9 de dezembro de 2010

É AGORA OU NUNCA!

Mas entendi muito cedo que uma vida se passa num tempinho à-toa, olhando para os adultos ao meu redor, tão apressados, tão estressados por causa do prazo de vencimento, tão ávidos de agora para não pensarem no amanhã... Mas, se tememos o amanhã, é porque não sabemos construir o presente e, quando não sabemos construir o presente, contamos que amanhã saberemos e nos ferramos, porque amanhã acaba sempre por se tornar hoje, não é mesmo? Portanto, não devemos de jeito nenhum esquecer aquilo. É preciso viver com essa certeza de que envelheceremos e não será bonito, nem bom, nem alegre. E pensar que é agora que importa: construir agora, alguma coisa, a qualquer preço, com todas as nossas forças. Sempre ter na cabeça o asilo de idosos a fim de nos superarmos a cada dia, para tornar cada dia imperecível. Escalar passo a passo nosso próprio Everest e fazê-lo de tal modo que cada passo seja um pouco de eternidade. O futuro serve para isto: para construir o presente com verdadeiros projetos de pessoas vivas.

Muriel Babery (A Elegância do Ouriço; pág: 138)

24 de novembro de 2010

O HOMEM-DEUS


Oh, amo os sonhos dos meus amigos ardentes, jovens, que a sofreguidão de viver deixa trêmulos! "Novos homens virão". "Eles tencionam destruir tudo e começar pela antropofagia. Tolos! A meu ver, nem é preciso destruir nada, mas só e unicamente destruir na humanidade a idéia de Deus, eis de onde é preciso começar! É daí, é daí que se precisa começar - oh, cegos, que nada compreendem! Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era - um paralelo aos períodos geológicos - virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começará o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito" ...e assim por diante, tudo coisas desse gênero. Um primor!"

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; págs: 839 e 840)

16 de novembro de 2010

TALVEZ NÃO HAJA NENHUM JUÍZO FINAL...


Você sabe que não me assusto com profecias do fim do mundo, coisa que certamente também se aplica a você. Mas isso que chamamos de profecias autorrealizáveis me enche de pavor. Pois talvez não exista nenhum céu novo e nenhuma terra nova. Talvez não haja nenhum "juízo final" com a redenção dos crentes. Talvez este planeta seja o único que temos, o nosso único lar e a nossa única pertença. Neste caso, não há nada mais importante que a nossa responsabilidade por ele e pela sua biodiversidade.

Jostein Gaarder (O Castelo Nos Pirineus; pág: 67)

12 de novembro de 2010

O PERDÃO E A MULHER AMADA


Deus te proteja, amável menino, de que um dia tenhas de pedir perdão à mulher amada por uma culpa tua! Particularmente à mulher amada, particularmente, por mais culpado que sejas perante ela! Porque a mulher é, meu irmão, o diabo sabe o que é, eu pelo menos entendo delas! Mas tenta te confessar culpado perante ela, "a culpa é minha, dirias, perdoa, desculpa": aí desabará uma saraivada de censuras! Por nada nesse mundo ela te perdoará com franqueza e simplicidade, mas te humilhará até reduzir-se a um trapo, descontará até o que não houve, levará tudo em conta, não esquecerá nada, acrescentará coisas de sua parte e só então desculpará. E isso ainda sendo a melhor, a melhor entre elas! Raspará até a última mágoa e despejará tudo em tua cabeça. - Tal é, eu te digo, a ferocidade que há nelas, em todas e em cada uma, nesses anjos sem os quais nos é impossível viver! Vê só, meu caro, e eu te digo de modo franco e simples: todo homem decente deve estar sob o tacão de ao menos alguma mulher. Essa é a minha convicção; não é uma convicção, mas um sentimento. O homem deve ser magnânimo, e isso não é uma desonra para o homem. Isso não desabona nem um herói, não desabona nem a César! Mas ainda assim não peças perdão, nunca nem por nada. Lembra-te dessa regra: ela te foi ensinada por teu irmão Dmitri, que se perdeu por causa das mulheres. Não, é melhor que eu mereça alguma coisa de Grucha, mas sem perdão. Eu a venero, Alieksiêi, eu a venero! Só ela não vê isso, não, sempre acha pouco o amor. E me atormenta, me atormenta com o amor. Como era antigamente! Antigamente, só as curvas infernais de seu corpo me atormentavam, mas agora minha alma está embebida de sua alma, e através dela eu mesmo me tornei um homem! Será que nos casarão? Porque sem isso morrerei de ciúme. O fato é que sonho com alguma coisa todo santo dia... O que ela te disse a meu respeito?

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; págs: 771 e 772)

2 de outubro de 2010

O "TODO PODEROSO"

Não tenhas medo d'Ele. Ele impõe medo por sua grandeza diante de nós, é terrível pela altura em que se encontra, mas Sua misericórdia é infinita, por amor iguala-Se a nós e Se alegra em nossa companhia, transforma água em vinho para não interromper a alegria dos convidados, aguarda novos convidados, convida incessantemente outros novos e agora pelos séculos dos séculos. Vê, estão trazendo vinho novo, vê, estão trazendo as vasilhas...

Fiódor Dostoiévski (Os Irmãos Karamázov; pág: 486)

28 de setembro de 2010

A ESPERANÇA É A ÚLTIMA QUE MORRE


Devemos caminhar de olhos abertos em direção a essa armadilha, com coragem, mas com pouca esperança para nós mesmos. Pois, meus senhores, pode muito bem acontecer que literalmente tombemos numa batalha negra longe das terras viventes, de modo que mesmo se Barad-dûr for destruída não viveremos para ver uma nova era. Mas considero que esta é nossa tarefa. E isso é melhor do que perecer, de qualquer forma - como certamente acontecerá, se ficarmos aqui parados - e saber na hora de nossa morte que não vai haver uma nova era.

J.R.R. Tolkien (O Senhor Dos Anéis; pág: 932)

12 de agosto de 2010

A PIEDADE PERVERTIDA

O louvorzão, assim como as vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo, muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma vez que ele é realizado com o intuito de "forçar" uma ação benévola da parte de Deus, como se o culto e o louvor fossem um "sacrifício", como os antigos sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas quais procura-se manipular o poder de Deus.

Ricardo Quadros Gouvêa (A Piedade Pervertida)

6 de agosto de 2010

A SOMBRA VAI RECUAR, E A PAZ VOLTARÁ

É uma lástima a loucura destes dias! - disse Legolas. - Todos aqui são inimigos do único Inimigo, e mesmo assim devo andar como um cego, enquanto o sol alegra a floresta sob as folhas douradas! - Pode ser loucura - disse Haldir. - Mas na verdade o poder do Senhor do Escuro nunca se manifestou tão claramente como na hostilidade que divide todos aqueles que ainda se opõem a ele. (...) Que não ousamos arriscar a segurança de nossa terra confiando demais nos outros. Vivemos atualmente numa ilha rodeada de perigos, e nossas mãos tocam com mais freqüência os arcos que as harpas. (...) O mundo está cheio de perigos, mas ainda há muita coisa bonita, e embora atualmente o amor e a tristeza estejam misturados em todas as terras, talvez o primeiro ainda cresça com mais força. - Existem alguns entre nós que cantam que a Sombra vai recuar, e a paz voltará. Mesmo assim, não acredito que o mundo à nossa volta possa ser o mesmo de antigamente, ou mesmo que a luz do sol possa bilhar com a mesma intensidade. Receio que aos elfos restará, na melhor das hipóteses, uma trégua durante a qual poderão passar para o mar sem serem molestados e deixar a Terra-média para sempre. Sinto por Lothlórien, que tanto amo! A vida seria pobre numa terra onde não nascesse algum mallorn. Mas se existem pés de mallorn do outro lado do Grande Mar, ninguém nunca comentou.

J.J.R. Tolkien (O Senhor Dos Anéis; págs: 362 e 363)

18 de julho de 2010

"DEVER"

- Doutor Breuer, essa hora foi curta demais. Estou ávida por mais um pouco de seu tempo. Posso caminhar com o senhor de volta ao hotel?

O convite impressionou Breuer pela ousadia e masculinidade; entretanto, dos lábios dela, soava como normal, não afetado - a forma natural como as pessoas deveriam conversar e viver. Se uma mulher aprecia a companhia de um homem, por que não lhe dar o braço e pedir para andar com ele? Contudo, que outra mulher sua conhecida teria proferido essas palavras? Estava diante de uma espécie diferente de mulher. Aquela mulher era livre!

- Jamais lastimei tanto declinar um convite - disse Breuer, puxando o braço dela para mais perto dele -, mas é hora de voltar, e voltar sozinho. Minha adorável mas preocupada esposa estará esperando na janela e é meu dever mostrar-me sensível aos sentimentos dela.

- É claro, mas - ela puxou o braço para ficar face a face com ele, auto-contida, vigorosa como um homem - para mim a palavra "dever" é pesada e opressiva. Reduzi meus deveres a apenas um: perpetuar minha liberdade. O casamento e seu séquito de possessão e ciúme escravizam o espírito. Eles jamais me dominarão. Espero, doutor Breuer, que chegue o tempo em que nem o homem nem a mulher sejam tiranizados pelas fraquezas mútuas.

Irvin D. Yalom (Quando Nietzsche Chorou; págs: 22 e 23)

3 de julho de 2010

A MENOS PERCORRIDA

Duas estradas divergiam numa árvore amarela
E me ressenti não poder ambas percorrer
Sendo um só viajante, por muito me detive
E observei uma até quão longe pude
Só para observar que na relva desaparecia.

Então segui pela outra, tão boa quanto,
E talvez por ter melhor reclame
Mais ramos possuía e talvez por ansiar uso
Embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
As tivesse marcado por igual.

E, naquela manhã, em ambas igualmente jaziam
Folhas que passo algum pisara.
Ó deixei a primeira para outro dia!
E sabendo que um caminho leva a outro caminho
Duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro
Em algum ponto, eras e eras ainda nesta existência,
Duas estradas bifurcavam numa árvore,
Eu trilhei a menos percorrida,
E isto fez toda a diferença.

Robert Frost

27 de maio de 2010

E ENQUANTO VIVERMOS...


Enquanto vivermos, sorriremos na medida do possível.
Enquanto vivermos, mudaremos o que for preciso.
Enquanto vivermos, reescreveremos nossa história.
Enquanto vivermos, abraçaremos quem importa.
Enquanto vivermos, consertaremos o erro.
Enquanto vivermos, tentaremos o acerto.
Enquanto vivermos, evitaremos o pecado.
Enquanto vivermos, choraremos pelo acabado.
Enquanto vivermos, nos humanizaremos.
Enquanto vivermos, nos apaixonaremos.
Enquanto vivermos, nos enamoraremos.
Enquanto vivermos, haverá esperança.
Enquanto vivermos, lembremos do lado criança.
Enquanto vivermos, apesar de tudo, demasiadamente vivamos!

Diego Cosmo

24 de maio de 2010

19 de maio de 2010

EM LOUVOR AOS PECADORES


Em grande parte, depois de conviver por décadas com gente santa, só fui conhecer Jesus pessoalmente através dos pecadores. Não fui encontrá-lo na igreja, onde insistíamos que ele morava e onde falávamos metade do tempo sobre ele. Na igreja encontrei meus amigos mais bem-intencionados, muitos deles assustadoramente queridos e carentes, mas oprimidos como eu debaixo de um sistema fundamentado em medo e desejo. Por mais que eu simpatizasse com o calor da instituição e com o mérito das boas intenções, nada eu testemunhava ou vivia da satisfação inerente, a generosidade, a paixão e a terrível liberdade que os evangelhos atribuíam ao Filho do Homem. Cantávamos, chorávamos e nos abraçávamos debaixo do mesmo teto piedoso, mas ali não estava o espírito de Jesus.

Como eu suspeitava, os pecadores não se entregam como nós na igreja a pecados mesquinhos como a hipocrisia, a mentira e o orgulho; abrem eles mão desses amadorismos e tratam da coisa em si, da sem-vergonhice mais vital, sensorial e carnal - sexo, drogas e rock 'n' roll. Não esperava encontrar entre os pecadores, e pela primeira vez na vida, a terna experiência do espírito de Jesus. Não em mim. Neles. Os evangelhos atribuem ao Filho do Homem tremendas paixões, vitalidade, generosidade e independência; o livro de Atos e as cartas falam de cristãos que "tinham tudo em comum" e "eram de um só coração". Em seus momentos mais idealistas Jesus fala em amar os inimigos, dar a outra face, emprestar sem esperar receber de volta, oferecer um banquete a quem não tem como retribuir. Paulo descreve um mundo sem preconceito de sexo, raça ou classe social. João garante que Deus é amor, e que o amor abre mão de qualquer traço de temor. Paradoxalmente, este mundo definido em termos positivos poucos cristãos chegam em qualquer medida a experimentar. Escolhemos nos definir não por essas qualidades afirmativas - aquilo que o apóstolo chama de "Fruto do Espírito" - mas pelo que é negativo e paralisante e opressor contra os outros e nós mesmos: a culpa, a mesquinhez, a repressão, a neurose, a negação, o niilismo. O mundo em que todos se aceitam e se amam, embora faça parte da nossa pregação nominal, nos é aterrorizante por natureza. Tudo em nossa postura batalha contra ele. A "gloriosa liberdade dos filhos de Deus" não nos interessa. Alguém me dê depressa um líder carismático e um rol muito claro de mandamentos - é só o que pedimos.

Entre os pecadores encontrei um universo livre da superficialidade de igreja e da irrelevância burguesa da faculdade. Aqui estava um mundo que escolhia se definir, na prática e não a partir de qualquer discurso ou demagogia, pela aceitação e pelo amor. Aqui estava gente que tinha tudo em comum, até mesmo - onde está, Mamom, a tua vitória? - o dinheiro. Gente que ignorava rótulos de classe, sexo e conta bancária para se tratar como gente no sentido mais fundamental da coisa. Gente que se recusava a ser manipulada pelo desejo e pelo temor, e o fazia entregando-se a um e mandando às favas o outro. A comunhão que experimentam, descobri, não tem limites; sua generosidade, que não espera recompensa que não o instante, não tem paralelo. Os pecadores abrem suas portas uns aos outros a qualquer momento do dia ou da noite; repartem sua droga, seu dinheiro, sua casa e seu pão sem nenhum trâmite ou transação, seja com um irmão importuno seja com o desconhecido em que acabam de tropeçar. Emprestam, terrivelmente, sem esperar receber de volta. Carregam quem precisa ser carregado, descolam um trampo para quem precisa, tiram a camisa para quem vomitou na roupa, emprestam a chave do carro para quem não tem onde fumar, providenciam o apartamento de alguém na praia para o que foi expulso de casa, repartem sem chiar ou cobrem o tanque de gasolina. Trabalham tanto para os outros quanto para si, acolhem com graça incondicional; são compassivos até para com os que não o toleram, longânimos com os que todos já decidiram ser melhor rejeitar. Convivem sem traumas com a consciência, apavorante para nós, de que não são melhores que ninguém.

Entre os pecadores não transita apenas a legitimidade de quem se recusa a ter o que esconder; rola, senhoras e senhores, um amor - e tão forte que lança fora todo o medo. São gente boa no sentido afirmativo da coisa. Gente sensualista, mas raras vezes desonesta. Autoindulgente, mas sempre generosa. Pecadora, mas não proselitista. Matam-se, mas o que fazem pelos outros é só resgatar. Morrem, mas abraçados. Não é difícil entender porque Jesus curtia tanto a companhia dos pecadores e não escondia seu orgulho em associar-se a eles. A integridade existe e a verdadeira comunhão não é uma impossibilidade: os pecadores legítimos não as desconhecem. Louvados sejam nas alturas os grandes pecadores, porque uma porção fundamental de Jesus sobrevive na Terra apenas através deles.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 147, 148, 149 e 150)

10 de maio de 2010

CARTA DE ANDRÉIA

- A oração não é para convencer Deus a se mexer, e sim, para mudar a nós mesmos, e nos empurrar a fazer o que é necessário. Orar pelo fim da corrupção no Brasil não vai adiantar, se não fazemos nada contra isso na prática.
- Por que não existe amor, sem liberdade
- Sim, tem muitas pessoas que nunca fizeram nada para procurar doenças, e morrem de câncer, mas aí é contingência da vida, nosso DNA pode ter falhas que provocam o aparecimento de câncer, nossa comida tem produtos químicos cancerígenos que muitas vezes nem sabemos, o ar que respiramos está cheio de poluentes também cancerígenos.
- Queremos que Deus faça o que Ele ordenou que nós fizéssemos.
- O amor de Deus é vivo, está em nós e precisa ser movimentado por nós. Se não fazemos nem o que poderíamos estar fazendo, podemos acusar Deus e exigir intervenção sobrenatural?
- Se Deus tem um propósito para a vida de cada um de nós, esse propósito certamente tem a ver com expressar amor pelas pessoas.
- Cada um tem o Deus que merece. Tem gente que precisa de um Deus malvado e tirano para andar na linha, tem outras pessoas que são de bom caráter naturalmente, então não conseguem ver Deus dessa forma castigadora e vingativa. E teologias diferentes, muitas vezes são apenas pedaços de um mesmo grande todo, do qual cada um consegue ver só uma parte.
- Creio que a fé pode realizar coisas como curas, mas em casos bastante específicos, e pode também ajudar as pessoas a encararem a vida de uma forma mais positiva; assim como ver os outros como imagem de Deus nos torna pessoas mais compassivas, pacientes. Mas tudo necessita ser treinado, exercitado. É uma escolha diária.

Andréia

7 de maio de 2010

A FAIXA PRETA


Para obter uma faixa preta não é fácil, mas vale a pena. Pode levar um ano; pode levar dez anos. Talvez você nunca a consiga. Quando se compreende que ela não é tão importante quanto a prática em si, provavelmente está se aproximando do nível de faixa preta. Quando você compreende que não importa quanto tempo ou quão duro você treine e que há uma vida inteira de estudo e prática à sua frente até a morte, você provavelmente está chegando perto da faixa preta. Seja qual for o nível que você obtenha, se você achar que "merece" uma faixa preta ou se achar que você agora é "bom o suficiente" para ser um faixa preta, estará fora do caminho e sem dúvida, muito distante de alcançá-la. Treine duro, seja humilde, não se exiba diante do seu mestre ou de outros alunos, não reclame de nenhum encargo e dê o seu melhor em tudo na sua vida. Este é o significado de ser um faixa preta. Ser auto-confiante demais, exibir suas habilidades, ser competitivo, desprezar os outros, demonstrar falta de respeito e escolher aquilo que faz ou não faz (acreditando que alguns trabalhos são indignos de você) caracterizam o aluno que nunca obterá a faixa preta. Aquilo que vestem ao redor da cintura não passa de uma peça de comércio comprada por uns poucos dólares em alguma loja de artigos para artes marciais. A verdadeira faixa preta, usada por um verdadeiro possuidor, é a faixa branca do principiante, tingida de preto pela cor do seu sangue e do seu suor.

Seu treinamento inicial é muito importante: ele determina como você finalmente será como um faixa preta. Em meus muitos anos de ensino, notei que os alunos que estão apenas preocupados em obter a faixa preta desanimam facilmente, assim que percebem que é mais difícil do que esperavam. Alunos que vêm apenas pela prática, sem preocupações com nível ou promoção, sempre se saem bem, não são oprimidos por objetivos superficiais ou irreais. Há uma história famosa sobre Yagyu Matajuro, que era filho da famosa família Yagyu de espadachins so século XVII, no Japão feudal. Ele foi expulso de casa por falta de potencial e de talento e buscou a instrução do mestre Tsukahara Bokuden, na esperança de dominar a arte da espada e reaver a sua posição na família. Em sua entrevista inicial, Matajuro perguntou a Tsukahara, "quanto tempo levará para dominar a espada?" Bokuden respondeu, "oh, cerca de cinco anos se você treinar muito duro." "se eu treinar duas vezes mais duro, quanto tempo levará?" perguntou Matajuro. "nesse caso, dez anos", replicou Bokuden.

Você deve compreender também que embora preencha todos os requisitos, o número certo de técnicas, todas as formalidades, e tenha acumulado o número apropriado de horas de treino, pode ainda não estar qualificado para ser um faixa preta. Obtê-la não é uma entidade quantitativa que se possa medir ou pesar como comprar feijão no mercado. Sua faixa preta está relacionada com você enquanto pessoa, como você se conduz dentro e fora do dojo, sua atitude para com o seu mestre e para com os colegas, seus objetivos na vida, como você lida com os obstáculos em sua vida e como persevera no treinamento são todas condições importantes para a obtenção da faixa preta. Ao mesmo tempo, você se torna um modelo para outros alunos e finalmente alcança o status de professor ou instrutor assistente. No dojo, suas responsabilidades são maiores do que as dos alunos regulares e você é responsável por muito, muito mais do que os estudantes juniores.

Treinar nada tem a ver com ranks ou faixas, troféus ou distintivos. Arte marcial não é simplesmente brincar com as nossas fantasias. Ela se relaciona com a própria vida e a morte, não somente a forma como nos protegemos em uma situação crítica, letal, mas também como protegemos as vidas dos outros. Você não pode ser outra pessoa, não importando se é um astro do cinema, um grande professor ou um multimilionário. Você deve se tornar você mesmo, seu self verdadeiro. Uma pessoal normal vive apenas 50% ou talvez 80% da sua vida, sem nunca saber quem ela é. Um artista marcial vive 100% da sua vida e se torna impecável. É isto o que o verdadeiro faixa preta deve compreender dentro de si mesmo, ele não é ninguém a não ser ele mesmo, e sua prática o conduz a iluminação para dentro da sua verdadeira identidade, seu self real, Esta é a essência de treinar artes marciais.

Para obter a faixa preta, primeiramente pense em perdê-la, não em ganhá-la. Sawaki Kodo, um mestre zen, sempre dizia, "ganhar é sofrer, a perda é iluminação." Se alguém perguntar a diferença entre os artistas marciais das gerações anteriores e aqueles da atualidade, eu resumiria desta forma: os artistas marciais das gerações passadas viam o treinamento como uma "perda". Interromperam tudo por sua arte e por sua prática, deixaram suas famílias, trabalho, segurança, fama, dinheiro, tudo, para se aperfeiçoarem. Hoje pensamos apenas sobre ganhos, "quero isto, quero aquilo." Queremos praticar artes marciais mas também queremos dinheiro, um bom carro, fama, telefones portáteis e tudo aquilo que todo o mundo tem. Shajyamuni Buddha deixou seu reino, seus palácios, uma bela esposa e tudo o mais para finalmente buscar a iluminação. O primeiro estudante de Boddhidharma, considerado o fundador do Kung Fu Shaolin, cortou fora seu braço esquerdo para estudar com seu mestre, Não temos que tomar medidas drásticas, como essa, para aprender artes marciais hoje, mas não devemos esquecer o espírito e a determinação dos grandes mestres do passado.

Quando o estudante vê o seu treino do ponto de vista da perda ao invés do ganho, ele se aproxima do espírito da maestria e verdadeiramente se torna merecedor de uma faixa preta. Somente quando você finalmente pára de pensar em graus, faixas, troféus, fama, dinheiro e na maestria em si mesma, você obterá aquilo que é realmente importante no treinamento. Seja humilde, seja gentil. Cuide dos outros e coloque todos à sua frente. Estudar artes marciais é estudar a si próprio, sua própria identidade, nada tem a ver com grau. Um grande mestre zen disse certa vez: "estudar o zen é esquecê-lo. Esquecer o zen é compreender todas as coisas."

Sensei Wagner Bull (www.aikikai.org.br)


Entrevista com David Kerr

4 de maio de 2010

DESENRAIZAR-SE



O novo santo, propuseram [Simone] Weil e [Dietrich] Bonhoeffer em vidas e vocabulários distintos, teria que abrir mão do conforto de todos os rótulos, até mesmo do que lhe seria mais caro, o do próprio cristianismo. Em seu prefácio a Waiting for God, Leslie A. Fiedler explica assim essa terrível posição:

"Associar-se ao contexto de uma religião particular, sentia ela, teria por um lado exposto Weil ao que ela chamava de "patriotismo eclesiástico", com a conseqüente cegueira para as falhas do seu próprio grupo e as virtudes dos outros; por outro, teria separado Weil da condição dos seres comuns aqui embaixo, que permanecemos todos "alienados, sem raízes, em exílio". O mais terrível dos crimes é colaborar com o desenraizamento de outras pessoas num mundo já por si mesmo alienado; porém a maior das virtudes é desenraizar-se por amor ao próximo e a Deus. "É necessário desenraizar-se," escreve Weil. "corte a árvore, faça dela uma cruz e carregue-a para sempre".

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 301)

26 de abril de 2010

AS TRANSGRESSÕES DA INTELIGÊNCIA


No campo da inteligência, a tremenda vantagem das pessoas sobre os computadores não está na capacidade de processamento, mas no fato de que aparentemente não pensamos, como eles, a partir de regras. Nosso modo de pensar é analógico, ou seja, pastoso, intuitivo, informe e difícil de sintetizar em laboratório. Não precisamos, como os computadores, de regras que nos ensinem a transgredir determinadas regras a fim de simular comportamento inteligente. Quebrar regras é natural em nós. O contraponto deste contraponto? A desvantagem de não pensar através de regras é que, ao contrário de nossos irmãos cibernéticos, nós, humanos, só pensamos quando queremos pensar. A inteligência está pronta, mas a vontade é fraca, e em situações de conforto moderado para cima costumamos preferir o ócio e o entretenimento à produção intelectual, à pesquisa e à solução dos problemas da humanidade.

O verdadeiro enigma não está em por que demoramos tanto a obter resultados com inteligência artificial, mas em por que, tendo nesta era tantos recursos sem precedentes e ferramentas poderosas à nossa disposição - digamos, computadores -, recusamo-nos a pôr em uso a nossa. Usamos o computador para jogar paciência, o processador de texto para imprimir listas de compras, a internet para encontrar pornografia e as horas vagas para consumir o Big Brother. Ninguém em sã consciência deveria nos acusar de comportamento inteligente. Pensando bem, é muito natural supor que computadores inteligentes tenham assumido o controle da sociedade e vivamos em ignorante bem-aventurança suprindo energia à Matrix. Ou talvez esta seja uma imagem implantada por roteiristas de Hollywood para que nutramos a ilusão de sermos de alguma forma úteis.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 253)

23 de abril de 2010

O LABIRINTO É CONHECIDO



Nem sequer teremos de correr os riscos da aventura, sozinhos, pois os heróis de todos os tempos nos procederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos apenas de seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos o centro da nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos, estaremos com o mundo inteiro.

Joseph Campbell

18 de abril de 2010

CALVINISMO E PREDESTINAÇÃO


No que interessa para a nossa discussão é preciso dizer que o calvinismo enfatiza tanto a tremenda soberania de Deus (Deus faz o que quer) quanto a tremenda incompetência do homem (o homem é incapaz de fazer por si mesmo qualquer coisa de bom). O calvinista crê encontrar na Bíblia que Deus é soberano, e entende com isso que o livre-arbítrio humano é coisa que não existe. O homem, atolado até o pescoço na fossa do pecado, não tem nenhuma inclinação, capacidade ou independência moral para desejar a Deus, quanto menos o cacife para escolher tomar o lado divino a fim de encontrar a salvação. Os que são salvos são salvos por iniciativa incondicional de Deus, tomada na eternidade antes de o tempo começar a se desenrolar - ou seja, não com base em qualquer mérito, disposição em mudar ou manifestação de fé do indivíduo favorecido. A morte sacrificial de Cristo não beneficia toda a humanidade, mas apenas essa porcentagem de eleitos que Deus escolheu em sua misericórdia e sem precisar dar explicações a ninguém. Essa graça concedida em favor dos eleitos é "irresistível" - isto é, do mesmo modo que não fez nada para merecê-la, o predestinado não tem liberdade para rejeitá-la e vai acabar cedendo a ela na hora certa, e para sempre. Os outros, predestinados à destruição, não têm, por um lado, espaço de manobra para mudar o próprio destino e, por outro, direito a reclamar dele.

O Calvinismo resulta da ideia, levada a suas últimas consequências lógicas, de predestinação. Se Deus predestinou, a graça é irresistível. Se Deus predestinou, não foi para todos que Jesus morreu. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma ilusão e uma farsa. Se Deus predestinou, ele conhece o futuro por inteiro e a história está pronta, apenas não terminou de ser filmada. Se Deus predestinou, a liberdade humana é uma farsa. Se Deus predestinou, Jesus morreu para beneficiar uma elite arbitrária de eleitos, o que é moralmente inaceitável e incompatível com o caráter amoroso e inclusivo de Deus revelado no tom geral da Escritura.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 185, 186, 187 e 190)

16 de abril de 2010

A FÉ NÃO É AQUILO EM QUE SE ACREDITA

Crença é aquilo que professamos acreditar; é o conteúdo doutrinário peculiar a nossa facção religiosa, expresso com palavras muito bem escolhidas em nossas declarações de fé. Não há, em contrapartida, conjunto de palavras suficiente para definir adequadamente a fé. Nossas crenças são passíveis de exposição, mas nossa fé é questão pessoal - seu conteúdo é o mistério tremendo, a tensão superficial entre mim e o universo, entre mim e o desconhecido, entre mim e o futuro, entre mim e a morte, entre mim e o outro, enter mim e Deus.

Minha fé não é aquilo em que acredito. Minha fé não está naquilo em que acredito, e nem poderia estar. Minha fé não é adequadamente expressa por aquilo em que acredito, e nem poderia ser. Como lembra Ellul, "toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham porque satisfazem a nossa necessidade de religião". "A crença é confortadora", observa Ellul. "A pessoa que vive no mundo da crença sente-se segura".

A fé deixa-me sozinho com um Deus que pode não estar lá. A fé convida-me a um grau de liberdade que posso não ter o desejo de experimentar. A fé quer tirar-me da zona de conforto da crença e levar-me para regiões de mim mesmo e dos outros aonde não quero ir. A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A crença explica sensatamente aquilo em que acredita, a fé exige loucamente que eu prove. Nossas crenças são âncoras de legitimação, que nos mantêm seguros no lugar mas nos impedem de seguir adiante.

Não tenho como recomendar a crença; sua única façanha é nos reunir em agremiações, cada uma crendo-se mais notável que a outra e chamando seu próprio ambiente corporativo de espiritualidade. Não tenho como endossar a crença; não devo dar a entender que a espiritualidade pode ser adequadamente transmitida através de argumentos e explicações. Nunca deixa de me surpreender que para o cristianismo Deus não enviou para nos salvar um apanhado de recomendações ou uma lista suficiente de crenças, mas uma pessoa. Minha espiritualidade não deve ser vivida ou expressa de forma menos revolucionária.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 145, 146 e 147)

11 de abril de 2010

O ÓCIO [NÃO] CRIATIVO


Graças a uma colonização diferente, o que professamos e praticamos aqui é uma postura virtualmente oposta a de americanos e europeus: eles têm o culto da performance, nós temos o culto do ócio. (...) Nossos colonizadores criam de todo o coração em desfrutar as riquezas deste mundo, mas desconfiavam com a mesma convicção do mérito do trabalho. Sujar as mãos era coisa de escravo, e trocar a nossa roupa e dar-nos banho, trabalho de criado. A agenda do senhor colonial era bocejar entediado, fazer o filho de cada dia, olhar pela janela e ver o espetáculo dos que davam o sangue para acumular riquezas em seu nome. O culto do ócio é a crença de que feliz mesmo é quem é rico sem ter de trabalhar. Pela sua onipresente influência, vivemos todos no Brasil a eterna expectativa de ganhar na loteria, arranjar algum emprego público, de granjear um cargo de confiança, de encontrar o padrinho perfeito, de descansar numa aposentadoria precoce. "Eu não ganho pra isso" é sua rancorosa profissão de fé.

Invejamos os ricos, mas não a ponto de nos dobrarmos à baixeza de economizar para alcançar uma posição financeira mais confortável. Trabalhar, sentimos, já é humilhação suficiente. (...) O trabalho para nós não tem o mesmo objetivo que tem para americanos e europeus. Para eles trabalhar é uma maneira de garantir um futuro melhor; para nós, um modo de prover alguma gratificação instantânea. Se cometemos a baixeza de trabalhar é para viver mesmo que por um instante como se não o precisássemos.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 89 e 90)

9 de abril de 2010

OS ÍNDIOS


É natural pensar que os índios brasileiros tinham mais em comum com hobbits e elfos do que com homens. Por centenas de anos antes do Descobrimento eles conviveram com a paisagem natural sem alterá-la de qualquer forma representativa. Como os seres mais sábios da Terra Média, eles na sua "selvageria" intuíam que destruir a integridade das coisas simples e eternas, como árvores e rochas, era um ataque ainda maior à alma humana do que à alma das coisas.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 317)

7 de abril de 2010

"AMOR É CRISTÃO, SEXO É PAGÃO"


O horror que cristãos de todos matizes nutrem ainda contra o corpo, contra o prazer sensorial e contra a sexualidade não se origina na herança da Bíblia hebraica, na tradição dos apóstolos ou no ensino de Jesus. Ao contrário: nosso pessimismo sexual não tem suas raízes na tradição bíblica, mas na influência exercida pelos filósofos estoicos e gnósticos sobre os cristãos dos quatro primeiros séculos.

Dos estoicos herdamos a hipervalorização do celibato e a ideia da abstinência dentro do casamento como coisa virtuosa. Os estoicos ensinaram-nos a noção extrabíblica de que todo prazer sensorial é uma ameaça e uma tentação, e que, portanto, a única atividade sexual legítima é a que visa à procriação.

Os gnósticos, por sua vez, criam que o mundo físico não era obra de um Deus bom, mas de demônios, e que a incorpórea alma humana era a única centelha de verdadeira luz neste lodaçal de matéria. Dos gnósticos herdamos o desprezo pelo corpo, a demonização da matéria, o desprezo pela experiência sensorial e a hipervalorização do ascetismo.

Na equação do negativismo sexual, sexo nenhum equivale a nenhum prazer, e nenhum prazer equivale a muita virtude. Para o cristianismo histórico, a moralidade ficou para sempre reduzida à moralidade sexual. Perdemos assim a sanidade da visão judaica a respeito do sexo e do prazer, que é favorável e celebratória, e nada tem de neurotizada. Ainda mais importante, perdemos de vista o coração do ensino de Jesus sobre ética e santidade. Nada é simples na moralidade, em especial o reducionismo: nossa tendência em nos sentirmos seguros na abstinência e a tendência correspondente de condenarmos os outros em seus excessos. Jesus não tolerava a mentira, a ganância, o orgulho e a crueldade; nós toleramos tudo isso, mas quem não se submeter ao nossos elevados padrões de moralidade sexual terá de ser excluído do nosso meio.

Os católicos permanecem obcecados com o celibato e com a contracepção; os protestantes permanecem obcecados com a virgindade antes do casamento e com a homossexualidade. A mentalidade evangélica permite a exploração de pessoas pelo capitalismo e a alienação social que ela ocasiona, mas não tolera a união sexual antes da sanção reparadora. O Vaticano ensina que padres não podem casar-se e trata como embaraçosa a infelicidade o fato de que tenham de recorrer eventualmente a meninos. A igreja evangélica norte-americana, patrocinadora ideológica dos avanços militares dos Estados Unidos, é reconhecida, essencialmente, por sua postura anti-homossexual; ou seja, um homem pode matar outro, mas não pode beijá-lo. As campanhas católicas contra o uso de anticoncepcionais são reflexos contemporâneos da antiga luta estoica contra o prazer; a única função legítima do sexo, como ensinava Sêneca, deve permanecer a procriação.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 60, 61 e 62)

AQUILO QUE A IGREJA DÁ A ENTENDER

1 - Que aquela facção da igreja é de algum modo mais notável, e, portanto, mais legítima, que todas as outras.

2 - Que o modo genuíno de se exercer o cristianismo é estar presente nas reuniões regulares e demais atividades de determinada agremiação, ou seja, que a devoção é uma espécie de prêmio de assiduidade.

3 - Que o conteúdo da crença é mais importante que o desafio da fé.

4 - Que o caminho do afastamento do mundo, segundo o exemplo de João Batista, é mais digno de imitação que o caminho do envolvimento com o mundo, segundo a vida de Jesus.

5 - Que o modo de vida baseado na busca circular pela legitimação é mais respeitável que o das pessoas que conseguem viver sem recorrer a esses refrigérios.

6 - Que o modo adequado de honrar a herança de Jesus é dançar em celebração ao redor do seu nome, ignorando em grande parte o que ele fez e diz.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; pág: 39)

5 de abril de 2010

SERMÃO DO MONTE


Todos querem a ordem e sabedoria de Paulo,
mas nem todos querem a desordem e ousadia de Jesus.
Todos querem o respeito e liderança de Moisés,
mas nem todos querem a vergonha e simplicidade de Jesus.
Todos buscam o poder de Eliseu,
mas nem todos a fraqueza de Jesus.
Todos almejam a glória de Davi,
mas nem todos o vexame de Jesus.
Todos querem as palavras de Isaias,
mas nem todos a pregação ao pobre de Jesus.
Todos pregam o zelo e temor dos profetas,
mas nem todos a graça e subversão de Jesus.
Todos querem o céu de Elias,
mas nem todos querem o inferno de Jesus.
Todos querem a ressurreição de Jesus,
nem todos a páscoa de Jesus.

Verticondes


Jesus contagia e atrai gente de todas as classes sociais, etnias, línguas, raças e nações (Ap 5.9-10). Convoca os discípulos com vistas à formação de uma comunidade de homens e mulheres capazes de se permitir serem transformados por novas virtudes. E é basicamente dessas novas bem-aventuranças que o Sermão do Monte trata com sutileza e profundidade.

Carlos Queiroz (Ser é o Bastante; pág: 41)

30 de março de 2010

CORTINA DE FUMAÇA


A questão é simples. A Bíblia é muito fácil de entender. Mas nós, cristãos, somos um bando de vigaristas trapaceiros. Fingimos que não somos capazes de entendê-la porque sabemos muito bem que no minuto em que compreendermos estaremos obrigados a agir em conformidade. Tome qualquer palavra do Novo Testamento e esqueça tudo a não ser o seu comprometimento de agir em conformidade com ela. "Meu Deus", dirá você, "se eu fizer isso minha vida estará arruinada". "Como vou progredir na vida?"

Aqui jaz o verdadeiro lugar da erudição cristã. A erudição cristã é a prodigiosa invenção da igreja para defender-se da bíblia; para assegurar que continuemos sendo bons cristãos sem que a bíblia chegue perto demais. Ah, erudição sem preço! O que seria de nós sem você? Terrível coisa é cair nas mãos de Deus vivo. De fato, já é coisa terrível estar sozinho com o Novo Testamento.

Soren Kierkegaard


Vejo a igreja institucional como um refúgio construído por mãos humanas para nos proteger das terríveis liberdades e responsabilidades dadas por Deus a cada mortal, as quais Jesus desempenhou de modo tão espetacular. Em contrapartida, talvez esse refúgio seja ele mesmo o inferno. No fim das contas você não encontrará na igreja nada que não seja inteiramente atraente e desejável, e aqui está grande parte do problema. Vá a um templo evangélico no domingo de manhã e o que vai encontrar é gente amável, ordeira, de banho tomado, sorridente, perfumada e usando suas melhores roupas - e é preciso reconhecer que há um público para esse tipo irresistível de companhia. Na verdade, o bom-mocismo reinante é tamanho, na verdade, que não resta praticamente coisa alguma do escândalo inicial do evangelho. Enquanto descansamos nesse abraço comum, a verdadeira igreja, onde estiver (e talvez exista apenas no futuro), estará por certo mais próxima do dono do bar, da vendedora de jogo do bicho, do travesti exausto da esquina, do divorciado com seu laptop, dos velhinhos que babam em desamparo e das crianças que alguém deixou para trás. Certamente não usará gravata e não terá orçamento anual nem endereço fixo.

O efeito dessa nossa obsessão em precisar o conteúdo intelectual da verdadeira fé está em que, ao fazê-lo, conseguimos manter Jesus irrelevante para o restante e vasta maioria do mundo. A impressão que passamos é que a coisa mais útil e importante que o cristão pode fazer é definir intelectualmente e sem arestas como Deus funciona e então defender a todo custo seu ponto de vista. O conteúdo revolucionário da mensagem de Jesus não chega a ser sequer levada em consideração. Já que usamos a teologia como cortina de fumaça para não ter de encará-lo de frente. Enquanto tentamos determinar quem Deus vai endossar no final, não somos obrigados a enfrentar o impensável desafio que seria endossar seus desafios.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 38, 39 e 195)


"Devemos reaprender a compreender o significado da solidariedade humana: Deus quer seres humanos, não fantasmas que evitam o mundo. Ele fez da terra nossa mãe. Se você tem anseio por Deus, abrace o mundo; se quer encontrar a eternidade, sirva o momento presente".

Dietrich Bonhoeffer

27 de março de 2010

I HAVE A DREAM

Discurso realizado dia 28 de agosto de 1963, em Washington, EUA, no Lincoln Memorial

Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação. Cem anos atrás, um grande estadunidense, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade estadunidense e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição. De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo estadunidense seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade.

Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes". Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça. Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo.

Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação voltar aos negócios de sempre. Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só. E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder.

Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?" Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza. Eu não esqueci que alguns de vocês vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de vocês vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Vocês são os veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero. Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississipi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado. "Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, de qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!",  e se os Estados Unidos é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.

E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire. Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York. Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado. Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia. Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade. E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho espiritual negro:

"Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal".

 
Martin Luther King Jr.

25 de março de 2010

A ALIENAÇÃO ESPETACULAR


Essa transição estrutural para uma sociedade do espetáculo envolve a transformação em mercadoria de setores previamente não-colonizados da vida social, e a extensão do controle burocrático aos domínios do lazer, do desejo e da vida cotidiana. Para Debord, o espetáculo é uma ferramenta de pacificação e de despolitização; é uma "guerra do ópio permanente", que estupidifica os agentes sociais e distrai-os da tarefa mais urgente da vida real. O conceito de Debord de espetáculo está intimamente relacionado aos conceitos de separação e passividade, pois em espetáculos consumidos passivamente o espectador é alienado de produzir ativamente a sua própria vida.

Douglas Kellner

24 de março de 2010

LADRÃO DE GALINHAS


Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia.

- Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai para a cadeia!
- Não era para mim não. Era para vender.
- Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!
- Mas eu vendi mais caro.
- Mais caro?
- Espalhei o boato de que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.
- Mas eram as mesmas galinhas, safado.
- Os ovos das minhas eu pintava.
- Que grande pilantra...
Mas já havia um certo respeito no tom do delegado.
- Ainda bem que tu foi preso, Se o dono do galinheiro te pega...
- Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio.
- E o que você faz com o lucro do seu negócio?
- Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e superfaturo os preços. O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou-lhe se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:
- Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
- Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
- E, como tudo isso, o senhor continua roubando galinha?
- Às vezes. Sabe como é.
- Não sei não, excelência. Me explique.
- É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência  do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui preso, finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova.
- O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
- Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
- Sim. Mas primário, e com esses antecedentes...

Luis Fernando Veríssimo

20 de fevereiro de 2010

MEMENTO MORI

Vincent Van Gogh

O senhor e eu somos ambos admiradores de Marco Aurélio, e o senhor haverá de se lembrar deste trecho de seus pensamentos: "Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes".

Pascal Mercier (Trem Noturno Para Lisboa; pág: 37)

16 de fevereiro de 2010

ADVERTÊNCIA!

"Um olhar que parecia uma advertência bíblica a todos aqueles que se deixam levar pela vida sem oferecer resistência".

"É a morte que confere ao instante a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num tempo vivo".

Pascal Mercier (Trem Noturno Para Lisboa; págs: 115 e 181)


Um relógio público localizado no alto de uma torre não só mostrava as horas, mas proclamava que o tempo não deveria ser desperdiçado, pois o dia do julgamento em breve chegaria e exigiria severamente que todos afirmassem ter usado diligentemente o tempo que lhes fora concedido pelo Senhor.

Geoffrey Blainey (Uma Breve História do Mundo, pág: 158)


"Quando recordamos os nossos dias, eles passaram num relance. O tempo não dura e ninguém tem muito para viver! ALGUMA COISA transpõe o tempo... O quê? O quê? O quê?"

Richard Bach (A Ponte Para o Sempre; pág: 157)

3 de fevereiro de 2010

A VIDA É A UMA PEÇA


Noite retrasada sonhei que estava no intervalo de uma peça de teatro – uma peça que eu mesmo estava representando com um grupo de amigos. Era o intervalo que antecedia o último ato, o mais importante, e faltavam poucos minutos para voltarmos ao palco. A sala comprida e estreita onde aguardávamos ficava ao lado e ao longo da platéia, e por uma porta entreaberta eu podia que ver muitas cadeiras da platéia já estavam desocupadas: duas faxineiras varriam sem qualquer constrangimento as fileiras que haviam esvaziado por antecipação.

O sucesso da peça, eu sabia, era por alguma razão de uma importância tremenda, questão de vida ou morte para nós que representávamos nela. Senti que deveria dizer alguma coisa para meus colegas atores, enfatizar a importância crucial do último ato ou prepará-los para o choque de ver que a platéia se esvaziava. Antes que pudesse dizer o que não me sentia preparado para dizer, fui despertado do sonho. Mais tarde na manhã de ontem recebi a notícia de que as cortinas da vida real haviam se fechado pela última vez para um amigo: no canto do palco onde enceno minha modesta parte na peça da existência, havíamos amanhecido com uma personagem a menos. Nesses últimos meses alguns personagens-chave têm abandonado da forma mais inesperada o limitado círculo de atores que encenam comigo o enredo improvável da vida. Alguns o fizeram voluntariamente; outros, como aconteceu ontem, sem nenhuma culpa. Alguns tenho esperança de rever ao meu lado no palco; outros, como o de ontem, não nesta vida.

Pensando na perda de ontem, revejo mentalmente as poucas e breves cenas em que contracenamos juntos. Reescrevo as mesmas cenas até a perfeição, mas agora é naturalmente tarde demais: algumas falas permanecerão para sempre sem serem ditas. Na vida, minha gente, nenhum personagem é secundário e todos os momentos são momentos-chave. Cada momento é de definição, e as reviravoltas são definidas a cada diálogo, a cada fala, cada atitude, cada omissão. À medida que esses personagens saem de cena, não só fico sem nenhuma idéia de como a peça pode prosseguir sem eles: um final feliz fica parecendo também cada vez mais improvável. Minha pobre homenagem é persistir: guardar a esperança de rever o sorriso dessa gente numa gloriosa cena final, na reviravolta mais esperada de todas – se não neste palco, no que está por vir.

Se fizermos tudo direitinho, os aplausos não serão para nós.

Paulo Brabo (Um a Menos)

29 de janeiro de 2010

LONGE VÃO OS DIAS



Longe vão os dias de casa cheia, de gente repartindo o mesmo espaço vital – o mesmo quarto, o mesmo guarda-roupa, a mesma televisão. Levantou-se uma geração que não sabe o que é fila para usar o banheiro, esperar todo mundo para sentar-se à mesa, exigir a divisão milimétrica do último pedaço do bolo. Não conhece a experiência de conviver com alguém de idade na mesma casa.

Pensando em retrospecto, ter vários filhos implicava muitos riscos - muitas variáveis para controlar e muitas provisões para acumular para o futuro. Era economicamente arriscado em muitos sentidos, e tornou-se ainda mais quando o padrão de vida aceitável a ser sustentado foi alçado artificialmente. Mas a vitalidade daquela casa e de outras casas repletas que conheci me leva a lamentar de coração a extinção do gênero.

Quem não esteve numa casa repleta não tem como saber o que é sentir-se acolhido. Quem tem todo o espaço para si acaba privado de descobrir que o mais precioso é o espaço preenchido ao seu redor.

Paulo Brabo (A Bacia das Almas; págs: 312 e 313)

6 de janeiro de 2010

DEUS É AMOR, DEMASIADAMENTE AMOR

"Por vezes, diz-se: Deus pode tudo! Não, Deus não pode tudo, Deus não pode senão o que pode o Amor. Porque ele não é senão o Amor. E sempre que nós saímos da esfera do amor, enganamo-nos sobre Deus e estamos a ponto de fabricar um qualquer Júpiter".

Padre François Varrilon (Alegria de Crer e Viver)