pense nos que pertencem a família com pedigree? Eles fazem parte dos eleitos: Studart, Frota, Távora, Jeiressati, esses, sim, são considerados o supra-sumo.

No Ceará não se compra casa do lado do sol; ninguém valoriza casa com a frente voltada para o poente. O sol não perdoa; é inclemente, ardido, feroz, cansativo. No Ceará, quem não souber lhe dar com o astro rei, dura bem poquim. Entre dez da manhã e cinco da tarde, esse bichim brilhante deixa todo mundo melado; não existem peles secas no Ceará, todas são oleosas.

Ser do Ceará é aprender a dormir de rede, a gostar do cheiro de lençol limpo, a tomar banho frio, a valorizar a brisa do mar. Lá o perfume de sabonete tem outro valor. No Ceará as mulheres não usam meias finas, os homens não toleram gravatas e as crianças não sabem o que é uma blusa de lã.

Ser do Ceará é ter orgulho de afirmar que pertence à terra de José de Alencar, Patativa do Assaré, Fagner, Eleazar de Carvalho, Clóvis Bevilácqua. Lá amam-se as artes. Não tem coisa mais bonita que assistir a um repente na praça do Ferreira. Como se cria repente com facilidade. Está no sangue conversar com rima.

Ser do Ceará é lidar com umidade, com camisas empapadas de suor, com mofo, com moscas aos milhões, com muriçocas impertinentes, com baratas avantajadas, com viroses brabas, com desidratação súbitas. Lá os fracos morrem rapidim. O darwinismo, teoria da sobrevivência dos mais fortes, se prova facim. No Ceará, nuvens negras são prenúncio de bom tempo e relâmpago, uma benção. Em dia chuvoso ninguém quer sair de casa.

Ser do Ceará é rir por tudo. E tudo vira piada. Em um dia lendário, estava nublado, quando o sol resolveu rebentar as nuvens... E levou uma sonora vaia. Não conheço nenhum povo que tenha vaiado a estrela maior.

Os cearenses são antes de tudo uns fortes. Ao mesmo tempo, deliciosamente bons e perversamente maus. Lá é terra de pistoleiro e de santo, de revolucionário e de coronel caudilho, de guerreiro e de preguiçoso.

Sou cearense. E por mais que tenha me afastado, não consegui apagar o meu amor pelo chão que me acolheu no mundo. Lá nasci, casei e tive filhos. No Ceará, despertei para o mundo, como também, infelizmente, sepultei o restim de esperança que nutria pela humanidade. O Ceará foi o meu ninho e é o túmulo dos meus ideais. Em Fortaleza, tive as maiores alegrias e as mais duras agonias.

Contudo e apesar de tudo, continuo enamorado do meu berço. Não pretendo desvencilhar-me de ti, loira desposada do sol.

11 de junho de 2011

PREITO AOS AMIGOS

O amigo é aquele que tem todos os motivos para desistir de você e não desiste. Você fez por merecer a separação. Exagerou. Afastou o braço, gritou que ele não o compreende. Mas o amigo entende até na incompreensão. Aguarda entender. Eu preciso de um amigo que não me renuncie quando já desisti. Que me lembre de não desistir. Que seja insistente como o esquecimento dos velhos. Que desperte o meu humor no desespero, que se desespere com a ausência de notícias. Um amigo que não numere as páginas do livro. Toda página pode ser a mesma. Um amigo que sopre meu rosto perto de sua boca, como uma gaita de mão. Um amigo capaz de esconder seu amor para proteger a amizade e de me aconselhar a seguir o que ele tinha vontade. Um amigo que desconheça minha infância para repeti-la, que conheça minhas dores para não tocá-las, que assobie minha alegria para alardeá-la. Que não me torture com os meus defeitos. Que me perdoe por não ser como ele. Aliás, que me agradeça por não ser igual a ele. Um amigo que não use meus segredos para ganhar outros amigos. Um amigo que abra o vidro do carro para apanhar o resto do céu. Que cante alto no volante no momento em que ansiava pelo silêncio e me obrigue a dispensar a timidez para desafinar junto. Na estrada, o vento também canta de olhos fechados. Um amigo com cheiro de cortina. Isso: cheiro de cortina, com a experiência de enrolar várias e várias vezes o corpo na cortina. E que tenha recebido beijos dos pais com o tecido arregalado no rosto. Quem se escondeu na cortina deu giros dentro de si e de seus problemas e aprendeu a regressar. O amigo do primeiro desejo, não do último. O amigo que não me espera no recreio, o amigo que me espera no final da aula. O amigo que é a haste do mar, que não fica de pé no barco, para não desequilibrá-lo. Não quero um amigo que fuja na primeira ofensa, que se isole ofendido num canto, amarrado no orgulho, condicionado às palavras. Um amigo que não fale por mim, que fale através de mim. Não quero um amigo que me ofenda porque não atendi suas expectativas. Amigo não tem expectativas, tem esperança. O amigo vai procurá-lo não sendo necessário. Vai aumentá-lo enquanto está diminuído e vai diminuí-lo para preveni-lo da ambição. O amigo é do contra, ao seu lado. O amigo dirá as verdades por respeito, não se eximirá de opinar, tudo com zelo e contenção. Não abandonará a corda da pandorga ainda que ela sirva de fio telefônico para chuva. Tive amigos que se fecharam, desapareceram, que me trocaram por uma fofoca, que chegaram à porta e recuaram ao portão. Esses amigos não foram amigos, só se é amigo depois da amizade. Depois de sofrer com a amizade. O amigo é como um irmão, que se briga feio, se discute aos pontapés e palavrões e volta a se falar. Volta a se falar porque é irmão. O amigo sempre volta. Pensando bem, não volta, nunca saiu do lugar. Ele é a rua que atravesso para chegar em casa.

Fabrício Carpinejar


Queen (Friends Will Be Friends - Budapest 1986)

3 de junho de 2011

VOAR

Não me recordo o nome do autor. Mas não importa. O texto vale por ele mesmo e não pelo nome daquele que o escreveu. Eu o reconto com as minhas palavras. Havia um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tão lindo! Mas era uma beleza que doía. O cansaço das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando, as espingardas dos caçadores... Foi assim que um pato selvagem, olhando lá das alturas para essa terra de anões aqui em baixo, viu um bando de patos domésticos. Estavam tranqüilamente deitados à sombra de uma árvore, poupados do esforço de voar. E havia comida em abundância. O pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, desceu e passou a viver a vida que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos até que de novo chegou o tempo da migração dos patos. Eles apareciam, lá no fundo do azul do céu, formações em "V", grasnando, um grupo após o outro. Aquela visão dos patos em vôo, a memória das alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado. Uma saudade, uma nostalgia de belezas, o fascínio do perigo e o vazio que se abria... Até que não foi mais possível agüentar. Resolveu voltar a ser pato selvagem. Abriu suas asas e bateu-as para voar, como outrora, mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste de não poder voar.

Rubem Alves (Religião e Repressão; pág: 8)

30 de maio de 2011

DEUSES E HOMENS

Para quem vive a cristandade do nosso lado do planeta a salvação é entendida, fundamentalmente, em termos jurídicos. A partir de uma leitura pouco imparcial das cartas do Apóstolo, nossa tradição acabou concluindo que a salvação é uma mudança de status legal, um indulto emitido pelo juiz em favor de quem concorda em dar crédito ao caráter remissório do sacrifício do advogado. Não é assim na metade oriental da cristandade, a igreja chamada de Ortodoxa e que gerou gente notável como Dostoiévski e Tolstói. Nossa igreja e a ortodoxa são gêmeas separadas não muito depois do nascimento, mas que desde a cisão não conseguem entender direito as idéias e o comportamento uma da outra. Por exemplo, ambas concordam que o homem carece de uma salvação que só Jesus pode dar - mas discordam sobre de que Jesus salva o homem, e para quê. Para os cristãos ortodoxos, a essência da salvação não está na justificação, mas na deificação (grego theosis) - o processo de identificação completa dos homens com Deus. Nos documentos da igreja primitiva a deificação não merece menos destaque do que a justificação, mas a theosis como conceito teológico não comparece no pensamento cristão ocidental há mais de mil anos.

O evangelho afirma que a todos que acolheram sua encarnação Deus "deu o poder de se tornarem filhos de Deus". Como Pedro explicitou em outro lugar, trata-se de conceber a homens que se tornem participantes da natureza divina - o que, convenhamos, não é pouca coisa. Essa é a lógica da deificação resumida numa única frase de Atanásio: "Se o Verbo tornou-se homem foi para que homens se tornassem deuses". Os ortodoxos e seus antecessores deixam claro, no entanto, que o milagre da deificação não está em tornar o cristão um deus independente, digno, ele mesmo, de adoração. Agostinho raciocina que, "se somos feitos filhos de Deus, somos da mesma forma feito deuses", mas esclarece: "Deus quer fazer de você um deus; não por natureza ou nascimento, mas por graça e por adoção". Atanásio também opina que "somos como Deus por imitação, não por natureza". A ideia está em imitar Deus em sua revelação máxima, a pessoa de Jesus. Aqui está o mistério: a deificação diz respeito muito mais a aprendermos a ser gente do que a ser deuses.

João Crisóstomo (349-407), pregador de Antioquia que a ajudou a cristalizar o que viria a ser o pensamento dos cristãos ortodoxos sobre a deificação, ensinava que o mistério da redenção está indelevelmente associado ao mistério da encarnação. Isto é, a salvação diz pelo menos tanto respeito à vida de Cristo quanto à sua morte. A encarnação, para Crisóstomo, não só revelara Deus para a humanidade: revelara também a verdadeira humanidade para a humanidade. Imitar a legitimidade da vida terrena de Jesus é infundir-se do sopro vital de Deus, o regenerador "espírito de Cristo" - em letras tanto maiúsculas quanto minúsculas. O fim da deificação (e, portanto, da salvação) é restaurar no homem a imagem da divindade impressa nele por Deus na criação, imagem que Jesus estampou integralmente. Deus quer que sejamos deuses para que aprendamos finalmente a ser homens. No pensamento ortodoxo a salvação instila uma mudança real na natureza humana; não se trata - como normalmente cremos aqui no Ocidente - de uma mudança relativa e temporária, a ser melhor implantada em momento oportuno. Para nós, o homem é salvo da condenação; para os cristãos ortodoxos, é salvo da mediocridade. Para nós o homem é salvo para viver com Deus um dia; para os ortodoxos, é salvo para viver como Deus hoje.

Nas palavras de Crisóstomo:

"Visto que Cristo ascendeu ao céu, sua carne tornou-se, como as primícias, o princípio dos que dormem. Ele abençoou a humanidade inteira através dessa única carne e desse único princípio. Antes, por causa do pecado, nada era mais abjeto do que o homem, enquanto agora nada é mais honrado do que ele. Através do Cristo ressurreto e ascendido, o homem vence a corrupção e adquire a incorrupção. Vence a morte, porque a morte foi inteiramente abolida e não aparece em lugar algum, enquanto o homem adquire imortalidade e é deificado. Deus e humanidade tornaram-se de fato uma única raça."

A obsessão forense da igreja ocidental fez com que nos concentrássemos quase que exclusivamente nos méritos da morte de Cristo. O terrível preço dessa ênfase foi que perdemos de vista os méritos de sua vida e sua encarnação. Por deixarmos de considerar o caráter do Jesus dos evangelhos, a teologia ocidental tornou-se eminentemente racionalista, intelectual e escolástica; perdeu contato com as necessidades da vida real e a espiritualidade do homem comum. Perdeu o dom de lavar pés e ensinar lavradores. Ocupou-se em entender a revelação racionalmente e explicá-la com argumentos lógicos a uma audiência sofisticada. Passamos a crer que a salvação é questão de aceitação intelectual da verdade, sem relação alguma com a vida real de Deus ou com a nossa. Perdemos no processo o dom que Jesus veio nos conceder, o de sermos gente; agentes humanizadores num mundo desumano e deuses suplentes num mundo sem Deus. Como sempre acontece, o que nos falta é voltar aos princípios mais fundamentais da humanidade de Jesus - o Deus encarnado que escolheu chamar a si mesmo de Filho do Homem.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 203, 204 e 205)