26 de abril de 2010

AS TRANSGRESSÕES DA INTELIGÊNCIA


No campo da inteligência, a tremenda vantagem das pessoas sobre os computadores não está na capacidade de processamento, mas no fato de que aparentemente não pensamos, como eles, a partir de regras. Nosso modo de pensar é analógico, ou seja, pastoso, intuitivo, informe e difícil de sintetizar em laboratório. Não precisamos, como os computadores, de regras que nos ensinem a transgredir determinadas regras a fim de simular comportamento inteligente. Quebrar regras é natural em nós. O contraponto deste contraponto? A desvantagem de não pensar através de regras é que, ao contrário de nossos irmãos cibernéticos, nós, humanos, só pensamos quando queremos pensar. A inteligência está pronta, mas a vontade é fraca, e em situações de conforto moderado para cima costumamos preferir o ócio e o entretenimento à produção intelectual, à pesquisa e à solução dos problemas da humanidade.

O verdadeiro enigma não está em por que demoramos tanto a obter resultados com inteligência artificial, mas em por que, tendo nesta era tantos recursos sem precedentes e ferramentas poderosas à nossa disposição - digamos, computadores -, recusamo-nos a pôr em uso a nossa. Usamos o computador para jogar paciência, o processador de texto para imprimir listas de compras, a internet para encontrar pornografia e as horas vagas para consumir o Big Brother. Ninguém em sã consciência deveria nos acusar de comportamento inteligente. Pensando bem, é muito natural supor que computadores inteligentes tenham assumido o controle da sociedade e vivamos em ignorante bem-aventurança suprindo energia à Matrix. Ou talvez esta seja uma imagem implantada por roteiristas de Hollywood para que nutramos a ilusão de sermos de alguma forma úteis.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 253)

23 de abril de 2010

O LABIRINTO É CONHECIDO



Nem sequer teremos de correr os riscos da aventura, sozinhos, pois os heróis de todos os tempos nos procederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas de seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.

Joseph Campbell

18 de abril de 2010

CALVINISMO E PREDESTINAÇÃO


No que interessa para a nossa discussão é preciso dizer que o calvinismo enfatiza tanto a tremenda soberania de Deus (Deus faz o que quer) quanto a tremenda incompetência do homem (o homem é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa de bom). O calvinista crê encontrar na Bíblia que Deus é soberano, e entende com isso que o livre-arbítrio humano é coisa que não existe. O homem, atolado até o pescoço na fossa do pecado, não tem nenhuma inclinação, capacidade ou independência moral para desejar a Deus, quanto menos o cacife para escolher tomar o lado divino a fim de encontrar a salvação. Os que são salvos são salvos por iniciativa incondicional de Deus, tomada na eternidade antes de o tempo começar a se desenrolar - ou seja, não com base em qualquer mérito, disposição em mudar ou manifestação de fé do indivíduo favorecido. A morte sacrificial de Cristo não beneficia toda a humanidade, mas apenas essa porcentagem de eleitos que Deus escolheu em sua misericórdia e sem precisar dar explicações a ninguém. Essa graça concedida em favor dos eleitos é "irresistível" - isto é, do mesmo modo que não fez nada para merecê-la, o predestinado não tem liberdade para rejeitá-la e vai acabar cedendo a ela na hora certa, e para sempre. Os outros, predestinados à destruição, não têm, por um lado, espaço de manobra para mudar o próprio destino e, por outro, direito a reclamar dele.

O Calvinismo resulta da ideia, levada a suas últimas consequências lógicas, de predestinação. Se Deus predestinou, a graça é irresistível. Se Deus predestinou, não foi para todos que Jesus morreu. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma ilusão e uma farsa. Se Deus predestinou, ele conhece o futuro por inteiro e a história está pronta, apenas não terminou de ser filmada. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma farsa. Se Deus predestinou, Jesus morreu para beneficiar uma elite arbitrária de eleitos, o que é moralmente inaceitável e incompatível com o caráter amoroso e inclusivo de Deus revelado no tom geral da Escritura.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 185, 186, 187 e 190)

16 de abril de 2010

A FÉ NÃO É AQUILO EM QUE SE ACREDITA

Crença é aquilo que professamos acreditar; é o conteúdo doutrinário peculiar a nossa facção religiosa, expresso com palavras muito bem escolhidas em nossas declarações de fé. Não há, em contrapartida, conjunto de palavras suficiente para definir adequadamente a fé. Nossas crenças são passíveis de exposição, mas nossa fé é questão pessoal - seu conteúdo é o mistério tremendo, a tensão superficial entre mim e o universo, entre mim e o desconhecido, entre mim e o futuro, entre mim e a morte, entre mim e o outro, enter mim e Deus.

Minha fé não é aquilo em que acredito. Minha fé não está naquilo em que acredito, e nem poderia estar. Minha fé não é adequadamente expressa por aquilo em que acredito, e nem poderia ser. Como lembra Ellul, "toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham porque satisfazem a nossa necessidade de religião". "A crença é confortadora", observa Ellul. "A pessoa que vive no mundo da crença sente-se segura".

A fé deixa-me sozinho com um Deus que pode não estar lá. A fé convida-me a um grau de liberdade que posso não ter o desejo de experimentar. A fé quer tirar-me da zona de conforto da crença e levar-me para regiões de mim mesmo e dos outros aonde não quero ir. A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A crença explica sensatamente aquilo em que acredita, a fé exige loucamente que eu prove. Nossas crenças são âncoras de legitimação, que nos mantêm seguros no lugar mas nos impedem de seguir adiante.

Não tenho como recomendar a crença; sua única façanha é nos reunir em agremiações, cada uma crendo-se mais notável que a outra e chamando seu próprio ambiente corporativo de espiritualidade. Não tenho como endossar a crença; não devo dar a entender que a espiritualidade pode ser adequadamente transmitida através de argumentos e explicações. Nunca deixa de me surpreender que para o cristianismo Deus não enviou para nos salvar um apanhado de recomendações ou uma lista suficiente de crenças, mas uma pessoa. Minha espiritualidade não deve ser vivida ou expressa de forma menos revolucionária.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 145, 146 e 147)

11 de abril de 2010

O ÓCIO [NÃO] CRIATIVO


Graças a uma colonização diferente, o que professamos e praticamos aqui é uma postura virtualmente oposta a de americanos e europeus: eles têm o culto da performance, nós temos o culto do ócio. (...) Nossos colonizadores criam de todo o coração em desfrutar as riquezas deste mundo, mas desconfiavam com a mesma convicção do mérito do trabalho. Sujar as mãos era coisa de escravo, e trocar a nossa roupa e dar-nos banho, trabalho de criado. A agenda do senhor colonial era bocejar entediado, fazer o filho de cada dia, olhar pela janela e ver o espetáculo dos que davam o sangue para acumular riquezas em seu nome. O culto do ócio é a crença de que feliz mesmo é quem é rico sem ter de trabalhar. Pela sua onipresente influência, vivemos todos no Brasil a eterna expectativa de ganhar na loteria, arranjar algum emprego público, de granjear um cargo de confiança, de encontrar o padrinho perfeito, de descansar numa aposentadoria precoce. "Eu não ganho pra isso" é sua rancorosa profissão de fé.

Invejamos os ricos, mas não a ponto de nos dobrarmos à baixeza de economizar para alcançar uma posição financeira mais confortável. Trabalhar, sentimos, já é humilhação suficiente. (...) O trabalho para nós não tem o mesmo objetivo que tem para americanos e europeus. Para eles trabalhar é uma maneira de garantir um futuro melhor; para nós, um modo de prover alguma gratificação instantânea. Se cometemos a baixeza de trabalhar é para viver mesmo que por um instante como se não o precisássemos.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 89 e 90)

9 de abril de 2010

OS ÍNDIOS


É natural pensar que os índios brasileiros tinham mais em comum com hobbits e elfos do que com homens. Por centenas de anos antes do Descobrimento eles conviveram com a paisagem natural sem alterá-la de qualquer forma representativa. Como os seres mais sábios da Terra Média, eles na sua "selvageria" intuíam que destruir a integridade das coisas simples e eternas, como árvores e rochas, era um ataque ainda maior à alma humana do que à alma das coisas.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 317)

7 de abril de 2010

"AMOR É CRISTÃO, SEXO É PAGÃO"


O horror que cristãos de todos matizes nutrem ainda contra o corpo, contra o prazer sensorial e contra a sexualidade não se origina na herança da Bíblia hebraica, na tradição dos apóstolos ou no ensino de Jesus. Ao contrário: nosso pessimismo sexual não tem suas raízes na tradição bíblica, mas na influência exercida pelos filósofos estoicos e gnósticos sobre os cristãos dos quatro primeiros séculos.

Dos estoicos herdamos a hipervalorização do celibato e a ideia da abstinência dentro do casamento como coisa virtuosa. Os estoicos ensinaram-nos a noção extrabíblica de que todo prazer sensorial é uma ameaça e uma tentação, e que, portanto, a única atividade sexual legítima é a que visa à procriação.

Os gnósticos, por sua vez, criam que o mundo físico não era obra de um Deus bom, mas de demônios, e que a incorpórea alma humana era a única centelha de verdadeira luz neste lodaçal de matéria. Dos gnósticos herdamos o desprezo pelo corpo, a demonização da matéria, o desprezo pela experiência sensorial e a hipervalorização do ascetismo.

Na equação do negativismo sexual, sexo nenhum equivale a nenhum prazer, e nenhum prazer equivale a muita virtude. Para o cristianismo histórico, a moralidade ficou para sempre reduzida à moralidade sexual. Perdemos assim a sanidade da visão judaica a respeito do sexo e do prazer, que é favorável e celebratória, e nada tem de neurotizada. Ainda mais importante, perdemos de vista o coração do ensino de Jesus sobre ética e santidade. Nada é simples na moralidade, em especial o reducionismo: nossa tendência em nos sentirmos seguros na abstinência e a tendência correspondente de condenarmos os outros em seus excessos. Jesus não tolerava a mentira, a ganância, o orgulho e a crueldade; nós toleramos tudo isso, mas quem não se submeter ao nossos elevados padrões de moralidade sexual terá de ser excluído do nosso meio.

Os católicos permanecem obcecados com o celibato e com a contracepção; os protestantes permanecem obcecados com a virgindade antes do casamento e com a homossexualidade. A mentalidade evangélica permite a exploração de pessoas pelo capitalismo e a alienação social que ela ocasiona, mas não tolera a união sexual antes da sanção reparadora. O Vaticano ensina que padres não podem casar-se e trata como embaraçosa a infelicidade o fato de que tenham de recorrer eventualmente a meninos. A igreja evangélica norte-americana, patrocinadora ideológica dos avanços militares dos Estados Unidos, é reconhecida, essencialmente, por sua postura anti-homossexual; ou seja, um homem pode matar outro, mas não pode beijá-lo. As campanhas católicas contra o uso de anticoncepcionais são reflexos contemporâneos da antiga luta estoica contra o prazer; a única função legítima do sexo, como ensinava Sêneca, deve permanecer a procriação.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 60, 61 e 62)

AQUILO QUE A IGREJA DÁ A ENTENDER

1 - Que aquela facção da igreja é de algum modo mais notável, e, portanto, mais legítima, que todas as outras.

2 - Que o modo genuíno de se exercer o cristianismo é estar presente nas reuniões regulares e demais atividades de determinada agremiação, ou seja, que a devoção é uma espécie de prêmio de assiduidade.

3 - Que o conteúdo da crença é mais importante que o desafio da fé.

4 - Que o caminho do afastamento do mundo, segundo o exemplo de João Batista, é mais digno de imitação que o caminho do envolvimento com o mundo, segundo a vida de Jesus.

5 - Que o modo de vida baseado na busca circular pela legitimação é mais respeitável que o das pessoas que conseguem viver sem recorrer a esses refrigérios.

6 - Que o modo adequado de honrar a herança de Jesus é dançar em celebração ao redor do seu nome, ignorando em grande parte o que ele fez e diz.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 39)

5 de abril de 2010

SERMÃO DO MONTE


Todos querem a ordem e sabedoria de Paulo,
mas nem todos querem a desordem e ousadia de Jesus.
Todos querem o respeito e liderança de Moisés,
mas nem todos querem a vergonha e simplicidade de Jesus.
Todos buscam o poder de Eliseu,
mas nem todos a fraqueza de Jesus.
Todos almejam a glória de Davi,
mas nem todos o vexame de Jesus.
Todos querem as palavras de Isaias,
mas nem todos a pregação ao pobre de Jesus.
Todos pregam o zelo e temor dos profetas,
mas nem todos a graça e subversão de Jesus.
Todos querem o céu de Elias,
mas nem todos querem o inferno de Jesus.
Todos querem a ressurreição de Jesus,
nem todos a páscoa de Jesus.

Verticondes


Jesus contagia e atrai gente de todas as classes sociais, etnias, línguas, raças e nações (Ap 5.9-10). Convoca os discípulos com vistas à formação de uma comunidade de homens e mulheres capazes de se permitir serem transformados por novas virtudes. E é basicamente dessas novas bem-aventuranças que o Sermão do Monte trata com sutileza e profundidade.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; pág: 41)